Brasil: antes de Lula e depois de Lula presidente
01/11/2002
- Opinión
Um novo Brasil. um novo Rio Grande?
Uma reflexão e avaliação ainda preliminares Diante do calor recente dos acontecimentos, alegria e entusiasmo de um lado, tristeza e dor infinitas de outro, é difícil ter um distanciamento suficiente para fazer uma avaliação conclusiva sobre o significado da vitória de Lula e do PT e da derrota do Tarso Genro e do PT no Rio Grande do Sul. Mesmo assim, como contribuição ao debate, arrisco algumas notas e afirmações. Como disse o sociólogo Chico de Oliveira (FSP, p. esp. 12, 29.10.02), a vitória de Lula representa uma refundação do Brasil, só comparável a três outros momentos históricos do país – a Abolição, a proclamação da República e a Revolução de 30. Segundo ele, "pela primeira vez os dominados estão fazendo a história". Um operário metalúrgico, dirigente sindical, de esquerda, pela primeira vez na história ocidental chega à Presidência da República. O CONTEXTO Não dá para entender o significado e a amplitude da vitória de Lula sem referir alguns elementos contextuais. 1. O FIM DO SOCIALISMO REAL E O NEOLIBERALISMO EM CRISE Todo século XX foi permeado pela existência de dois projetos de sociedade. A Guerra Fria é o elemento histórico principal desta disputa, bem como a 'humanização' do capitalismo, expresso na social-democracia européia. A queda do muro de Berlim como símbolo do fim do socialismo real tornou historicamente possível o capitalismo em sua fase neoliberal, a partir de Pinochet, Reagan e Thatcher e a emergência da maior potência militar, econômica, política, ideológica da história, os EUA. Não havia mais contraponto nem alternativa possível nem viável. A vitória de Lula e do projeto democrático-popular são um novo momento na história, a construção de um projeto alternativo ao capitalismo neoliberal, num momento determinado da história e num país com o peso político e as dimensões continentais do Brasil. 2. O BRASIL DEMOCRÁTICO E O PAÍS MAIS INJUSTO DO MUNDO A décima economia do mundo não cresce economicamente há vinte anos. E jogou seu povo num dos salários mínimos mais baixos do mundo, num dos maiores índices de desemprego da história, na violência e criminalidade a níveis colombianos, numa economia com taxas de juro estratosféricas onde só os bancos e algumas transnacionais têm lucros astronômicos. A democracia brasileira, débil historicamente, vem sendo construída de baixo para cima nas últimas décadas, através dos movimentos sociais, das pastorais populares, das organizações de base, das experiências de geração de trabalho e renda, dos governos populares. Nos últimos cem anos, houve mais períodos de ditadura ou de arremedos democráticos que períodos de democracia substantiva. A VITÓRIA DE LULA E O FUTURO A vitória de Lula é do povo, é popular, antes de mais nada. Num país de quinhentos anos, onde jamais as elites abriram mão de um quinhão de seu poder, jamais precisaram 'perder os anéis para não perder os dedos', a democracia foi construída e é popular. E admite a pluralidade de idéias, não é excludente, mas ampara-se no poder popular, no fazer coletivo, na soberania conquistada, na solidariedade vivida e experimentada. Isso não quer dizer que a jornada vá ser fácil ou que as elites tenham se rendido ao poder popular. Será, tudo indica, uma travessia difícil, cheia de pedras, cachoeiras e precipícios. A mesma mídia que agora endeusa Lula e 'engole' o PT, só o faz porque não tem outro caminho. E porque sabe que uma verdadeira bomba relógio está armada, esperando que Lula, o PT, os movimentos sociais não saibam desarmá- la. A BOMBA RELÓGIO A melhor forma de enfrentar e resolver os problemas é ter a dimensão exata do seu tamanho e complexidade. Na verdade, há uma bomba relógio armada no Brasil, que o governo Lula deverá saber desarmar no devido tempo. Não será, pois, um governo fácil, livre de conflitos e dificuldades. Muito ao contrário. É preciso preparar-se para escolhas muito difíceis, às vezes contraditórias, e soluções que só virão a médio e longo prazo, se vierem. Abaixo, alguns elementos da bomba relógio. 1. A DÍVIDA INTERNA E EXTERNA Escreve Martin Wolf, ex-economista do Banco Mundial e colunista do Financial Times (FSP, 30.10.02, p. A-12): "A dívida líquida do setor público brasileiro explodiu, de 30% do Produto Interno Bruto (PIB) em 1994 para 42% às vésperas da desvalorização cambial do começo de 1999, e chegou a 59% em agosto último. Como aponta John Williamson, do Instituto de Economia Internacional (nota minha: um dos autores do Consenso de Washington), em agosto 42% da dívida interna do país estava denominada em dólares, 8% era corrigida pela inflação e 37% estava vinculada à taxa de juros do overnight do Banco Central. O mais importante é que 80% da dívida pública líquida e 70% da dívida pública bruta brasileira é doméstica. Uma moratória sobre essa dívida, portanto, devastaria a economia de seu país. Uma dívida elevada, boa parte dela vinculada a moedas estrangeiras, e majoritariamente detida por instituições domésticas, taxas de juros em disparada e uma taxa de câmbio em queda profunda representam uma combinação letal. E a situação é agravada pelo virtual desaparecimento do crescimento econômico: a previsão de consenso mais recente é de crescimento de 1,1% este ano. Mas mesmo com um crescimento de 4%, o nível de dívida atual só estaria estabilizado, levando em conta o superávit fiscal planejado pelo governo da ordem de 3,75% do PIB, caso as taxas reais de juros ficassem abaixo de 10,25%. Hoje, as taxas reais sobre empréstimos em moeda estrangeira são duas vezes mais altas." O que fazer, pergunta Martin Wolf. Ele vê e apresenta três alternativas: decretar moratória, o que levaria, segundo ele, a uma grande confusão e colocaria a economia do país sob estado de sítio; ou aderir aos planos do FMI, o que seria um compromisso insustentável; ou ainda, aumentar o superávit fiscal primário dos atuais 3,88% do PIB para 6%, o que seria a solução mais aceitável. Termina Martin Wolf: "O senhor (referindo-se a Lula) herda um país desprovido de recursos. A única questão é de que maneira responderá a isso. Pode escolher a moratória e enfrentar as conseqüências posteriores. Pode manter o rumo definido pelo seu antecessor, que provavelmente conduzirá a uma moratória. Ou pode fazer da restauração da confiança nas finanças brasileiras a sua prioridade suprema. O senhor deveria escolher a última alternativa, não porque é uma boa escolha, mas porque é a menos pavorosa. É preciso fazer do Brasil um país de crescimento estável e finanças públicas sólidas. Governar é escolher. Escolha bem." Boa parte do diagnóstico é correto. Os caminhos indicados são possíveis de serem seguidos. São todos, porém, expectativas e soluções dentro da lógica econômica americana. Qual poderia ser um quarto caminho para desarmar a bomba relógio, que não sacrificasse os pobres e trabalhadores e ao mesmo tempo pudesse ser negociado com os credores e os banqueiros, sem desestabilizar o país economicamente? 2. A ESTAGNAÇÃO ECONÕMICA Como dito acima, o país não cresce há vinte anos de forma sustentada, o que explica o desemprego, a degradação social, a perda de soberania, etc. Como voltar a crescer, sem a volta da inflação, sem o descontrole das finanças públicas, sem sacrificar os pobres? Segundo economistas, só para absorver mais de um milhão de jovens que chegam anualmente ao mercado de trabalho teria que haver um crescimento econômico anual de 5 a 6% por mais de cinco anos, taxa esta só alcançada pelo Brasil entre 1930 e 1980, quando foi o país que mais cresceu no Ocidente. Para haver crescimento econômico, precisa haver infra-estrutura adequada: estradas, portos, energia, mão de obra qualificada, etc., hoje não existente. Basta lembrar do 'apagão'. Não havendo crescimento econômico, o governo desacredita-se rapidamente. Como resolver o dilema? 3. A ALCA – Área de Livre Comércio das Américas Os EUA estão dando sinais de que querem negociar a ALCA, pois sabem que sem o Brasil não há ALCA. Será esta a única alternativa? A construção da ALCA está a caminho. Houve um Plebiscito em 2002, com participação de mais de dez milhões de brasileiros, contra sua efetivação. Ao mesmo tempo, coloca-se a questão do MERCOSUL, sua retomada e consolidação, embora as crises de Argentina e Uruguai não pareçam favorecê-lo neste momento. Como não ceder aos EUA, sem ao mesmo tempo abrir uma guerra? 4. O FMI (Fundo Monetário Internacional) E A SOBERANIA Os sucessivos acordos com o FMI tornaram o governo brasileiro refém de suas políticas. Qualquer medida – aumento do salário mínimo ou da gasolina, mudanças na taxa de juros – precisa haver consulta ao FMI. Ou seja, comprometeu-se a soberania nacioonal e a política econômica e social ficou refém do capital financeiro internacional. O superávit primário acertado com o FMI hoje é de 3,88% do PIB. Ou seja, o governo brasileiro tem que gastar 3,88% menos do que arrecada, para pagar os juros e o principal da dívida. Como vai sobrar ou de onde vai-se tirar dinheiro para a saúde, para a agricultura, para as políticas sociais, etc.? A pergunta é: como desamarrar o nó? 5. A DEGRADAÇÃO SOCIAL O desemprego, a fome, o sucateamento das políticas sociais, o salário mínimo irrisório são um retrato do país mais injusto do mundo, embora seja sua décima economia e tenha dentro dele uma Suíça correspondente a uma população de cerca de 40 milhões. Buscar políticas, como anunciado por Lula, de combate à fome exige recursos e programas de governo que tragam resultados imediatos, sem serem meramente assistencialistas ou políticas compensatórias. È preciso distribuir renda, produzir empregos, melhorar o salário. Senão não terá valido a pena todo trabalho, luta e esforço até chegar à Presidência. A demanda social reprimida, ou a chamada dívida social, precisa ter respostas. Onde buscar os recursos e como atender a tantas necessidades em quatro anos? 6. A CRIMINALIDADE E A VIOLÊNCIA No Rio de Janeiro e em São Paulo, com risco de se espalharem pelo país, há estados paralelos e uma rede organizada de narcotráfico que desafiam polícias e Estados oficiais. Como enfrentar o medo generalizado? Com políticas sociais e políticas públicas? Com aumento do efetivo policial, para o que se precisam muitos recursos financeiros? Todo este quadro também leva uma deterioração e perda de referência de valores, aliados a um consumismo desenfreado, a uma erotização crescente de tudo e uma financeirização da vida, dos sentimentos, da emoção e do afeto. O PRINCIPAL DESAFIO: DISTRIBUIÇÃO DE RENDA E CONSOLIDAÇÃO DA DEMOCRACIA Um país que teve poucos momentos democráticos e sempre teve uma das distribuições de renda mais injustas do mundo elegeu Lula e o PT para consolidar a democracia, dar vez e voz aos humilhados e ofendidos, e distribuir a renda de forma mais justa, com emprego, salário e terra. Não basta perseguir só um ou só outro objetivo. Parcelas das elites brasileiras descolaram-se do bloco de poder tradicional, dado o fracasso do projeto neoliberal, e resolveram fazer uma aposta no que eles imaginam um governo de centro-esquerda. Mas esta 'aliança', ainda informal, ainda não é garantia de que as necessárias reformas possam ser feitas com tranqüilidade, nem que o pacto social anunciado por Lula seja feito, até porque necessariamente terá que envolver setores sociais diferenciados, como o MST, a CUT, a FIESP (Federação Industrial de São Paulo), entre outros. O comportamento das forças políticas, econômicas e sociais e do próprio governo dará a medida de como avançará a democratização do Estado e da sociedade no próximo período e de quanto as elites aceitarão perder para haver melhor distribuição de renda, e em que ritmo acontecerão ambos os processos. AS RUPTURAS NECESSÁRIAS E POSSÍVEIS Já diziam os mais antigos e experientes que não se faz omelete sem quebrar os ovos. Ou, se é para alguém ganhar, alguém terá que perder. A mesma Rede Globo que hoje abre espaços generosos para Lula e que o enterrou diante de Collor, só espera sair de sua encalacrada financeira –está reestruturando sua enorme dívida de US$ 1,5 bilhão - para mostrar de que lado está, a não ser que consiga domesticar Lula e o PT. A questão a saber e a analisar é qual o tempo político, quais as alianças possíveis e necessárias sem perder a coerência e o rumo. A esperança suscitada pela vitória de Lula está muitos tons acima do que a maioria conseguia imaginar, seja no plano interno, seja no cenário internacional. O que aumenta a responsabilidade a exigência de cumprir os compromissos assumidos em quatro anos de governo. As massas populares, o povo sofrido que hoje endeusa Lula espera resultados e melhorias de vida a curto prazo, o que talvez não aconteça nem seja possível. Além disso, as elites brasileiras, agora aparentemente cordatas e manifestando apoio ao presidente eleito, jamais na história mostraram qualquer condescendência com os setores populares e suas organizações. Sempre agiram na base da exclusão, da chibata e da ditadura. O próprio Lula dirigente sindical sofreu isso na pele quando foi preso e sofreu intervenção no seu sindicato por ter organizado uma greve. Não há nenhuma razão para esperar uma mudança de atitude e concepção por parte das elites , a não ser a espera natural para saber o que os governantes farão, quem será beneficiado e quem sofrerá prejuízo. Os governos populares de municípios e Estados – vide Porto Alegre e o Rio Grande do Sul – são um exemplo vivo de como agem as elites quando seus privilégios começam a ser colocados em xeque. Não será diferente com relação ao governo Lula. É esperar para ver. As rupturas possíveis e necessárias serão garantidas pela consciência e organização popular. Por isso, 2003 será um ano muito difícil e os anos seguintes deverão ser mais difíceis ainda. Sem um amplo e permanente apoio popular e social, o governo Lula não conseguirá implementar seu programa e seus projetos. A lua-de-mel atual com setores conservadores e da mídia é temporária e vai até o início do governo. É preciso cuidar para que a lua-de-mel com a população sofrida que tanto esperou pela mudança seja duradoura e se fortaleça ao longo do tempo. Não tem, pois, nenhum sentido – ao contrário, são um desserviço – os movimentos de setores internos do PT, questionando o futuro governo antes de ele existir. Não compreendem o momento histórico, aliás, como tem acontecido historicamente nas revoluções e nos grandes momentos de transformação, quando os piores inimigos às vezes são os internos. A hora é de coesão política e social, porque 'muito chumbo grosso vem por aí'. UM NOVO RIO GRANDE? Entender o vendaval que atravessou o Rio Grande, com a derrota de Tarso Genro para governador e a vitória de Germano Rigotto, do PMDB, não é fácil neste momento, assim como é muito difícil imaginar o Estado sem o governo democrático- popular no próximo período. A frustração é muito grande, ainda mais se ligada à vitória de Lula presidente e todo espaço e potencialidades que a partir daí se abririam. Mesmo sob risco de a emoção falar mais alto que a razão, é preciso buscar enunciar algumas palavras e argumentos para explicar o que aconteceu. Até porque ajuda a superar a dor e a angústia de tantos militantes que há anos, décadas vêm doando suas vidas para um projeto de transformação e que tinha (ou tem) no Rio Grande e em Porto Alegre seus referenciais maiores, com orgulho indisfarçável de todos que participamos de sua construção. Nestas horas, a crítica e a autocrítica precisam ser duras. Eventualmente, será preciso cortar na própria carne para aprender as lições da história. OS NÚMEROS DA ELEIÇÃO 2002 O PT/RS elegeu a maior bancada de deputados federais – oito; elegeu a maior bancada de deputados estaduais – treze, mais uma deputada do PCdoB; elegeu (pela primeira vez) um dos dois senadores; Lula teve, no Rio Grande do Sul, 689.245 votos a mais do que José Serra, 467.827 votos a mais do que Tarso, 148.574 votos a mais do que Rigotto; Rigotto teve 319.261 votos a mais do que Tarso; Tarso teve 3.327 votos a mais que Rigotto em Porto Alegre (em 1998, Olívio fez 182.452 votos a mais que Britto em Porto Alegre). Nos 35 municípios governados pelo PT, Rigotto venceu em 22, com 1.039.681 votos, Tarso em 13, com 901.952 votos. AS RAZÕES DA DERROTA Como explicar os números contraditórios? Por um lado, o PT foi vitorioso no Rio Grande do Sul: Lula ganhou folgado, maior bancada de deputados federais e estaduais, um senador. Por outro, é derrotado para o governo do Estado, quase perde em Porto Alegre para governador e perde na maioria dos municípios que governa. A análise começa reconhecendo que houve uma derrota política e eleitoral, no caso do governo do Estado, ao contrário de 1994 quando Olívio Dutra e Antonio Britto, então do PMDB, enfrentaram-se no segundo turno e este ganhou por pequena margem. Então houve acúmulo político, que possibilitou a vitória em 1998. Agora, em 2002, a derrota implica em desacúmulo político, em questionamento do projeto democrático-popular ou de elementos dele, de desestímulo da militância, de crítica à pratica política e governamental do PT. Erros devem ser assumidos e corrigidos, um novo processo de acúmulo deverá ser construído. Enfim, há um novo momento histórico no Rio Grande, antecedendo a posse de Lula e o Fórum Social Mundial 2003. O esforço é começar a elencar os principais elementos da derrota político- eleitoral que, na minha opinião, são um conjunto de fatores, cada um com seu peso e sua importância. Sem esquecer que o PT mantém-se forte politica e eleitoralmente no Rio Grande do Sul, o que deve ser verificado e confirmado no próximo período. 1. O CERCO POLÍTICO E IDEOLÓGICO A elite conservadora gaúcha nunca engoliu o PT e os seus governos. Exemplo concreto disso é o fato de, mesmo após quatro governos sucessivos na prefeitura de Porto Alegre, o projeto era permanente e duramente questionado pela mídia (especialmente pela RBS – Rede Brasil Sul de Comunicações – afiliada da Rede Globo), pelos setores empresariais e por setores da intelectualidade da classe média. O Orçamento Participativo, mesmo sendo referido como modelo até pelo Banco Mundial, jamais foi aceito e reconhecido. O Fórum Social Mundial era preconceituosamente visto como um encontro esquerdista, estreito e pouco representativo. Em relação ao governo estadual, a atitude de oposição das elites conservadoras sempre foi raivosa e feroz. Na Assembléia Legislativa, a oposição montou CPIs, cujos resultados foram todos desmontados na Justiça, e nunca teve qualquer espaço para o diálogo construtivo. Nesta campanha eleitoral, em nenhum momento houve trégua. Manipularam-se pesquisas, conformou-se uma frente anti-PT integrada por todos os setores, os principais dirigentes empresariais viajaram por todo Estado em combate direto ao governo estadual e ao seu candidato. Além disso, é preciso lembrar que o Rio Grande do Sul tem uma tradição de bipolarização política que se repetiu neste momento histórico. O espectro político conformado pelo centro, centro-direita, direita, com apoio de setores de centro-esquerda (PDT- trabalhismo) assumiu a candidatura de Rigotto, ficando a Frente Popular (PT, PcdoB, PCB), mais o PSB e setores minoritários do PDT apoiando Tarso Genro. 2. O PARTIDO FRAGMENTADO O crescimento do PT nos últimos anos e a ocupação de espaços institucionais trouxe consigo vários problemas. Há um afastamento de presença e relação com os movimentos sociais e populares. O partido, crescentemente, passou a se preocupar com os espaços institucionais e a chamada 'grande política', perdendo substância no seu enraizamento de base e na luta direta e imediata pelos direitos do povo. A disputa interna e a fragmentação, pelo menos no Rio Grande do Sul, tornaram-se marca registrada. Nenhuma tendência interna controla mais de 25% da máquina partidária, há dezenas de grupos e sub-grupos, o que leva a alianças internas inconseqüentes, conchavos, disputas fratricidas entre companheiros. A conquista de governos e de espaços no Parlamento tirou os principais quadros políticos da inserção cotidiana na direção e na vida do partido, quanto também esvaziou os movimentos sociais, ONGs, pastorais populares. A busca de cargos e de CCs (Cargos em Comissão) tornou-se freqüentemente a motivação básica para a inserção partidária e as disputas internas. Luta-se mais por cargos, salários, controle e construção de 'máquinas' partidárias e eleitorais que pelo debate de idéias, metodologia de ação e realimentação do projeto e da utopia. As eleições de parlamentares e mesmo de executivos (as prévias) tornam-se meras disputas de espaços de poder, sem densidade programática e política, em cima de poderosas estruturas financeiras. Cada um quer mais poder e holofotes. 3. OS PROBLEMAS NOS GOVERNOS: A BUROCRATIZAÇÃO E O AUTORITARISMO Grande parte dos problemas partidários é transferida para os governos, situação agravada diante da conquista de uma estrutura grande e pesada como o governo do Estado com milhares de CCs e FGs (Funções Gratificadas). Acontecem rapidamente a burocratização, o apego aos cargos e salários, as disputas desqualificadas e boicotes entre integrantes do mesmo governo. Fruto das prévias que escolheram Olívio Dutra governador (a disputa interna em 1998 foi entre Olívio Dutra e Tarso Genro, vencida pelo primeiro por cerca de 200 votos, sob questionamento de sua lisura pelo segundo, que acabou por não aceitar ser vice na chapa) e da campanha posterior (setores vencidos na prévia não se engajaram ou engajaram-se tardiamente), houve uma composição de governo que excluiu setores partidários da equipe de governo ou contemplou-os minimamente, erro parcialmente corrigido após uma avaliação na metade do governo. Mas os ressentimentos permaneceram, assim como as críticas abertas ou veladas. Os setores partidários hegemônicos comportavam-se como tal, não abrindo espaços, enquanto os setores excluídos pareciam às vezes ser mais oposição que a própria oposição. Em muitos momentos também houve falta de diálogo do governo estadual, seja com o partido (parte dele colocou-se em oposição interna ao governo), seja com os movimentos sociais, especialmente os vinculados ao funcionalismo e à CUT – Central Única dos Trabalhadores. Estes, por sua vez, colocaram-se muitas vezes como oposição ao governo democrático-popular, sem compreender que estava em jogo um processo mais amplo e em disputa na sociedade um projeto de transformação, diante do que era necessário saber superar diferenças e divergências menores. Houve também dificuldades de comunicação do governo com a sociedade. Suas realizações foram muitas, mas desconhecidas pela população e até mesmo da militância partidária, que as descobriram em sua integralidade apenas na campanha de 2002, quando já era tarde. Contribuiu para isso o cerco permanente da mídia conservadora. 4. OS ERROS E EQUÍVOCOS DE CAMPANHA Miguel Rossetto, atual vice-governador, elencou no início de 2002 algumas razões contra a realização de uma prévia interna envolvendo os nomes do atual governador Olívio Dutra e do prefeito de Porto Alegre, Tarso Genro: a candidatura de Tarso significaria uma derrota interna do governo Olívio; a desaprovação do governo Olívio pelo PT daria discurso para a oposição; Tarso renunciar ao mandato de prefeito, depois de ter afastado José Fortunati e Raul Pont em prévia interna em 2000, soaria como uma traição. Seria cobrado pelo eleitorado; Olívio era melhor candidato, pelo domínio das questões de governo e pela capacidade de empolgar a militância. A prévia aconteceu, apesar dos esforços de muitos, inclusive da direção nacional e de Lula para a sua não realização, e Tarso venceu. Rossetto foi profético. A campanha eleitoral de Tarso Genro moveu-se sempre, fruto dos problemas e circunstâncias acima apontados, numa ambigüidade: ser ou não ser, assumir ou não assumir o governo estadual. A figura do governador Olívio Dutra apareceu uma única vez no segundo turno na campanha de televisão. Em muitos momentos, teve semelhanças com as ambigüidades da campanha de Serra a presidente. Com tudo isso, a campanha eleitoral para o governo estadual não atingiu a massa popular, não envolveu a população, não teve mística. Como disse um dirigente partidário; 'essa campanha não teve adesão do povo'. É de se ressalvar, no entanto, que o partido, apesar de todos os problemas, estava unido, a militância, especialmente nas últimas semanas, fez um esforço enorme e exemplar de empurrar a campanha, o que, afinal, revelou-se insuficiente, dados os problemas anteriormente apontados. O resultado eleitoral em Porto Alegre é exemplar. A renúncia, por exigência legal, de Tarso Genro ao cargo de prefeito, um ano após ter assumido o governo municipal numa disputa eleitoral já então muito dura e difícil, também antecedida por uma prévia interna, deixando o seu vice como titular durante quase todo governo, foi determinante para o resultado desastroso. A vitória em Porto Alegre no segundo foi por apenas 3 mil votos, uma cidade comandada pelo PT há quatro governos, onde Olívio ganhou de Britto em 1998 por 182 mil votos. Se houvesse em 2002 a repetição do resultado eleitoral de 1998 em Porto Alegre, Tarso Genro teria vencido por cerca de 50 mil votos a eleição para o governo do Estado. Houve também um equívoco de avaliação coletivo da coordenação de campanha, quando no primeiro turno tomou-se como adversário único e inimigo público número o ex-governador Antônio Britto, deixando, como dizem os gaúchos, de lombo liso o candidato do PMDB, Germano Rigotto, afinal vitorioso, que só foi atacado e tratado como adversário no segundo turno. 5. O ANTIPETISMO E A SOBERBA O crescimento do PT no Estado, sua aparente invencibilidade (Lula sempre ganhou no Rio Grande do Sul, quatro vitórias seguidas em Porto Alegre), aliado ao quase atávico 'orgulho' gaúcho, conduziu a uma espécie de soberba, também revelada na campanha para o governo do Estado. Criou-se a idéia, a imagem e muitas vezes a prática e o discurso dos 'donos' da verdade, dos que sempre sabem fazer e governar melhor, dos que têm resposta para tudo, dos que são os únicos certos. Esta atitude, além de ser bem aproveitada na campanha adversária de Rigotto, reforçou a postura dos que são contra o PT, reforçando-lhes o espaço social, num Estado onde a polarização política é tradicional, as disputas eleitorais são sempre ferrenhas e a oposição costuma ser dura, senão feroz. Com isso, diminuiu o espaço de ampliação eleitoral no segundo turno e a possibilidade de alianças partidárias e sociais. Cabe ressaltar, no entanto, que esta situação – antipetismo x soberba – não está consolidada na sociedade nem é irreversível, dada a vitória de Lula no Rio Grande e mesmo a votação que o PT obteve em plano estadual. DERROTA PARA NÓS MESMOS Resumindo e concluindo, pode-se dizer, sem medo de errar, que as maiores causas e razões da derrota foram internas. As prévias internas não deveriam ter sido realizadas, o partido precisa voltar às suas origens e aos seus referenciais históricos, é preciso enfrentar e superar a fragmentação que divide, a burocratização e a soberba, os governos do PT precisam fazer uma avaliação profunda. A DERROTA E AS CONSEQÜÊNCIAS Ainda é difícil medir, dada a proximidade dos acontecimentos, as conseqüências do resultado eleitoral. Pode-se, no entanto, imaginar o seguinte. Há uma evidente perda de poder político por parte da esquerda no Rio Grande e uma rearticulação, em novas bases, dos setores de centro e de direita, com apoio do PDT trabalhista. O PMDB de Rigotto não é o PMDB de Britto, e sim o PMDB do senador Pedro Simon: liberal clássico, mais aberto ao diálogo, mais flexível, mais próximo a Lula e ao próprio PT. Portanto, capaz de ocupar um espaço antes vazio, dentro de um novo cenário político. No campo da esquerda, não é descartada a hipótese de uma maior fragmentação interna do PT, com autodilaceramento interno, embora as tarefas suscitadas pelo governo Lula possam levar a uma certa prudência e comedimento nas avaliações e no embate interno. Olívio Dutra, apesar de tudo, sai fortalecido do processo e, ao longo do tempo, deverá ter seu legado e liderança ainda mais reconhecidos. Num momento imediato, o Fórum Social Mundial perde parte de seu brilho e charme, na medida em que é realizado no Estado em que o campo de esquerda foi derrotado. O GOVERNO RIGOTTO/PMDB: UM NOVO RIO GRANDE? O PMDB gaúcho sempre foi diferenciado em relação ao PMDB nacional. Mas vai fazer um governo de corte liberal, premido inclusive pela vitória de Lula no plano nacional. Deverá tentar manter o Orçamento Participativo, com modificações, o que deverá torná-lo inviável ao longo do tempo. Promete apoiar o Fórum Social Mundial, desde que seja mais plural. Sua marca maior, porém, deverá ser a oposição dura que sofrerá. Hoje o peso do PT no Rio Grande do Sul é inquestionável e foi, em certa medida, afirmado nas eleições. Os movimentos sociais não darão trégua ao novo governo. As milhares de lideranças sociais e comunitárias ligadas ao Orçamento Participativo, muitas não partidárias e não petistas, vão cobrar espaços de participação e decisão. O Rio Grande continua dividido ao meio. Aos poucos, setores refratários ao governo e ao programa democrático-popular, vinculados ao funcionalismo público, às classes médias, ao meio empresarial, especialmente pequenos e médios empreendedores, vão descobrir os avanços do governo Olívio na área da saúde, da agricultura, das políticas públicas, do desenvolvimento econômico, vão começar a fazer comparações com o governo Rigotto e cobrar coerência. Ou seja, prevê-se nos próximos quatro anos uma intensa polarização política. É possível e provável que o governo Olívio e o PT acabem reconhecidos por seus méritos e pelo menos parcialmente absolvidos dos seus fracassos e erros. Desde que a necessária autocrítica seja feita por todos os comprometidos com o projeto democrático-popular e, junto com o governo Lula, os rumos sejam corrigidos. Como disse alguém nos últimos dias, parafraseando alguém de outros tempos: às vezes um passo atrás hoje possibilita dois para frente amanhã. Que assim seja. * Selvino Heck, Da equipe de assessores do CAMP Em primeiro de novembro de dois mil e dois
Uma reflexão e avaliação ainda preliminares Diante do calor recente dos acontecimentos, alegria e entusiasmo de um lado, tristeza e dor infinitas de outro, é difícil ter um distanciamento suficiente para fazer uma avaliação conclusiva sobre o significado da vitória de Lula e do PT e da derrota do Tarso Genro e do PT no Rio Grande do Sul. Mesmo assim, como contribuição ao debate, arrisco algumas notas e afirmações. Como disse o sociólogo Chico de Oliveira (FSP, p. esp. 12, 29.10.02), a vitória de Lula representa uma refundação do Brasil, só comparável a três outros momentos históricos do país – a Abolição, a proclamação da República e a Revolução de 30. Segundo ele, "pela primeira vez os dominados estão fazendo a história". Um operário metalúrgico, dirigente sindical, de esquerda, pela primeira vez na história ocidental chega à Presidência da República. O CONTEXTO Não dá para entender o significado e a amplitude da vitória de Lula sem referir alguns elementos contextuais. 1. O FIM DO SOCIALISMO REAL E O NEOLIBERALISMO EM CRISE Todo século XX foi permeado pela existência de dois projetos de sociedade. A Guerra Fria é o elemento histórico principal desta disputa, bem como a 'humanização' do capitalismo, expresso na social-democracia européia. A queda do muro de Berlim como símbolo do fim do socialismo real tornou historicamente possível o capitalismo em sua fase neoliberal, a partir de Pinochet, Reagan e Thatcher e a emergência da maior potência militar, econômica, política, ideológica da história, os EUA. Não havia mais contraponto nem alternativa possível nem viável. A vitória de Lula e do projeto democrático-popular são um novo momento na história, a construção de um projeto alternativo ao capitalismo neoliberal, num momento determinado da história e num país com o peso político e as dimensões continentais do Brasil. 2. O BRASIL DEMOCRÁTICO E O PAÍS MAIS INJUSTO DO MUNDO A décima economia do mundo não cresce economicamente há vinte anos. E jogou seu povo num dos salários mínimos mais baixos do mundo, num dos maiores índices de desemprego da história, na violência e criminalidade a níveis colombianos, numa economia com taxas de juro estratosféricas onde só os bancos e algumas transnacionais têm lucros astronômicos. A democracia brasileira, débil historicamente, vem sendo construída de baixo para cima nas últimas décadas, através dos movimentos sociais, das pastorais populares, das organizações de base, das experiências de geração de trabalho e renda, dos governos populares. Nos últimos cem anos, houve mais períodos de ditadura ou de arremedos democráticos que períodos de democracia substantiva. A VITÓRIA DE LULA E O FUTURO A vitória de Lula é do povo, é popular, antes de mais nada. Num país de quinhentos anos, onde jamais as elites abriram mão de um quinhão de seu poder, jamais precisaram 'perder os anéis para não perder os dedos', a democracia foi construída e é popular. E admite a pluralidade de idéias, não é excludente, mas ampara-se no poder popular, no fazer coletivo, na soberania conquistada, na solidariedade vivida e experimentada. Isso não quer dizer que a jornada vá ser fácil ou que as elites tenham se rendido ao poder popular. Será, tudo indica, uma travessia difícil, cheia de pedras, cachoeiras e precipícios. A mesma mídia que agora endeusa Lula e 'engole' o PT, só o faz porque não tem outro caminho. E porque sabe que uma verdadeira bomba relógio está armada, esperando que Lula, o PT, os movimentos sociais não saibam desarmá- la. A BOMBA RELÓGIO A melhor forma de enfrentar e resolver os problemas é ter a dimensão exata do seu tamanho e complexidade. Na verdade, há uma bomba relógio armada no Brasil, que o governo Lula deverá saber desarmar no devido tempo. Não será, pois, um governo fácil, livre de conflitos e dificuldades. Muito ao contrário. É preciso preparar-se para escolhas muito difíceis, às vezes contraditórias, e soluções que só virão a médio e longo prazo, se vierem. Abaixo, alguns elementos da bomba relógio. 1. A DÍVIDA INTERNA E EXTERNA Escreve Martin Wolf, ex-economista do Banco Mundial e colunista do Financial Times (FSP, 30.10.02, p. A-12): "A dívida líquida do setor público brasileiro explodiu, de 30% do Produto Interno Bruto (PIB) em 1994 para 42% às vésperas da desvalorização cambial do começo de 1999, e chegou a 59% em agosto último. Como aponta John Williamson, do Instituto de Economia Internacional (nota minha: um dos autores do Consenso de Washington), em agosto 42% da dívida interna do país estava denominada em dólares, 8% era corrigida pela inflação e 37% estava vinculada à taxa de juros do overnight do Banco Central. O mais importante é que 80% da dívida pública líquida e 70% da dívida pública bruta brasileira é doméstica. Uma moratória sobre essa dívida, portanto, devastaria a economia de seu país. Uma dívida elevada, boa parte dela vinculada a moedas estrangeiras, e majoritariamente detida por instituições domésticas, taxas de juros em disparada e uma taxa de câmbio em queda profunda representam uma combinação letal. E a situação é agravada pelo virtual desaparecimento do crescimento econômico: a previsão de consenso mais recente é de crescimento de 1,1% este ano. Mas mesmo com um crescimento de 4%, o nível de dívida atual só estaria estabilizado, levando em conta o superávit fiscal planejado pelo governo da ordem de 3,75% do PIB, caso as taxas reais de juros ficassem abaixo de 10,25%. Hoje, as taxas reais sobre empréstimos em moeda estrangeira são duas vezes mais altas." O que fazer, pergunta Martin Wolf. Ele vê e apresenta três alternativas: decretar moratória, o que levaria, segundo ele, a uma grande confusão e colocaria a economia do país sob estado de sítio; ou aderir aos planos do FMI, o que seria um compromisso insustentável; ou ainda, aumentar o superávit fiscal primário dos atuais 3,88% do PIB para 6%, o que seria a solução mais aceitável. Termina Martin Wolf: "O senhor (referindo-se a Lula) herda um país desprovido de recursos. A única questão é de que maneira responderá a isso. Pode escolher a moratória e enfrentar as conseqüências posteriores. Pode manter o rumo definido pelo seu antecessor, que provavelmente conduzirá a uma moratória. Ou pode fazer da restauração da confiança nas finanças brasileiras a sua prioridade suprema. O senhor deveria escolher a última alternativa, não porque é uma boa escolha, mas porque é a menos pavorosa. É preciso fazer do Brasil um país de crescimento estável e finanças públicas sólidas. Governar é escolher. Escolha bem." Boa parte do diagnóstico é correto. Os caminhos indicados são possíveis de serem seguidos. São todos, porém, expectativas e soluções dentro da lógica econômica americana. Qual poderia ser um quarto caminho para desarmar a bomba relógio, que não sacrificasse os pobres e trabalhadores e ao mesmo tempo pudesse ser negociado com os credores e os banqueiros, sem desestabilizar o país economicamente? 2. A ESTAGNAÇÃO ECONÕMICA Como dito acima, o país não cresce há vinte anos de forma sustentada, o que explica o desemprego, a degradação social, a perda de soberania, etc. Como voltar a crescer, sem a volta da inflação, sem o descontrole das finanças públicas, sem sacrificar os pobres? Segundo economistas, só para absorver mais de um milhão de jovens que chegam anualmente ao mercado de trabalho teria que haver um crescimento econômico anual de 5 a 6% por mais de cinco anos, taxa esta só alcançada pelo Brasil entre 1930 e 1980, quando foi o país que mais cresceu no Ocidente. Para haver crescimento econômico, precisa haver infra-estrutura adequada: estradas, portos, energia, mão de obra qualificada, etc., hoje não existente. Basta lembrar do 'apagão'. Não havendo crescimento econômico, o governo desacredita-se rapidamente. Como resolver o dilema? 3. A ALCA – Área de Livre Comércio das Américas Os EUA estão dando sinais de que querem negociar a ALCA, pois sabem que sem o Brasil não há ALCA. Será esta a única alternativa? A construção da ALCA está a caminho. Houve um Plebiscito em 2002, com participação de mais de dez milhões de brasileiros, contra sua efetivação. Ao mesmo tempo, coloca-se a questão do MERCOSUL, sua retomada e consolidação, embora as crises de Argentina e Uruguai não pareçam favorecê-lo neste momento. Como não ceder aos EUA, sem ao mesmo tempo abrir uma guerra? 4. O FMI (Fundo Monetário Internacional) E A SOBERANIA Os sucessivos acordos com o FMI tornaram o governo brasileiro refém de suas políticas. Qualquer medida – aumento do salário mínimo ou da gasolina, mudanças na taxa de juros – precisa haver consulta ao FMI. Ou seja, comprometeu-se a soberania nacioonal e a política econômica e social ficou refém do capital financeiro internacional. O superávit primário acertado com o FMI hoje é de 3,88% do PIB. Ou seja, o governo brasileiro tem que gastar 3,88% menos do que arrecada, para pagar os juros e o principal da dívida. Como vai sobrar ou de onde vai-se tirar dinheiro para a saúde, para a agricultura, para as políticas sociais, etc.? A pergunta é: como desamarrar o nó? 5. A DEGRADAÇÃO SOCIAL O desemprego, a fome, o sucateamento das políticas sociais, o salário mínimo irrisório são um retrato do país mais injusto do mundo, embora seja sua décima economia e tenha dentro dele uma Suíça correspondente a uma população de cerca de 40 milhões. Buscar políticas, como anunciado por Lula, de combate à fome exige recursos e programas de governo que tragam resultados imediatos, sem serem meramente assistencialistas ou políticas compensatórias. È preciso distribuir renda, produzir empregos, melhorar o salário. Senão não terá valido a pena todo trabalho, luta e esforço até chegar à Presidência. A demanda social reprimida, ou a chamada dívida social, precisa ter respostas. Onde buscar os recursos e como atender a tantas necessidades em quatro anos? 6. A CRIMINALIDADE E A VIOLÊNCIA No Rio de Janeiro e em São Paulo, com risco de se espalharem pelo país, há estados paralelos e uma rede organizada de narcotráfico que desafiam polícias e Estados oficiais. Como enfrentar o medo generalizado? Com políticas sociais e políticas públicas? Com aumento do efetivo policial, para o que se precisam muitos recursos financeiros? Todo este quadro também leva uma deterioração e perda de referência de valores, aliados a um consumismo desenfreado, a uma erotização crescente de tudo e uma financeirização da vida, dos sentimentos, da emoção e do afeto. O PRINCIPAL DESAFIO: DISTRIBUIÇÃO DE RENDA E CONSOLIDAÇÃO DA DEMOCRACIA Um país que teve poucos momentos democráticos e sempre teve uma das distribuições de renda mais injustas do mundo elegeu Lula e o PT para consolidar a democracia, dar vez e voz aos humilhados e ofendidos, e distribuir a renda de forma mais justa, com emprego, salário e terra. Não basta perseguir só um ou só outro objetivo. Parcelas das elites brasileiras descolaram-se do bloco de poder tradicional, dado o fracasso do projeto neoliberal, e resolveram fazer uma aposta no que eles imaginam um governo de centro-esquerda. Mas esta 'aliança', ainda informal, ainda não é garantia de que as necessárias reformas possam ser feitas com tranqüilidade, nem que o pacto social anunciado por Lula seja feito, até porque necessariamente terá que envolver setores sociais diferenciados, como o MST, a CUT, a FIESP (Federação Industrial de São Paulo), entre outros. O comportamento das forças políticas, econômicas e sociais e do próprio governo dará a medida de como avançará a democratização do Estado e da sociedade no próximo período e de quanto as elites aceitarão perder para haver melhor distribuição de renda, e em que ritmo acontecerão ambos os processos. AS RUPTURAS NECESSÁRIAS E POSSÍVEIS Já diziam os mais antigos e experientes que não se faz omelete sem quebrar os ovos. Ou, se é para alguém ganhar, alguém terá que perder. A mesma Rede Globo que hoje abre espaços generosos para Lula e que o enterrou diante de Collor, só espera sair de sua encalacrada financeira –está reestruturando sua enorme dívida de US$ 1,5 bilhão - para mostrar de que lado está, a não ser que consiga domesticar Lula e o PT. A questão a saber e a analisar é qual o tempo político, quais as alianças possíveis e necessárias sem perder a coerência e o rumo. A esperança suscitada pela vitória de Lula está muitos tons acima do que a maioria conseguia imaginar, seja no plano interno, seja no cenário internacional. O que aumenta a responsabilidade a exigência de cumprir os compromissos assumidos em quatro anos de governo. As massas populares, o povo sofrido que hoje endeusa Lula espera resultados e melhorias de vida a curto prazo, o que talvez não aconteça nem seja possível. Além disso, as elites brasileiras, agora aparentemente cordatas e manifestando apoio ao presidente eleito, jamais na história mostraram qualquer condescendência com os setores populares e suas organizações. Sempre agiram na base da exclusão, da chibata e da ditadura. O próprio Lula dirigente sindical sofreu isso na pele quando foi preso e sofreu intervenção no seu sindicato por ter organizado uma greve. Não há nenhuma razão para esperar uma mudança de atitude e concepção por parte das elites , a não ser a espera natural para saber o que os governantes farão, quem será beneficiado e quem sofrerá prejuízo. Os governos populares de municípios e Estados – vide Porto Alegre e o Rio Grande do Sul – são um exemplo vivo de como agem as elites quando seus privilégios começam a ser colocados em xeque. Não será diferente com relação ao governo Lula. É esperar para ver. As rupturas possíveis e necessárias serão garantidas pela consciência e organização popular. Por isso, 2003 será um ano muito difícil e os anos seguintes deverão ser mais difíceis ainda. Sem um amplo e permanente apoio popular e social, o governo Lula não conseguirá implementar seu programa e seus projetos. A lua-de-mel atual com setores conservadores e da mídia é temporária e vai até o início do governo. É preciso cuidar para que a lua-de-mel com a população sofrida que tanto esperou pela mudança seja duradoura e se fortaleça ao longo do tempo. Não tem, pois, nenhum sentido – ao contrário, são um desserviço – os movimentos de setores internos do PT, questionando o futuro governo antes de ele existir. Não compreendem o momento histórico, aliás, como tem acontecido historicamente nas revoluções e nos grandes momentos de transformação, quando os piores inimigos às vezes são os internos. A hora é de coesão política e social, porque 'muito chumbo grosso vem por aí'. UM NOVO RIO GRANDE? Entender o vendaval que atravessou o Rio Grande, com a derrota de Tarso Genro para governador e a vitória de Germano Rigotto, do PMDB, não é fácil neste momento, assim como é muito difícil imaginar o Estado sem o governo democrático- popular no próximo período. A frustração é muito grande, ainda mais se ligada à vitória de Lula presidente e todo espaço e potencialidades que a partir daí se abririam. Mesmo sob risco de a emoção falar mais alto que a razão, é preciso buscar enunciar algumas palavras e argumentos para explicar o que aconteceu. Até porque ajuda a superar a dor e a angústia de tantos militantes que há anos, décadas vêm doando suas vidas para um projeto de transformação e que tinha (ou tem) no Rio Grande e em Porto Alegre seus referenciais maiores, com orgulho indisfarçável de todos que participamos de sua construção. Nestas horas, a crítica e a autocrítica precisam ser duras. Eventualmente, será preciso cortar na própria carne para aprender as lições da história. OS NÚMEROS DA ELEIÇÃO 2002 O PT/RS elegeu a maior bancada de deputados federais – oito; elegeu a maior bancada de deputados estaduais – treze, mais uma deputada do PCdoB; elegeu (pela primeira vez) um dos dois senadores; Lula teve, no Rio Grande do Sul, 689.245 votos a mais do que José Serra, 467.827 votos a mais do que Tarso, 148.574 votos a mais do que Rigotto; Rigotto teve 319.261 votos a mais do que Tarso; Tarso teve 3.327 votos a mais que Rigotto em Porto Alegre (em 1998, Olívio fez 182.452 votos a mais que Britto em Porto Alegre). Nos 35 municípios governados pelo PT, Rigotto venceu em 22, com 1.039.681 votos, Tarso em 13, com 901.952 votos. AS RAZÕES DA DERROTA Como explicar os números contraditórios? Por um lado, o PT foi vitorioso no Rio Grande do Sul: Lula ganhou folgado, maior bancada de deputados federais e estaduais, um senador. Por outro, é derrotado para o governo do Estado, quase perde em Porto Alegre para governador e perde na maioria dos municípios que governa. A análise começa reconhecendo que houve uma derrota política e eleitoral, no caso do governo do Estado, ao contrário de 1994 quando Olívio Dutra e Antonio Britto, então do PMDB, enfrentaram-se no segundo turno e este ganhou por pequena margem. Então houve acúmulo político, que possibilitou a vitória em 1998. Agora, em 2002, a derrota implica em desacúmulo político, em questionamento do projeto democrático-popular ou de elementos dele, de desestímulo da militância, de crítica à pratica política e governamental do PT. Erros devem ser assumidos e corrigidos, um novo processo de acúmulo deverá ser construído. Enfim, há um novo momento histórico no Rio Grande, antecedendo a posse de Lula e o Fórum Social Mundial 2003. O esforço é começar a elencar os principais elementos da derrota político- eleitoral que, na minha opinião, são um conjunto de fatores, cada um com seu peso e sua importância. Sem esquecer que o PT mantém-se forte politica e eleitoralmente no Rio Grande do Sul, o que deve ser verificado e confirmado no próximo período. 1. O CERCO POLÍTICO E IDEOLÓGICO A elite conservadora gaúcha nunca engoliu o PT e os seus governos. Exemplo concreto disso é o fato de, mesmo após quatro governos sucessivos na prefeitura de Porto Alegre, o projeto era permanente e duramente questionado pela mídia (especialmente pela RBS – Rede Brasil Sul de Comunicações – afiliada da Rede Globo), pelos setores empresariais e por setores da intelectualidade da classe média. O Orçamento Participativo, mesmo sendo referido como modelo até pelo Banco Mundial, jamais foi aceito e reconhecido. O Fórum Social Mundial era preconceituosamente visto como um encontro esquerdista, estreito e pouco representativo. Em relação ao governo estadual, a atitude de oposição das elites conservadoras sempre foi raivosa e feroz. Na Assembléia Legislativa, a oposição montou CPIs, cujos resultados foram todos desmontados na Justiça, e nunca teve qualquer espaço para o diálogo construtivo. Nesta campanha eleitoral, em nenhum momento houve trégua. Manipularam-se pesquisas, conformou-se uma frente anti-PT integrada por todos os setores, os principais dirigentes empresariais viajaram por todo Estado em combate direto ao governo estadual e ao seu candidato. Além disso, é preciso lembrar que o Rio Grande do Sul tem uma tradição de bipolarização política que se repetiu neste momento histórico. O espectro político conformado pelo centro, centro-direita, direita, com apoio de setores de centro-esquerda (PDT- trabalhismo) assumiu a candidatura de Rigotto, ficando a Frente Popular (PT, PcdoB, PCB), mais o PSB e setores minoritários do PDT apoiando Tarso Genro. 2. O PARTIDO FRAGMENTADO O crescimento do PT nos últimos anos e a ocupação de espaços institucionais trouxe consigo vários problemas. Há um afastamento de presença e relação com os movimentos sociais e populares. O partido, crescentemente, passou a se preocupar com os espaços institucionais e a chamada 'grande política', perdendo substância no seu enraizamento de base e na luta direta e imediata pelos direitos do povo. A disputa interna e a fragmentação, pelo menos no Rio Grande do Sul, tornaram-se marca registrada. Nenhuma tendência interna controla mais de 25% da máquina partidária, há dezenas de grupos e sub-grupos, o que leva a alianças internas inconseqüentes, conchavos, disputas fratricidas entre companheiros. A conquista de governos e de espaços no Parlamento tirou os principais quadros políticos da inserção cotidiana na direção e na vida do partido, quanto também esvaziou os movimentos sociais, ONGs, pastorais populares. A busca de cargos e de CCs (Cargos em Comissão) tornou-se freqüentemente a motivação básica para a inserção partidária e as disputas internas. Luta-se mais por cargos, salários, controle e construção de 'máquinas' partidárias e eleitorais que pelo debate de idéias, metodologia de ação e realimentação do projeto e da utopia. As eleições de parlamentares e mesmo de executivos (as prévias) tornam-se meras disputas de espaços de poder, sem densidade programática e política, em cima de poderosas estruturas financeiras. Cada um quer mais poder e holofotes. 3. OS PROBLEMAS NOS GOVERNOS: A BUROCRATIZAÇÃO E O AUTORITARISMO Grande parte dos problemas partidários é transferida para os governos, situação agravada diante da conquista de uma estrutura grande e pesada como o governo do Estado com milhares de CCs e FGs (Funções Gratificadas). Acontecem rapidamente a burocratização, o apego aos cargos e salários, as disputas desqualificadas e boicotes entre integrantes do mesmo governo. Fruto das prévias que escolheram Olívio Dutra governador (a disputa interna em 1998 foi entre Olívio Dutra e Tarso Genro, vencida pelo primeiro por cerca de 200 votos, sob questionamento de sua lisura pelo segundo, que acabou por não aceitar ser vice na chapa) e da campanha posterior (setores vencidos na prévia não se engajaram ou engajaram-se tardiamente), houve uma composição de governo que excluiu setores partidários da equipe de governo ou contemplou-os minimamente, erro parcialmente corrigido após uma avaliação na metade do governo. Mas os ressentimentos permaneceram, assim como as críticas abertas ou veladas. Os setores partidários hegemônicos comportavam-se como tal, não abrindo espaços, enquanto os setores excluídos pareciam às vezes ser mais oposição que a própria oposição. Em muitos momentos também houve falta de diálogo do governo estadual, seja com o partido (parte dele colocou-se em oposição interna ao governo), seja com os movimentos sociais, especialmente os vinculados ao funcionalismo e à CUT – Central Única dos Trabalhadores. Estes, por sua vez, colocaram-se muitas vezes como oposição ao governo democrático-popular, sem compreender que estava em jogo um processo mais amplo e em disputa na sociedade um projeto de transformação, diante do que era necessário saber superar diferenças e divergências menores. Houve também dificuldades de comunicação do governo com a sociedade. Suas realizações foram muitas, mas desconhecidas pela população e até mesmo da militância partidária, que as descobriram em sua integralidade apenas na campanha de 2002, quando já era tarde. Contribuiu para isso o cerco permanente da mídia conservadora. 4. OS ERROS E EQUÍVOCOS DE CAMPANHA Miguel Rossetto, atual vice-governador, elencou no início de 2002 algumas razões contra a realização de uma prévia interna envolvendo os nomes do atual governador Olívio Dutra e do prefeito de Porto Alegre, Tarso Genro: a candidatura de Tarso significaria uma derrota interna do governo Olívio; a desaprovação do governo Olívio pelo PT daria discurso para a oposição; Tarso renunciar ao mandato de prefeito, depois de ter afastado José Fortunati e Raul Pont em prévia interna em 2000, soaria como uma traição. Seria cobrado pelo eleitorado; Olívio era melhor candidato, pelo domínio das questões de governo e pela capacidade de empolgar a militância. A prévia aconteceu, apesar dos esforços de muitos, inclusive da direção nacional e de Lula para a sua não realização, e Tarso venceu. Rossetto foi profético. A campanha eleitoral de Tarso Genro moveu-se sempre, fruto dos problemas e circunstâncias acima apontados, numa ambigüidade: ser ou não ser, assumir ou não assumir o governo estadual. A figura do governador Olívio Dutra apareceu uma única vez no segundo turno na campanha de televisão. Em muitos momentos, teve semelhanças com as ambigüidades da campanha de Serra a presidente. Com tudo isso, a campanha eleitoral para o governo estadual não atingiu a massa popular, não envolveu a população, não teve mística. Como disse um dirigente partidário; 'essa campanha não teve adesão do povo'. É de se ressalvar, no entanto, que o partido, apesar de todos os problemas, estava unido, a militância, especialmente nas últimas semanas, fez um esforço enorme e exemplar de empurrar a campanha, o que, afinal, revelou-se insuficiente, dados os problemas anteriormente apontados. O resultado eleitoral em Porto Alegre é exemplar. A renúncia, por exigência legal, de Tarso Genro ao cargo de prefeito, um ano após ter assumido o governo municipal numa disputa eleitoral já então muito dura e difícil, também antecedida por uma prévia interna, deixando o seu vice como titular durante quase todo governo, foi determinante para o resultado desastroso. A vitória em Porto Alegre no segundo foi por apenas 3 mil votos, uma cidade comandada pelo PT há quatro governos, onde Olívio ganhou de Britto em 1998 por 182 mil votos. Se houvesse em 2002 a repetição do resultado eleitoral de 1998 em Porto Alegre, Tarso Genro teria vencido por cerca de 50 mil votos a eleição para o governo do Estado. Houve também um equívoco de avaliação coletivo da coordenação de campanha, quando no primeiro turno tomou-se como adversário único e inimigo público número o ex-governador Antônio Britto, deixando, como dizem os gaúchos, de lombo liso o candidato do PMDB, Germano Rigotto, afinal vitorioso, que só foi atacado e tratado como adversário no segundo turno. 5. O ANTIPETISMO E A SOBERBA O crescimento do PT no Estado, sua aparente invencibilidade (Lula sempre ganhou no Rio Grande do Sul, quatro vitórias seguidas em Porto Alegre), aliado ao quase atávico 'orgulho' gaúcho, conduziu a uma espécie de soberba, também revelada na campanha para o governo do Estado. Criou-se a idéia, a imagem e muitas vezes a prática e o discurso dos 'donos' da verdade, dos que sempre sabem fazer e governar melhor, dos que têm resposta para tudo, dos que são os únicos certos. Esta atitude, além de ser bem aproveitada na campanha adversária de Rigotto, reforçou a postura dos que são contra o PT, reforçando-lhes o espaço social, num Estado onde a polarização política é tradicional, as disputas eleitorais são sempre ferrenhas e a oposição costuma ser dura, senão feroz. Com isso, diminuiu o espaço de ampliação eleitoral no segundo turno e a possibilidade de alianças partidárias e sociais. Cabe ressaltar, no entanto, que esta situação – antipetismo x soberba – não está consolidada na sociedade nem é irreversível, dada a vitória de Lula no Rio Grande e mesmo a votação que o PT obteve em plano estadual. DERROTA PARA NÓS MESMOS Resumindo e concluindo, pode-se dizer, sem medo de errar, que as maiores causas e razões da derrota foram internas. As prévias internas não deveriam ter sido realizadas, o partido precisa voltar às suas origens e aos seus referenciais históricos, é preciso enfrentar e superar a fragmentação que divide, a burocratização e a soberba, os governos do PT precisam fazer uma avaliação profunda. A DERROTA E AS CONSEQÜÊNCIAS Ainda é difícil medir, dada a proximidade dos acontecimentos, as conseqüências do resultado eleitoral. Pode-se, no entanto, imaginar o seguinte. Há uma evidente perda de poder político por parte da esquerda no Rio Grande e uma rearticulação, em novas bases, dos setores de centro e de direita, com apoio do PDT trabalhista. O PMDB de Rigotto não é o PMDB de Britto, e sim o PMDB do senador Pedro Simon: liberal clássico, mais aberto ao diálogo, mais flexível, mais próximo a Lula e ao próprio PT. Portanto, capaz de ocupar um espaço antes vazio, dentro de um novo cenário político. No campo da esquerda, não é descartada a hipótese de uma maior fragmentação interna do PT, com autodilaceramento interno, embora as tarefas suscitadas pelo governo Lula possam levar a uma certa prudência e comedimento nas avaliações e no embate interno. Olívio Dutra, apesar de tudo, sai fortalecido do processo e, ao longo do tempo, deverá ter seu legado e liderança ainda mais reconhecidos. Num momento imediato, o Fórum Social Mundial perde parte de seu brilho e charme, na medida em que é realizado no Estado em que o campo de esquerda foi derrotado. O GOVERNO RIGOTTO/PMDB: UM NOVO RIO GRANDE? O PMDB gaúcho sempre foi diferenciado em relação ao PMDB nacional. Mas vai fazer um governo de corte liberal, premido inclusive pela vitória de Lula no plano nacional. Deverá tentar manter o Orçamento Participativo, com modificações, o que deverá torná-lo inviável ao longo do tempo. Promete apoiar o Fórum Social Mundial, desde que seja mais plural. Sua marca maior, porém, deverá ser a oposição dura que sofrerá. Hoje o peso do PT no Rio Grande do Sul é inquestionável e foi, em certa medida, afirmado nas eleições. Os movimentos sociais não darão trégua ao novo governo. As milhares de lideranças sociais e comunitárias ligadas ao Orçamento Participativo, muitas não partidárias e não petistas, vão cobrar espaços de participação e decisão. O Rio Grande continua dividido ao meio. Aos poucos, setores refratários ao governo e ao programa democrático-popular, vinculados ao funcionalismo público, às classes médias, ao meio empresarial, especialmente pequenos e médios empreendedores, vão descobrir os avanços do governo Olívio na área da saúde, da agricultura, das políticas públicas, do desenvolvimento econômico, vão começar a fazer comparações com o governo Rigotto e cobrar coerência. Ou seja, prevê-se nos próximos quatro anos uma intensa polarização política. É possível e provável que o governo Olívio e o PT acabem reconhecidos por seus méritos e pelo menos parcialmente absolvidos dos seus fracassos e erros. Desde que a necessária autocrítica seja feita por todos os comprometidos com o projeto democrático-popular e, junto com o governo Lula, os rumos sejam corrigidos. Como disse alguém nos últimos dias, parafraseando alguém de outros tempos: às vezes um passo atrás hoje possibilita dois para frente amanhã. Que assim seja. * Selvino Heck, Da equipe de assessores do CAMP Em primeiro de novembro de dois mil e dois
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