Segundo jornalista do país, nas 48 horas que se seguiram à tragédia, sensação era de abandono e caos; sismólogos haviam apontado possibilidade do terremot

Estado chileno foi negligente

21/03/2010
  • Español
  • English
  • Français
  • Deutsch
  • Português
  • Opinión
-A +A
O terremoto que atingiu o Chile no dia 27 de fevereiro foi tão forte que provocou um deslocamento de três metros para o oeste da cidade de Concepción, a mais próxima do epicentro. Santiago ficou mais 27 centímetros a oeste, e nem mesmo a capital argentina se safou, deslocando-se 4 centímetros.
 
Algumas coisas, porém, parecem não ter se abalado. No país que serviu de primeiro grande experimento neoliberal da América Latina, durante a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990), a solução imediata do Estado para a catástrofe foi a militarização. Em meio à transição de governos, ambos falam em empréstimos e iniciativa privada para reconstruir o país. A área afetada, entre as cidades de Valparaíso e Concepción, concentra 50% da população chilena.
 
Mas se a resposta do governo de Michelle Bachelet (da Concertación, coalização de partidos derrotada nas últimas eleições) já foi ruim, o que se esperar do próximo governo, de Sebastián Piñera (Renovación)? “Deixará tudo nas mãos dos bancos e empresas privadas. O terremoto pode se converter em uma grande oportunidade de negócios. É provável que a economia volte a crescer, mas às custas de mais sofrimento para os afetados nesse desastre”, avalia o jornalista chileno Paul Walder, da revista Punto Final, em entrevista por email ao Brasil de Fato, de Santiago.
 
Austeridade financiera
 
As declarações de Piñera confirmam essa percepção. No campo econômico, já anunciou um plano de reconstrução que conta com um programa de austeridade financeira. Determinou a seus ministros que cortem gastos, reduzam despesas e apresentem propostas para as áreas afetadas. O presidente também criticou o “pudor” com o qual Bachelet colocou 14 mil militares nas zonas afetadas e afirmou que, se precisar, colocará mais efetivos para que o país volte à “normalidade”, leia-se: para que os saques acabem.
 
Para Walder, as imagens da população levando produtos nos supermercados se tornaram uma “psicose” no país. Em meio à destruição e ineficiência do Estado, este tornou-se o falso problema principal do país, e a repressão nas ruas, a falsa solução. “Os meios de comunicação massivos e a classe dirigente aplaudiram a militarização da zona afetada. Eles a pediram, aliás”, conta Walder.
 
A esperança, porém, é que o terremoto tenha acordado parte da população chilena, a partir do mal estar social que causou. “Junto com o terremoto e o tsunami, entrou em erupção o vulcão do mal estar social que permanecia adormecido. A ira cidadã despertou. Temos que canalizá-la e fazer com que ganhe organização para que se converta em força construtora de um poder democrático e popular. A memória histórica do povo chileno conserva o legado de gerações de lutadores sociais e políticos que foram capazes de estruturar e orientar as demandas populares”, diz o editorial da revista Punto Final. A seguir, leia a entrevista com Paul Walder.
 
Brasil de Fato - Alguns especialistas afirmam que o terremoto estava previsto. Você acredita que houve negligência do governo chileno?
 
Paul Walder – Desde 2002, há estudos realizados por pesquisadores da Universidade do Chile, em conjunto com universidades estrangeiras, que advertiam sobre esse terremoto com bastante precisão – tanto em relação a sua magnitude como a sua ocorrência – e que estimavam que ele aconteceria em um “futuro próximo”. Eles passaram, oportunamente, essa informação aos governos chilenos. Entretanto, não se tomou precauções em relação às construções e sistemas de alerta nem houve uma reação mais eficiente diante da catástrofe. Os motivos da negligência do Estado chileno são hoje matéria de especulação, mas muitos já concordam que não se investiu na prevenção nem na reação porque elas não ofereciam rentabilidade no curto prazo.
 
Em sua opinião, por que o Estado chileno não foi capaz de dar una resposta eficaz após o terremoto?
 
As primeiras 48 horas depois do terremoto e do tsunami deixaram claro que havia uma total descoordenação entre as diferentes entidades do Estado e uma burocracia ineficiente, o que se traduziu em informações erradas e contraditórias emitidas pelo governo. Depois do terremoto, o governo disse que a população costeira podia ficar tranquila porque não havia risco de tsunami – o que eu mesmo escutei na rádio –, enquanto, nessa mesma hora, muitos povoados eram arrasados pelas ondas. Não houve mais mortes porque as pessoas começaram a fugir por iniciativa própria. Mas houve casos de pessoas que haviam fugido das altas ondas que escutaram a informação do governo e regressaram a suas casas para buscar algum artigo de primeira necessidade e morreram afogadas pelas ondas posteriores.
 
Ninguém sabia de nada, e certamente o governo também não, logo depois da catástrofe. Por muitas horas, não se conseguiu comunicação com as regiões mais danificadas, devido à destruição da rede de telefonia. A informação que chegava procedia de algumas emissoras de rádio, que obtinham, com muita dificuldade, alguma informação. A paralisia que o governo demonstrou durante as horas posteriores provocou desespero e sensação de abandono entre às vítimas, o que redundou em uma desordem social.
 
O governo não foi capaz de dar uma resposta eficaz porque não contava com a organização nem a infraestrutura necessária para tal. Portanto, depois da catástrofe, tudo o que se pôde fazer foi improvisar.
 
As doações de alimentos e medicamentos ocorreram conforme o governo prometeu logo nos primeiros momentos após a tragédia?
 
Não. Isso demorou muito, o que explica em parte a reação das vítimas. Antes de entregar a ajuda, o governo decretou o “estado de catástrofe”, que permitiu a militarização da zona afetada e a declaração do toque de recolher. Somente mais tarde, e com bastante lentidão, começou a chegar ajuda. Durante vários dias, a percepção das pessoas era de um caos geral.
 
Por aqui, temos a impressão de que a resposta foi militarizada, com forte repressão aos saques antes de tudo. É verdade?
 
Houve uma reposta militarizada, que ainda se mantém e provavelmente se estenderá ainda mais, segundo as declarações do novo governo, que assume no dia 11 de março. Houve repressão, mas foi menor do que se previa. O governo de Michelle Bachelet sai de cena muito mal por sua evidente ineficiência ou negligência para atuar depois da catástrofe. Creio que foram cautelosos em não agregar a essa triste despedida uma forte repressão.
 
Como os diferentes setores da sociedade opinam sobre essa resposta militarizada?
 
Há diversos pontos de vista. Os meios de comunicação massivos e a classe dirigente aplaudiram a militarização da zona afetada. Eles a pediram, aliás. A televisão mostrou imagens dos cidadãos das zonas afetadas aplaudindo os militares. Mas outros setores da sociedade, como organizações da sociedade civil, criticaram a militarização por entender que se tratava de uma reação que na verdade tentava ocultar a ineficiência do governo em fornecer a ajuda. Com o pretexto dos saques nas áreas mais afetadas – o que criou em outros setores uma verdadeira psicose –, o governo chamou as Forças Armadas, sendo que o verdadeiro problema era que a ajuda necessária não chegava.
 
Houve exemplos de auto organização, nos bairros e povoados, para manter o abastecimento de alimentos e água?
 
Creio que poucos. A distribuição e venda de alimentos, assim como de água potável, corresponde ao setor privado. A água está privatizada no Chile. Mas o terremoto mostrou outra coisa: a falta de organização da sociedade civil. E, diante desse fato, o que se viu foi desordem e desespero. Como os grandes supermercados estavam destruídos, e ninguém se preocupou em abri-los para tirar ou distribuir os alimentos, foram as pessoas que, com seu desespero, forçaram a entrada. O que vimos foi uma sociedade fragmentada e dirigida de maneira muito autoritária.
 
Algumas notícias dizem que muitas construções não cumpriam regras de segurança contra os terremotos, inclusive prédios residenciais construídos recentemente. Fala-se em algum tipo de punição a essas empreiteiras?
 
É verdade que muitos edifícios não cumpriam as regras. O terremoto não derrubou apenas casas antigas, praticamente todas feitas de adobe [tijolo de terra], mas também prédios novos. Até o momento, não houve uma reação clara e enérgica por parte do governo. No geral, tem se tratado do tema como se fosse um assunto entre privados. Ou seja, cada proprietário terá que resolver seu problema sozinho. Creio que esse tema crescerá com o passar do tempo.
 
O fato de setores estratégicos estarem privatizados pode dificultar a reconstrução das áreas afetadas?
 
No Chile, muitas áreas estratégicas estão privatizadas, como as comunicações, os portos, aeroportos e grande parte das rodovias. A principal via que une o Chile de norte ao sul é privada. O que pode acontecer, a partir de agora, com um governo de direita muito neoliberal, é uma reconstrução do país a partir dessa visão, o que significará deixar esse processo em mãos privadas. Com um país em estado de choque, o novo governo pode privatizar o que ainda resta de setor público, que é o sonho neoliberal. Creio que todas as iniciativas para reconstruir o país serão feitas sob esse ponto de vista. Deixarão tudo em mãos dos bancos e empresas privadas. O terremoto pode se converter em uma grande oportunidade de negócios. É provável que a economia volte a crescer, mas às custas de mais sofrimento para os afetados nesse desastre.
 
- Dafne Melo da Redação
https://www.alainet.org/es/node/140208
Suscribirse a America Latina en Movimiento - RSS