O quarto problema
04/12/2002
- Opinión
O Brasil tem três grandes problemas visíveis: a economia estagnada, a
renda concentrada e a pobreza histórica. Há um quarto grande
problema invisível: a idéia de que esses três problemas se resolvem
automática e sucessivamente o crescimento distribuiria a renda e
essa distribuição erradicaria a pobreza
A idéia de que, depois de crescer, a renda seria distribuída foi uma
das maiores mentiras arquitetadas pelos poderosos para enganar o
povo. Durante 100 anos, o Brasil foi um recordista em crescimento e
recordista em concentração da renda
Ao longo do século XX, o Brasil teve uma elevada taxa de crescimento
econômico, mas a renda se concentrou e a pobreza se agravou para
milhões de brasileiros. Na verdade, o Brasil cresceu graças a uma
engenharia da concentração da renda, executada por meio de
sofisticados instrumentos de política econômica, combinando inflação,
taxas de juros, subsídios, políticas salariais e correções
monetárias. O logro da distribuição de renda depois do crescimento
não foi menor que a mentira de que ela seria suficiente para atender
às necessidades dos pobres a população brasileira acredita que
emprego e salário conseguem erradicar o quadro da pobreza
Mas a distribuição da renda, por meio de aumento do salário-mínimo,
não permitirá suprir as necessidades básicas da população
Em primeiro lugar, pelo simples fato de que esses aumentos não serão
suficientes para cobrir os custos dos bens e serviços essenciais, se
eles tiverem de ser comprados. Uma melhoria na distribuição da renda,
como o aumento proposto no salário-mínimo de R$ 200 para R$ 240, R$
250 ou R$ 300, não muda o quadro da pobreza. O assalariado vai
comprar um pouco mais de comida... talvez um sapato. Mas ele não vai
conseguir pagar escola, plano de saúde, nem colocar água e esgoto em
sua casa. Estão enganando o povo quando dizem que um ligeiro aumento
no salário-mínimo diminuiria a tragédia social da pobreza
Em segundo lugar, porque aumentos elevados (além de continuarem
insuficientes) são impossíveis. Por causa das limitações financeiras,
o setor público não tem como cobrir suas contas para garantir
aumentos elevados nos salários. Toda a renda nacional, distribuída a
todos os brasileiros adultos, daria mais ou menos R$ 900 por mês
para cada um deles ainda insuficiente para pagar despesas com
escola, saúde e moradia
Isto devido às limitações econômicas, pois a perversa estrutura
industrial brasileira produz para os ricos, e a economia quebraria se
os ricos não pudessem comprar seus produtos. Também por limitações
políticas, os grandes aumentos não ocorrerão, porque no Brasil todos
defendem a distribuição da renda, mas cada um quer abocanhar um
pedacinho maior da renda nacional
No Brasil, a palavra distribuição é usada no sentido de aumento, como
se fosse possível distribuir com todos ganhando ao mesmo tempo; ao
ponto de que muitos dos salários de alguns trabalhadores são
definidos em número de salários-mínimos: quando sobe o mínimo, sobe
também o máximo, e os empresários aumentam os preços, mantendo-se
inalterada a concentração
A pobreza não desaparece com a distribuição da renda, mas com a
garantia de escolas de qualidade para todas as crianças; de um
sistema público de saúde eficiente e universal; de moradia com água,
esgoto e coleta de lixo; e uma renda mensal, mesmo que pequena. A
abolição da pobreza, como a abolição da escravidão, só será
conseguida no Brasil por meio de políticas sociais
Um conjunto de políticas sociais que erradiquem inteiramente a
pobreza no Brasil custaria não mais do que R$ 40 bilhões por ano
apenas 3% da renda nacional, menos de um décimo da receita prevista
para o setor público brasileiro neste ano. Aplicando diretamente na
erradicação da pobreza, com esse dinheiro não faríamos apenas a
segunda abolição (abolição das necessidades essenciais), mas
realizaríamos também uma distribuição da renda e induziríamos o
crescimento econômico, subvertendo a lógica tradicional: no lugar de
crescer para então distribuir e depois abolir a pobreza, abolir a
pobreza para distribuir renda e crescer
Mas essa mudança de lógica não ocorre por causa do quinto problema: a
falta de capacidade da elite para se indignar diante da pobreza de
milhões de brasileiros. Sem a indignação, não há urgência para
resolver a pobreza
Sem a urgência, é natural o acomodamento em uma lógica que mostrou
sua falência, mas é cômoda para essa elite, que continua prometendo
crescer para distribuir renda e assim erradicar o quadro trágico da
pobreza social brasileira.
* Cristovam Buarque. Professor do CDS/UnB.
https://www.alainet.org/es/node/106669
Del mismo autor
- 2012 - Cúpula do Futuro 09/06/2011
- La post-universidad 03/11/2005
- Universidad sin fronteras 30/06/2005
- Alfabetização para todos: um grito de guerra 28/05/2003
- A revolução republicana 09/03/2003
- O quarto problema 04/12/2002
- De Caetés ao Planalto, de Retirante a Presidente: Uma viagem de 500 anos 27/11/2002
- Razões de outubro 18/11/2002