A campanha "Jubileu" no Brasil

Das Semanas Sociais à Campanha contra a ALCA

31/05/2002
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Este artigo sintetiza o conjunto da "Campanha Jubileu", no Brasil, desde 1998 até hoje. Campanha chamada "Jubileu 2000" até o final do ano 2000 e, depois, "Jubileu Sul". O exemplo brasileiro é rico e original sob diversos ângulos: primeiramente, sua amplidão culminando com a organização de dois plebiscitos populares – sobre a dívida externa e sobre a ALCA – atingindo um imenso território; a variedade de seus modos de atuação; sua dimensão de massa; a multiplicidade, diversidade e unidade de seus agentes; seu impacto na vida política do país; e a repercussão em nível internacional junto a outras campanhas do Jubileu. O artigo também apresentará o importante papel do setor das pastorais sociais da CNBB (Conferência dos Bispos do Brasil) na promoção e unificação do setor popular da sociedade civil. Serão apresentados, brevemente, o contexto sócio-político da Campanha e a dramática dimensão da dívida pública no Brasil, antes de se percorrer as principais etapas da Campanha: Semanas Sociais, Simpósio, Tribunal, Plebiscito sobre a dívida externa, Auditoria, Tribunal Internacional, Plebiscito sobre a ALCA, e a elaboração dos objetivos, agentes, métodos e resultados dessas etapas. Contexto sócio-político e econômico: perda de soberania. O Brasil não é um país pobre, mas um país onde existem muitos pobres, onde a riqueza é muito mal distribuída. O Brasil é um país rico e magnífico, repleto de recursos naturais, humanos e culturais. Infelizmente, esses recursos estão, pouco a pouco, sendo sacrificados. A própria soberania do país está cada vez mais ameaçada. A dívida pública, interna e externa, multiplicada por 6 ou 7 nos anos 90, priva 90% da população (classes média e pobre, e setor dos excluídos) dos frutos do progresso. O país se empobrece enquanto é "vendido" ao estrangeiro. O país está exangue e o Estado despojado, incapaz de investir no campo social e no das infraestruturas. A dívida está fora de controle, e submete o país aos ditames do FMI e dos países credores. Os Estados Unidos, que já instalaram um sistema de "controle de segurança das fronteiras", recorrem a todo seu poder político a fim de obter uma "base de lançamento" (62.000 hectares), num lugar estratégico, nos confins da Amazônia (Alcântara, perto de São Luís, MA), para reforçar seu poderio militar e espionagem na região. Ferozes apetites estrangeiros se manifestam, atraídos pela imensidão das riquezas (água, biodiversidade, minerais), ainda inexploradas da Amazônia. Enfim, o desejo dos Estados Unidos de estabelecer uma zona de livre comércio para as três Américas (ALCA em português e espanhol)(1) acentua o medo de se perder a soberania nacional. A ALCA é percebida muito mais como um projeto de anexação e subordinação do que como um acordo de integração da região. Não é difícil interpretar as reais intenções dos Estados Unidos. A desigualdade entre as partes é tão grande que a livre negociação não existe. Os Estados Unidos ditam as regras que orientarão o conjunto das relações entre os países. O acordo não se refere somente às relações comerciais, mas a todos os setores da vida econômica, política, social e cultural. Para o Brasil, principal potência econômica da região (metade do PIB da América do Sul), os riscos de absorção são mais sensíveis. A ALCA provocaria um impacto imenso no conjunto da vida do país. É preciso situar os diferentes momentos e as diversas formas da Campanha "Jubileu 2000/Sul" neste quadro de uma tríplice estratégia de dominação do país: financeira e econômica, pela dívida e os investimentos; político-militar pela implantação de uma base, e comercial, pela duplicidade da ALCA. Situação da dívida. Como seu vizinho argentino, o Brasil segue uma rigorosa política neoliberal, desde o início dos anos 90. As conseqüências são semelhantes, e as ameaças de desestabilização idênticas. Se ele não tivesse desvalorizado sua moeda, em janeiro de 1999, o Brasil poderia estar num impasse tão dramático como o de seu vizinho. Privatizações, abertura das fronteiras, desregulamentações, desvalorização da moeda, alta taxa de juros de investimentos da dívida interna para atrair os capitais estrangeiros, redução do papel do Estado etc: o acordo de Washington é cumprido rigorosamente. O país paga escrupulosamente suas dívidas, porém, elas não param de crescer. O total da dívida externa era de 73,96 bilhões de dólares no final de 1981; vinte anos depois, final de 2000, triplicou para 236,16 bilhões. Durante esses vinte anos, o país pagou 257,29 bilhões de dólares pelos juros, e 346,03 bilhões pela amortização do capital. A situação interna é, ainda mais inquietante. O total da dívida interna era de 59,4 bilhões de reais no final de 1994; e, em abril de 2002, multiplicou 11 vezes: 684,6 bilhões. A dívida pública, externa e interna, representa, hoje, 54,5% do PIB nacional, e deverá atingir os 57% no fim do ano. Em 2001, a remessa da dívida (142,2 bilhões de reais) representou 34% do orçamento do Estado (418,5 bilhões de reais). Toda a política financeira e econômica do país parece orientada para o reembolso desta dívida. O país tem se tornado mais vulnerável e dependente do exterior; hoje, ele está às vésperas da falência. Aqui, como em outros lugares, o FMI dita as políticas econômicas recessivas que sacrificam o crescimento, as condições de vida, a dignidade, os valores e tradições da grande maioria da população. A Campanha "Jubileu 2000". A articulação, organização e funcionamento progressivos da Campanha "Jubileu 2000" foram estabelecidos durante a 3ª "Semana Social" (1997-1999), articulada pelo setor das pastorais sociais da CNBB. O setor social da CNBB é constituído por 11 pastorais sociais que procuram traduzir a mensagem evangélica em ações transformadoras das estruturas injustas da sociedade. A perspectiva é a libertação integral evangélica, dando prioridade às camadas mais pobres e aos excluídos. O setor social, bem organizado a nível nacional e estadual, conquistou credibilidade e respeito, tanto no conjunto da Igreja(2) como na sociedade civil e política. Dentre as numerosas atividades do setor social em parceria com a Campanha do Jubileu, só mencionaremos aqui as Semanas Sociais, o "Grito dos Excluídos" e a participação na Campanha ela mesma. Criado em 1995, o "Grito dos Excluídos", como uma organização muito descentralizada, permite a cada grupo, movimento ou entidade participante a iniciativa de dar forma ao tema escolhido a nível nacional, e se fortalece a cada ano. Ele acontece no dia 7 de setembro, dia nacional da independência do país, como paralelo às manifestações públicas e militares oficiais. Os pobres e excluídos desfilam pelas ruas denunciando uma falsa independência, e um modelo de subordinação da vida dos cidadãos aos interesses do capital. Em 2001, houve cerca de 2.500 celebrações do "Grito", algumas reunindo dezenas de milhares de pessoas. Desde 1999, o "Grito" ultrapassou as fronteiras brasileiras, e se organiza, pouco a pouco, em outros países latinoamericanos. O "Grito" (data, rede organizacional, simbolismo, prestígio) foi uma das bases para a organização dos dois plebiscitos-cidadãos. No ano 2000, o tema do "Grito" foi: "Progresso e Vida, Pátria sem dívida". Neste ano de 2002, quando acontecerá o plebiscito sobre ALCA, o tema do "Grito" é: "A soberania não é negociável". As Semanas Sociais Brasileiras (SSB). Elas se encontram na origem da organização da Campanha do Jubileu 2000/Sul, e vão deixar sua marca. O Setor Social organizou três "Semanas" até hoje, de diferentes maneiras, mas com uma metodologia e objetivos comuns. A 1ª Semana, em novembro de 1991, em Brasília, discutiu sobre "o mundo do trabalho e as novas tecnologias". Ela foi precedida de 12 semanas regionais. A 2ª Semana refletiu sobre a construção coletiva de um projeto popular para o país: "Brasil, alternativas e protagonistas". Durante dois anos (1993-1994), este tema foi discutido em numerosas Semanas regionais, antes de um encontro nacional, em junho de 1994. Na síntese final se encontra a proposta: "um Brasil economicamente justo, politicamente democrático, socialmente solidário e culturalmente plural", o que será freqüentemente retomado nos numerosos debates políticos e civis. Pontos comuns às 3 SSBs. Antes de apresentar a 3ª Semana, observemos algumas intenções e aspectos metodológicos comuns às 3 Semanas. Elas intentam: a) apresentar um diagnóstico da realidade sócio-política e econômica do país; b) suscitar uma vasta mobilização de todas as forças vivas da sociedade, eclesiais ou não; c) provocar uma tomada de posição sobre alguns compromissos concretos, pontuais, que possam ser assumidos por todos; d) encontrar uma linguagem simples, leiga, aberta a todos, suscitando o protagonismo efetivo dos leigos; e) dar um caráter construtivo aos debates: criticar o modelo sócio-econômico e propor pistas alternativas. Metodologicamente, as Semanas Sociais 1) seguem um movimento de construção a partir da base, de baixo para cima; 2) proporcionam um espaço de encontro e de diálogo, aberto e plural, com outras Igrejas e instituições da sociedade civil (sindicatos, universidade, associações, ONGs, movimentos populares, organizações de base etc); 3) suscitam uma vasta participação democrática; elas parecem uma grande obra nacional de construção coletiva onde participam numerosas cabeças, mãos e pés; elas são "laboratórios de conhecimento"; 4) propõem implicações, compromissos e atividades práticas, antes e depois dos momentos fortes de encontro. Essa maneira de proceder dá consistência à dimensão social de uma fé comprometida na opção preferencial pelos pobres. A 3ª Semana Social durou três anos, de 1997 a 1999, com o tema: "Resgate das dívidas sociais; justiça e solidariedade na construção de uma sociedade democrática". Em 1997, aconteceram 20 seminários para a formação de animadores das Semanas Sociais diocesanas. Esses animadores organizaram mais de 150 Semanas diocesanas de que participaram cerca de 25.000 pessoas. Os 150 relatórios mencionam freqüentemente 28 dívidas sociais, analisam suas raízes, e os grupos e valores que se opõem ao resgate ou, pelo contrário, o facilitam. A partir de uma síntese desses relatórios, foi organizado um encontro nacional, em julho de 1998, para aprofundar as raízes econômicas, históricas e culturais das dívidas sociais. Depois desse encontro, as Semanas regionais procuram caminhos de mobilização e compromisso para o resgate das dívidas, segundo o espírito do Jubileu 2000. O Simpósio. Dentro do conjunto da 3ª Semana, em julho de 1998, justo antes do encontro nacional, a CNBB e o CONIC (Conselho Nacional das Igrejas Cristãs), de quem é membro, organizaram em Brasília um simpósio internacional de três dias: "Dívida externa: implicações e perspectiva", que reuniu cerca de 120 especialistas brasileiros e estrangeiros, e representantes das Igrejas, movimentos e entidades da sociedade civil. O Simpósio iria mostrar como a dívida externa é uma das principais causas das dívidas sociais. Num certo sentido, o Simpósio foi a "abertura" da campanha do Jubileu 2000, enquanto que as Semanas Sociais prepararam-na. O espírito, os objetivos e o método da 3ª Semana mostravam, em grande parte, os que deveriam alimentar a Campanha, e a maioria das organizações e movimentos que participaram de uma iriam participar da outra. O coração do Jubileu é o perdão das dívidas, tanto sociais como externa. O documento final declara: "Estamos convencidos da força de um movimento geral de solidariedade, unindo um grande número de cidadãos, numa só voz, publicamente, em vista de causa única. O Jubileu deve se tornar um momento de renovação pessoal e social, a fim de eliminar as grandes injustiças e re-estabelecer a harmonia e a justiça que Deus sempre quis no coração dos relacionamentos entre as pessoas e com a criação". O documento final apresenta uma sólida reflexão ética e teológica como um dos fundamentos da Campanha 2000. Durante o Simpósio, ficou evidente a necessidade de tornar pública a situação da dívida externa. Ela parecia ser uma questão reservada aos especialistas, escondida da população, enquanto que o Simpósio, pelo contrário, tinha mostrado que ela era uma questão de cidadania (os cidadãos devem ser informados sobre um assunto de tão grande importância), de solidariedade (com a maioria da população que sofre as conseqüências da dívida), e de responsabilidade (enfrentando conscientemente o desafio da dívida). O Simpósio iria lançar os grandes temas que, em seguida, seriam profundamente discutidos e difundidos na Campanha 2000 "Por um milênio sem dívida", no momento do Tribunal e do Plebiscito: dependência externa, empobrecimento, perda da soberania, imoralidade e ilegitimidade da dívida. No Simpósio, surgiu a idéia da realização de uma Auditoria da dívida. Funcionamento e organização da Campanha jubileu 2000. Desde o início, as Semanas Sociais e os "Grito dos Excluídos" foram ecumênicos, e reuniam um número notável de movimentos e organizações sociais e populares. Certos hábitos de trabalho em conjunto formavam-se pouco a pouco. Hoje, o Jubileu Sul/Brasil é uma flexível articulação entre numerosos movimentos e organizações sociais e populares, democráticas, bem implantadas na base, e com uma boa capacidade e experiência de análise e ação. As estruturas de funcionamento são leves, adaptadas aos diversos momentos da Campanha. A coordenação nacional (seus limites são bastante flexíveis) se compõe de uma pequena terça parte dos representantes das Igrejas, uma volumosa terça parte de representantes dos movimentos sociais ou populares, e uma outra pequena terça parte de representantes da organização de estudos, de formação ou profissionais. Em todos os níveis (federal, estadual ou municipal), os movimentos e organismos das Igrejas exercem um papel importante a fim de facilitar a integração, coesão e unidade entre grupos tão diversificados. A CNBB adquiriu um prestígio importante. A autoridade e influência de alguns bispos e líderes cristãos/cristãs, padres ou leigos, são grandes. Ter a "marca de qualidade CNBB" é um trunfo importante para adquirir simpatia e credibilidade. No meio das estruturas da Campanha onde há, algumas vezes, sérias rivalidades, os representantes das Igrejas freqüentemente são uma garantia de abertura e de respeito pelas diferenças. A confiança demonstrada no setor social da CNBB explica por que o secretariado executivo do Plebiscito sobre a dívida externa tem funcionado no próprio escritório do setor social, na sede da CNBB, em Brasília. Por razões práticas, sobretudo, e, também, por causa de algumas resistências no meio do episcopado, temendo conflitos com o governo, o secretariado executivo do Plebiscito sobre a ALCA foi transferido para São Paulo. Depois de alguns debates, às vezes vigorosos, os partidos políticos foram admitidos a participar da coordenação nacional a partir da metade de 2000, no momento da preparação do Plebiscito sobre a dívida. A coordenação nacional se reuniu mais ou menos de dois em dois meses, ou em São Paulo ou em Brasília. Duas ou três vezes ao ano, uma assembléia geral nacional proporciona uma apreciação da situação da Campanha nos diferentes Estados do país. A liderança e as grandes capacidades de organização e animação de alguns garantem, através da eficácia e o bom funcionamento das coordenações e dos plenários, uma boa articulação e unidade da Campanha no conjunto do imenso território. Uma das características da Campanha Jubileu no Brasil é procurar atingir uma dimensão de massa. E, através de múltiplas redes que, sob formas diferentes, se opõem à ditadura do capital, este objetivo se torna, em parte, realidade. Como vai se constatar, a Campanha Jubileu é um instrumento de formação política, de análise crítica e de organização em todos os níveis, do país e para todos os setores da sociedade. A Campanha Jubileu chegou a suscitar, em todo país, discussões animadas e mobilizações massivas sobre temas centrais, sobre as condições de vida da maioria da população, e sobre o futuro da soberania nacional, que o governo não queria tornar públicos pois eles poderiam questionar a política neoliberal em vigor. Essa característica de massa, produzida pela Campanha, é um elemento importante na defesa da cidadania, dos direitos humanos, dignidade, democracia e soberania do país. O Tribunal. Para difundir o tema da dívida – segredo bem guardado pelo governo – o Simpósio de 1998 tinha proposto a organização de um Tribunal da dívida externa. Ele foi realizado em abril de 1999, no Rio, uma iniciativa da CNBB, de organismos ligados às Igrejas, e de alguns movimentos sociais e populares. O Tribunal não era uma corte de direito, um órgão judicial legal, mas um tribunal ético, de opinião, para denunciar e julgar publicamente o endividamento do país e as políticas de ajustes neoliberais que selam a vida de toda a população; para estabelecer responsabilidades, propor sanções e indicar alternativas solidárias. O Tribunal ético é um exercício de verdade e memória contra a impunidade de organismos e responsáveis nacionais e internacionais, de quem as decisões ilegais e imorais não são julgadas. A dívida e as políticas que produzem essa impunidade devem ser julgadas e confrontadas à luz de valores éticos, que colocam a vida acima delas. Mais de 1500 pessoas, vindas dos quatro cantos do país, participaram, durante 3 dias, de intensos debates sobre o sistema financeiro internacional, a situação da dívida no Brasil e em outros países onde o dano é profundo, e as alternativas possíveis para o povo. Cada sessão era presidida por um juiz bem conhecido (como o Procurador Geral da Republica), que chamava as testemunhas para depor. Cada intervenção era solidamente construída. A posição do ministro da economia, Pedro Malan, foi apresentada através de uma dessas respostas durante o debate no Parlamento. O júri era composto de seis pessoas conhecidas por sua integridade moral. Antes da proclamação do veredicto, cada jurado justificou sua posição. O Veredicto ressalta as causas estruturais da miséria, do atraso e desigualdade social no Brasil, e indica as medidas necessárias para ultrapassar essa situação. O Júri declarou a dívida "injusta e insustentável, eticamente, juridicamente e politicamente". Ainda hoje, o Veredicto continua sendo um poderoso instrumento de análise da crise brasileira. Falta espaço para apresentá-lo aqui, com mais detalhes. Através dos meios de comunicação social, o Tribunal teve uma certa repercussão na opinião pública, e o Veredicto foi largamente difundido. O tema da dívida tornava-se público. Irritados com essa iniciativa democrática, alguns setores do governo e dos meios financeiros começaram a questionar a autoridade e a capacidade da Campanha Jubileu. Para propagar ainda mais esse debate, e atingir os meios populares, a assembléia presente no Tribunal sugeriu a realização de um Plebiscito Popular para celebrar o ano jubilar 2000. O Plebiscito sobre a dívida externa. Em 2000, o Brasil celebrou 500 anos de sua "descoberta". Foram 500 anos de colonização, e um slogan alternativo à propaganda do governo tinha sido popularizado: "Queremos outros 500 anos de paz, justiça e democracia". O plebiscito foi uma etapa importante na construção de um país para todos. Foi um exercício de democracia, de cidadania coletiva nacional; um ato cívico corajoso e audacioso: era preciso coragem, confiança e audácia para organizar um plebiscito popular em todo o país, com recursos limitados. Foi uma das iniciativas cívicas mais audaciosas das últimas décadas. Os três principais objetivos do Plebiscito eram: - estimular um vasto debate em todo o país, a fim de que a população tomasse consciência das ciladas, sociais e ecológica, das dívidas externa e interna; - questionar, a partir da prática e das situações concretas, o modelo econômico capitalista neoliberal adotado no Brasil, lutando pela recuperação da soberania nacional; - unir forças para conseguir uma auditoria pública da dívida externa. O plebiscito aconteceu dos dias 2 a 7 de setembro de 2000, durante a "Semana da Pátria", terminando no dia da independência nacional e do "Grito dos Excluídos". O slogan do Plebiscito era: "a vida acima da dívida", o do Grito: "Progresso e vida, Pátria sem dívida". A Campanha aconteceu em todo o país, em 3.444 dos 5.000 municípios. 53.000 urnas foram instaladas nas igrejas, sindicatos, escolas, rodoviárias, praças públicas e ruas. 120.000 voluntários dos setores mais diversificados da sociedade participaram da organização da consulta. A participação ativa de muitos permitiu superar as dificuldades devidas aos parcos recursos financeiros. Ultrapassando os prognósticos mais otimistas, mais de 6.000.000 de cidadãos votaram, 95% dentre eles responderam NÃO às três perguntas, elaboradas de um modo bem democrático depois de intensos debates, uma em relação ao FMI, outra sobre o pagamento da dívida externa, e a terceira sobre a dívida interna: - o governo deve manter o acordo atual com o FMI? - o Brasil deve continuar a pagar a dívida externa, sem realizar, antes, uma auditoria pública dessa dívida, como prescreve a Constituição de 1988? - os governos federal, estadual e municipal devem continuar a utilizar grande parte de seus orçamentos para pagar a dívida interna aos especuladores? Da parte do governo e dos principais beneficiários do modelo neoliberal, não faltaram críticas, às vezes violentas e infames. O apoio da CNBB a esse ato de cidadania, solidariedade e responsabilidade incomodava bastante os que procuravam depreciá-lo. No início, eles não levaram a sério o processo pensando que se tratava de um gesto de uns poucos iluminados. Diante da amplitude progressiva da Campanha, a crítica foi que os "agitadores" nada conheciam sobre a economia e os problemas técnicos da dívida. No entanto, pouco a pouco, bom número de intelectuais, entre eles economistas e juristas bem conhecidos, se aliaram ao Plebiscito. Todos os que questionavam o modelo, e procuravam defender a soberania do país foram, então, denunciados como "maus pagadores" irresponsáveis. O Plebiscito representa uma iniciativa pouco comum de uma sociedade civil emergente. Somente a determinação, a união e a generosidade dos setores comprometidos explicam o bom desenvolvimento e o sucesso da operação. A participação ativa de numerosos setores das Igrejas muito contribuiu para que tudo isso fosse possível. E, por causa desse engajamento social com outros atores, as Igrejas adquirem uma abertura e uma proximidade aos verdadeiros problemas sociais e políticos do país, o que as preserva das tentações autoritárias e de auto-suficiência. Durante os meses precedentes ao Plebiscito, aconteceram, em todos os níveis, numerosos debates para explicar o por quê e o sentido da iniciativa. Foi um importante trabalho de formação política para a cidadania, mostrando que a dívida depende, antes de tudo, não de aspectos técnicos, mas de decisões políticas. Esse ato cívico-político deu à Semana da Pátria uma outra dimensão, levantando interrogações sobre o sentido da independência e da soberania num mundo globalizado pela tirania do mercado. Questionando o sistema financeiro internacional, e o círculo infernal das dívidas, a Campanha Jubileu 2000, no Brasil, mais politizada que em outros países, foi uma importante contribuição à Campanha Jubileu 2000 mundial. O exemplo brasileiro serviu de horizonte e encorajamento para outras Campanhas, sobretudo na América Latina e na África. Jubileu 2000 também se mobilizou para que dois projetos de lei fossem introduzidos no Congresso: um para que, comparando com o Brasil, a dívida de países em que a renda por habitante é inferior à brasileira fosse anulada, e outro, para a organização de um plebiscito oficial. Apesar das pressões feitas sob a forma de listas de assinaturas e envio de cartas aos parlamentares, os dois projetos esperam, sem perspectiva iminente de serem examinados. Durante o ano 2001, a Campanha Jubileu Sul continua sua ação de formação, conscientização e organização em torno de diversos temas, estreitamente articulados entre si: 1) sobre a dívida interna, cujo aumento parecia incontrolável, intimamente unida à dívida externa; 2) sobre a Lei de Responsabilidade Fiscal que consolida a prioridade do pagamento das dívidas financeiras sobre todas as outras despesas públicas; 3) o lançamento de uma auditoria-cidadã diante da recusa do Congresso em promover uma auditoria oficial, mesmo inscrita na Constituição; 4) a participação nos Conselhos municipais; 5) a preparação do Tribunal Internacional da dívida durante o 2º Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, em fevereiro de 2002; 6) uma participação mais sistemática e melhor integração na Campanha Jubileu Internacional; 7) uma sensibilização progressiva ao tema da ALCA. Diferentes atividades foram organizadas: 1) um simpósio sobre a dívida interna, em junho, reuniu cerca de 100 líderes da Campanha Jubileu Sul, para aprofundar o vínculo entre a dívida externa e interna, analisar a Lei de Responsabilidade Fiscal, e o impacto das dívidas e dessa nova lei nas políticas orçamentárias, em todos os níveis; 2) a realização de Tribunais sobre as dívidas em várias capitais dos Estados; 3) diversas ações de sensibilização durante a semana da pátria em torno do "Grito dos Excluídos", cujo tema, em 2001, era "Por amor a esta pátria Brasil", e o envio de cartas ao Congresso sobre o plebiscito oficial e o perdão das dívidas devidas pelo Brasil; 4) reuniões periódicas para organizar e começar a realização da auditoria-cidadã; 5) a preparação de duas brochuras, muito pedagógicas, sobre os orçamentos e os Conselhos Municipais, e o modo de participar deles; e 6) a participação de representantes da coordenação nacional em diversos encontros internacionais do Jubileu Internacional. A auditoria-cidadã. Em novembro de 2000, por ocasião da 6ª plenária nacional, para respeitar os resultados do Plebiscito, foi decidida a realização de uma auditoria-cidadã para compensar a não-realização de uma auditoria oficial da dívida pública, inscrita na Constituição de 1988. A crescente dependência do capital externo torna o país cada vez mais vulnerável aos humores do mercado financeiro internacional. O clima pós-setembro de 2001 cria mais incerteza, e o fluxo dos investimentos estrangeiros diminui consideravelmente. A crise Argentina aumenta a fragilidade. O Brasil é despojado de seus recursos. Cada ano, ele paga mais juros, e a dívida não pára de crescer. O país é submetido aos ditames recessivos do FMI que aumentam a dependência e a vulnerabilidade. Para defender sua soberania e a definição de suas escolhas, é necessário que as contas sejam claras e as informações accessíveis. Quais são os montantes e a legalidade dos contratos assinados? Quem os negociou? Aonde o dinheiro foi aplicado? Quais foram os resultados dos empréstimos? Quem se aproveita da dívida, e quais são os benefícios ou as perdas para a maioria da população? São algumas das questões às quais a auditoria gostaria de poder responder. Como explicar que, em setembro de 2001, o Banco Central anuncia, em meio a confusas justificativas, um "erro" de 32,7 bilhões de dólares? Nessa perspectiva, os principais objetivos são os seguintes: - estabelecer a situação real da dívida pública externa e interna; - popularizar a discussão sobre este tema, e mostrar como a dívida afeta diretamente a vida dos cidadãos; - pressionar para ter acesso aos documentos e às contas que mostram a ilegitimidade de uma grande parte da dívida; - pressionar para que o Congresso realize uma auditoria oficial da dívida. A realização de uma auditoria não é uma operação simples. Porém,ela já está bem engatilhada. Bom número de economistas, universitários ou de instituições públicas, de juristas e agentes fiscais estuda casos concretos que possibilitarão mostrar processos ilegais e/ou fraudulentos. O objetivo é continuar a sensibilizar, de um modo mais preciso ainda, a opinião pública sobre o problema da dívida, e conseguir a realização de uma auditoria pública. Somente ela permitirá colocar às claras, de um modo mais amplo, os mecanismos e operações obscuras que alguns tentam manter escondidos. Apesar de sua dimensão bastante técnica, o interesse e a mobilização para a auditoria-cidadã são maiores do que se ousava esperar. Um seminário, com a participação de peritos nacionais e políticos escolhidos (um senador e um deputado), reuniu cerca de 400 pessoas durante do 2º Fórum Social Mundial (FSM), em Porto Alegra, em fevereiro de 2002. O Tribunal Internacional dos povos sobre a dívida externa. Em 2001, o Jubileu Sul/Brasil, em união com a rede mundial Jubileu Sul, preparou o primeiro Tribunal Internacional dos povos sobre a dívida externa. Este foi, sem dúvida, um dos principais acontecimentos especiais do 2º FSM. O Tribunal não era uma corte legal de justiça, mas um tribunal político e ético, o que lhe conferia legitimidade, autoridade e credibilidade. Ele respeitou, o mais possível, os procedimentos jurídicos. Os 6 juízes, 4 promotores, 15 testemunhas, a defesa, e os 12 membros do júri vinham dos quatro cantos do mundo. O Tribunal durou um dia e meio, e contou com a presença de cerca de 500 pessoas (mais de 3.000 na abertura). O veredicto, muito severo, retomou o conjunto das acusações e, a partir delas, o júri pediu que "o Tribunal declare a dívida externa inexistente e, conseqüentemente, anulada, porque ela é odiosa, infame, ilegal, usurária, injusta, fraudulenta, ilegítima, e é a causa da perda da soberania nacional e da degradação da qualidade de vida para a maioria da população do Sul". O Tribunal Internacional permite mostrar que a dívida é um problema mundial, e que os mecanismos de dominação e exploração política, econômica e cultural são idênticos em todos os países, e provocam as mesmas conseqüências dramáticas. O veredicto ressalta que a dívida é um mecanismo de destruição e de morte, ela já foi paga diversas vezes, e mantê-la é um crime contra a humanidade. O plebiscito contra a ALCA. Já, em 2001, a Campanha Jubileu Sul começou a articular o tema da dívida com o da ALCA. A 3ª Reunião de Cúpula dos chefes de Estado e governos em Québec, Canadá, em abril de 2001, e as grandes manifestações de protesto contra este acordo relançaram o debate ao nível da opinião pública. Na imprensa, as críticas, muitas vezes vigorosas, aumentam, vindo de todos os setores da sociedade, para defender a dignidade ridicularizada do país. A ALCA é percebida por muitos como o coroamento do "consenso de Washington", como um violento ataque dos Estados Unidos, o que irá alienar, de um modo legal e permanente, a soberania do país. A ALCA não será uma integração, mas uma anexação, uma conquista e invasão econômica, política, cultural e social, causando um profundo impacto em todas as dimensões da vida da sociedade. Os representantes dos Estados Unidos, nova metrópole mundial, impõem as regras e as mudam conforme seus interesses. A ALCA é "o alvo de um último tiro para eliminar a soberania do país". Ela é uma ameaça para os direitos e conquistas sociais, porque ela significa a generalização e imposição definitiva do modelo econômico neoliberal injusto, que concentra a riqueza e o poder em poucas mãos, e aumenta o número dos excluídos. As condições mínimas de igualdade não existem para uma verdadeira negociação. A ameaça para todos os direitos dos cidadãos mobilizou a rede Jubileu Sul/Brasil. Era preciso reagir e organizar a oposição de toda a sociedade a tal projeto. Não somente para o Brasil, mas para o conjunto do continente. Em setembro de 2001, a coordenação nacional apresentou a proposta de organizar um outro plebiscito sobre a ALCA. Em novembro, a 8ª plenária aprovou a proposta. O primeiro ato de massa seria o lançamento da campanha continental contra a ALCA durante uma grande manifestação no final do 2º Fórum Social Mundial. Os principais objetivos do plebiscito popular são: - mostrar como a ALCA é parte de uma estratégia global dos Estados Unidos para reforçar sua hegemonia sobre o conjunto do continente, e denunciar, assim, o modelo econômico e político neoliberal; - difundir o mais possível a verdadeira natureza da ALCA, e suas implicações nos diversos campos da sociedade e da vida dos cidadãos; - promover um amplo debate no país sobre as perspectivas e alternativas de reconquista da soberania do país, e de construção de outro acordo entre países latinoamericanos; - organizar e mobilizar a população para obter um plebiscito oficial. A proposta da Aliança Social Continental, que reagrupa as Campanhas Jubileu Sul, e muitos outros movimentos e organizações populares de diversos países das Américas, propõe a organização de um Plebiscito Continental sobre a ALCA. No Brasil, ele acontecerá, novamente, durante a semana da pátria, de 1º a 7 de setembro de 2002. Hoje, a organização do plebiscito está de vento em popa: em todos os Estados se realizam encontros massivos para a formação e capacitação de militantes que serão os principais organizadores do plebiscito na base. A dinâmica do plebiscito sobre a dívida externa ainda está muito viva, e facilita a mobilização e organização. O "Grito dos Excluídos" nacional e continental, "a soberania não é negociável" se articulam estreitamente às Campanhas contra a ALCA e à organização do plebiscito. É necessário integrar o maior número possível de cidadãos na construção de relacionamentos mais justos e solidários. Um dos esforços da Campanha é inserir o tema da ALCA no conjunto dos debates preparatórios às eleições gerais de outubro. Conclusão. No Brasil, os anos 90 foram de implantação do modelo neoliberal, anos de destruição do tecido social e do sacrifício dos direitos dos cidadãos. Jubileu 2000/Sul foi um dos principais atores coletivos que tentaram revalorizar o papel do Estado para a defesa e construção da cidadania. No lento processo de reconstrução democrática no final dos anos da ditadura, Jubileu 2000/Sul soube manter e valorizar o farol político do agir dos cidadãos. A análise e a prática da Campanha é uma obra, antes de tudo, política e democrática, no sentido mais nobre do termo, em favor dos direitos de cada um e de todos. Por isso, aparecem as incompreensões e as críticas, às vezes vigorosas, de que o Jubileu 2000/Sul foi e continua sendo vítima da parte dos representantes dos defensores do capital. A Campanha Jubileu 2000/Sul reúne e integra movimentos e organizações políticas, sociais e populares muito diversificadas que lhe proporcionam força e dinamismo. A unidade se fundamenta numa análise política comum sobre as conseqüências dramáticas do modelo neoliberal, e os perigos graves que ele representa para a humanidade. A rede Jubileu Sul é uma forma nova de ação da sociedade civil em resposta aos desafios mundiais novos surgidos da globalização neoliberal. A Campanha revela a dimensão internacional e mundial dos novos modos de dominação e exploração, e a necessidade de elaborar formas de ação e alternativas também mundiais. O papel e o lugar das Igrejas foram e continuam sendo importantes na caminhada da Campanha Jubileu. Elas ajudam com uma longa e rica tradição de valores, princípios e experiências em favor da defesa da vida e da dignidade dos povos. Para ser fiéis à mensagem evangélica e conservar credibilidade, elas podem e devem, numa atitude de serviço, unir suas vozes àquelas de todos os que denunciam as raízes do mal e procuram caminhos de vida para todos. Pe. Bernard Lestienne SJ, Cias/Ibrades, Junho de 2002 (a ser completado, depois dos resultados do plebiscito sobre a ALCA) (1) Manteremos a sigla ALCA (Área de Livre Comércio das Américas) para designar o projeto norteamericano de integração comercial de toda a região. (2) Aqui, fazemos referência, mais freqüentemente, à Igreja católica. É a Igreja mais importante do Brasil. Mas, é bom ressaltar, desde o início, e, aliás, como em todo o artigo, que uma das razões do sucesso da Campanha 2000/Sul é que, em se tratando de Igrejas, a Campanha sempre foi ecumênica.
https://www.alainet.org/es/node/106455
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