Os idos de março

01/03/2012
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O mínimo que a situação política e econômica do mundo atual exige de cada um de nós é a reflexão séria, razoável conhecimento da história e da formação das ideologias e, sobretudo, paciência nos embates teóricos, nos confrontos com a práxis fascista que, aos poucos, com o enfraquecimento do campo socialista, foram se tornando aqui e ali protagonistas de alguns dos acontecimentos históricos mais recentes.

Em outras palavras: o atual confronto de idéias entre o capitalismo neoliberal, parcialmente combalido, e a busca de alternativas ao seu já provado e nefasto exercício e sua prática perversa, necessita passar por um rigoroso e efetivo diagnóstico. Sob pena de vermos o século XXI repetir, com outras características e outros atores – é claro – as crises de 1914 e 1929, onde duas guerras mundiais subiram à ribalta e explodiram em meio a uma notável divisão ideológica, com a ascensão e o confronto entre governos fascistas e comunistas. E a crença cega de muitos, ou ingênua, para não sermos considerados pessimistas, numa democracia utópica, onde os contrários pudessem conviver em harmonia.

Já não é novidade para aqueles que ainda se preocupam com essas questões observar que, ao se sentir ameaçado em alguns de seus pilares de maior sustentação – e a especulação financeira desenfreada e desregulamentada da segunda metade do século XX se tornou um deles – o capital reage com a violência que é da sua natureza. E se possível com a violência da guerra, dos golpes de estado, das eleições sujas. Volta-se inexoravelmente contra os trabalhadores e todos aqueles que dependem apenas da força do seu trabalho para sobreviver com um mínimo de dignidade. A isso alguém já chamou um dia de luta de classes.

O instinto de sobrevivência do capitalismo, se assim posso me expressar, tem atingido níveis inimaginados até mesmo pelos seus mais exaltados defensores, os seus domesticados e ao mesmo tempo agressivos think thanks...

Institutos de pesquisas científicas, de pesquisas comportamentais e de publicidade, os mais modernos; o uso da tecnologia de ponta – informatizada ou não – com o entretenimento sendo dirigido com técnicas sutis de manipulação do pensamento; o uso descarado da propaganda subliminar, da chantagem política e econômica com o uso da força militar convencional ou mesmo nuclear; a mídia seletiva organizada na direção da despolitização do cidadão comum; a indisfarçável tentativa de estabelecer o pensamento único e o fim da História; a insistência e a imposição de um falso conceito de democracia, tudo isso e mais alguma coisa tem lançado a cada dia que passa a confusão em bilhões de mentes e corações.

Confusão proposital, criada em sofisticadíssimos centros de estudos subsidiados pelas principais empresas corporativas na Europa e nos Estados Unidos. A ação do site Wikileaks e inúmeros vídeos espalhados pela Internet vêm comprovando o fato à exaustão...

Confusão para dividir. Dividir para reinar. Reinar para subjugar. O jogo é antigo e por mais que cada geração tente criar anticorpos ou pensamentos e práticas alternativas à usura, à riqueza desnecessária, ao poder pelo poder, ao culto à irracionalidade e ao efêmero, mais o capital se fecha em sua defesa, muitas vezes cooptando mentes brilhantes nas várias áreas do saber, com o pagamento de altíssimos salários e bônus anuais ou mesmo com ações das próprias corporações e empresas de governos com que ajudam a manter o comboio nos trilhos. Ou seja, a exploração da maioria.

Oitenta anos parece ser a média de vida do homem contemporâneo na terra. Portanto, se qualquer um de nós conseguisse levar uma vida regada a champanha e caviar nesses anos, pois bem, que os outros 99% da humanidade se lixassem, não é verdade? Pois essa é, sem tirar nem pôr, a situação que vive o mundo nesse início de novo século.

O doloroso nesse quadro é ver o esforço que se faz hoje por muitos daqueles que já foram protagonistas do pensamento alternativo, quando resolvem entregar os pontos e já não suportam mais defender as difíceis idéias do humanismo solidário, de uma sociedade mais justa, se possível sem classes.
“Arroubos da adolescência”, “fui iludido na minha boa fé de jovem que queria mudanças”, “revoltas da juventude” e outras baboseiras do gênero são cinicamente usados (quando são) para encobrir o oportunismo, a falta de ética e de caráter, a traição à luta dos menos favorecidos. Os exemplos, infelizmente, têm se multiplicado em escala geométrica.

No Brasil, e é disso que se trata aqui, temos um curioso quadro político, onde traços surrealistas despontam aqui e ali à medida que os anos passam. Nossos mais destacados partidos políticos, aqueles que conseguem fazer o maior número de congressistas, governadores e prefeitos rechearam-se de políticos “profissionais”, boa parte deles sem qualquer formação ideológica mais consistente ou – o que parece ser ainda mais grave – a viver num constante pular de galho em galho, na suposta esperteza de ficar em cima do muro quando se pede deles uma definição e, caso nenhuma dessas alternativas seja assim tão aliciante ou moralmente confortável, a formar novos partidos, quase sempre sem lastros de representatividade popular. Fenômeno que se dá à direita e à esquerda do espectro político é bom que se diga.

A política tanto pode ser o exercício ético da administração pública em benefício de todos os cidadãos de uma cidade, de um estado, de um país, ou pode ser o valhacouto das grandes negociatas, cabide de empregos para amigos e familiares, esconderijo de bandidos engravatados e espertalhões como – aliás – tem sido escancarado a cada dia que passa. Tanto no executivo, no legislativo e no judiciário, esse triunvirato republicano tão ao gosto da retórica vazia de sentido. Independente do esforço daqueles que ainda lutam e se esforçam para que as coisas se passem de outra maneira.

A nova face da direita brasileira, com a natural renovação de seus quadros mais reacionários e conservadores, tem hoje a comandá-la vários integrantes da histórica esquerda do país, inclusive de adeptos da luta armada nos anos 60. Novidade? Nem tanto, apenas o número de oportunistas aumentou. A ideologia, também ela, se transformou numa mercadoria negociável na praça dos três poderes, onde a governabilidade por um lado e o apego ao poder por outro comandam as ações de homens e mulheres, muitos deles que ainda não perceberam que o país quer caminhar em novas direções. Não tanto por consciência política, como querem ou desejam alguns, mas por necessidade de sobrevivência.

O melhor exemplo dessa situação é o show de obstinação e insensibilidade que, há alguns anos, vendo dando o cidadão José Serra. Com uma trajetória iniciada ainda antes do golpe de 1964, José Serra carrega em seu currículo de homem público a mais estarrecedora imagem de quem persegue um objetivo que já nem ele mesmo sabe mais qual é. O poder pelo poder ou a possibilidade de levar a cabo uma tarefa incompleta em seus tempos de Fernando Henrique Cardoso: a entrega do país ao capital internacional. Ou ainda, com a publicação do livro “Privataria Tucana” a possibilidade de fugir à responsabilidade de ter que responder a uma CPI no Congresso Nacional.

Os idos de março definirão o verdadeiro início do ano político brasileiro. As eleições de outubro abrirão o espaço de 2014. Um ano em que o Brasil irá se posicionar em continuar por uma senda de emancipação econômica, soberania e defesa de seus recursos naturais ou a possibilidade de voltar a um passado de irresponsabilidades administrativas, assalto ao patrimônio nacional e impunidade para aqueles que se acostumaram com as migalhas da Casa Grande.
 
- Izaías Almada é escritor e dramaturgo. Autor da peça “Uma Questão de Imagem” (Prêmio Vladimir Herzog de Direitos Humanos) e do livro “Teatro de Arena: Uma Estética de Resistência”, Editora Boitempo.
 
 
https://www.alainet.org/es/node/156209

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