Conquistas e Desafios da Política Externa de Dilma Rousseff
17/11/2014
- Opinión
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A política externa de Lula foi projetada contra os planos de fundo da guerra ao Terror e da crise econômica de 2008. Em termos normativos, o Brasil se colocou como alternativa diante desses dois processos – sem, com isso, antagonizar seus protagonistas. Na ONU, Lula defendeu uma luta global contra a fome em contraste com a invasão norte-americana do Iraque em 2003. No Haiti, embasado pelo princípio da não-indiferença, o Brasil assumiu a liderança da MINUSTAH, substituindo os EUA como agente pacificador daquele país e representante da comunidade internacional. Antes mesmo do baque de 2008, o Brasil reposicionou sua estratégia comercial como fornecedor de commodities – com preços em alta – para três grandes parceiros: União Europeia, EUA e (cada vez mais) a China.
Paralelamente, o Brasil buscou diversificar suas opções, intensificar seu investimento externo e internacionalizar suas empresas, através da cooperação Sul-Sul. Lula visitou grande número de países africanos e asiáticos. Cúpulas foram realizadas com países do Oriente Médio. O Brasil investiu na criação de instituições no esforço de engajar parceiros do Sul – a UNASUL no continente americano, o G-20 na OMC e, sobretudo, os BRICS como grupo de países emergentes mais importantes após a crise de 2008, motores da recuperação econômica global. Instituições já existentes foram mobilizadas nesse esforço – a Venezuela foi convidada para o MERCOSUL.
O crescimento econômico do fim do segundo governo Lula suscitou expectativas positivas para Dilma. O enfrentamento da crise de 2008 via crescimento dos emergentes levaria à reforma das instituições financeiras internacionais e à reabertura da Rodada Doha na OMC. Promessas do governo Obama de pôr fim ao esforço militar dos EUA no Iraque e Afeganistão abririam caminho para o desenvolvimento no plano internacional. Dilma iniciou seu mandato durante a Primavera Árabe – otimismo adicional sobre democratização e solução pacífica de conflitos no Oriente Médio.
Tal otimismo foi revertido nos anos subsequentes. Para além da Tunísia, a Primavera Árabe desaguou em nova ditadura no Egito, intervenção armada na Líbia, intervenção de Israel em Gaza e a cruzada contra o ISIS deflagrada por EUA e coalizão (membros da OTAN e aliados dos EUA no Oriente Médio) na Síria e Iraque. Crises político-econômicas na Argentina, Venezuela e Paraguai impactaram o MERCOSUL e a UNASUL. A Aliança do Pacífico se colocou como alternativa de integração econômica sul-americana. Esperanças de reformar instituições financeiras internacionais esbarraram na resistência das economias do G-8, em lento processo de recuperação (que derrubou os preços das commodities, impulsionando déficits externos nos países em desenvolvimento).
Diante desse quadro, o governo Dilma constituiu pragmática continuação do esforço inicial de Lula. Os resultados das políticas de Lula limitaram as opções disponíveis para Dilma no plano externo.
Sucessos recentes – medidas anticíclicas de combate à crise de 2008, programas de transferência de renda, de combate à pobreza e à desigualdade – elevaram o perfil internacional do Brasil. O país do futuro adiado a cada crise se tornou catalizador de transformações replicadas mundo afora. Na seara aberta pelo PIB brasileiro de 7.5% em 2010, vizinhos (como a Bolívia) acumularam êxitos econômicos. A África do Sul reduziu a pobreza e desigualdade de renda, segundo o Banco Mundial, inspirada em programas sociais brasileiros. A ONU criou um Conselho de Segurança Alimentar diretamente inspirado pelo êxito do Consea. Um brasileiro comanda a Organização Mundial do Comércio e outro, a maior operação de paz da história da ONU, na República Democrática do Congo.
Mais que manter ativa e altiva a diplomacia brasileira, um desafio do segundo governo Dilma é lidar com os efeitos de êxitos recentes. Inovações políticas bem-sucedidas tendem a ser replicadas, com menores custos. Uma vez global player, o Brasil deixa de ser “novidade”, enfrenta maior resistência.
A tentativa brasileira de rediscutir a responsabilidade de proteger durante a intervenção da OTAN na Líbia (a responsabilidade ao proteger) foi recebida com indisfarçada hostilidade. O Brasil contribuiu modestamente na crise na Síria (os BRICS mobilizaram a norma da proscrição de armas químicas para impedir nova intervenção armada dos EUA). Com receitas brasileiras, a Bolívia hoje cresce mais que o Brasil e a África do Sul reduz suas desigualdades em ritmo mais acelerado. A renegociação do gás com a Bolívia – com os países em condições bem melhores do que há 10 anos – se avizinha difícil. Frutos da política externa africana de Lula foram compartilhados com os outros BRICS, via acirrada competição de empresas emergentes internacionalizadas pós-crise.
Diante do cenário externo menos favorável, Dilma teve que diversificar suas estratégias. À desaceleração do crescimento se seguiu o reforço do papel do BNDES como catalizador do investimento externo associado à cooperação Sul-Sul. Após a reiterada relutância do G-8 em reformar o FMI e o Banco Mundial, o Brasil viabilizou a criação do Banco dos BRICS durante a Cúpula de Fortaleza, além de um fundo de contingência para o enfrentamento de crises internacionais. Afora os BRICS, Dilma utilizou uma plataforma multilateral – a ONU – para denunciar a espionagem eletrônica da NSA norte-americana. A escolha do foro impulsionou a construção de mecanismos internacionais de regulação da internet (à imagem do Marco Civil brasileiro). Um ano após a denúncia, Barack Obama aceita discutir a regulação da internet via regras mais severas possíveis. Ao repúdio à cyber-espionagem se somaram demonstrações de autonomia brasileira na Líbia, Síria, Ucrânia e Gaza. Essas posturas coerentes e firmes não reduziram o espaço do Brasil diante da outrora inconteste superpotência. No cômputo geral, aumentaram o valor de negociar com o Brasil.
O enfrentamento da crise nos governos Lula e Dilma permitiu ao Brasil crescer mais do que os EUA de Obama – o que nos aproxima de simetria inaudita nos tempos em que o Brasil era submetido aos pacotes do FMI e encolhia após cada crise mundial. Segundo a OCDE, no Brasil o desemprego pós-crise caiu para níveis historicamente baixos. A inflação se mantém estável, menor do que durante o Plano Real e bem distante dos índices de décadas passadas; a taxa SELIC segue inferior à de 2008. As reservas internacionais duplicaram desde a crise, se mantêm significativamente maiores que o endividamento externo. A produtividade do trabalho atingiu níveis recordes. O país não enfrenta gargalos energéticos de grande monta. A pobreza e a desigualdade de renda continuam em queda. O superávit primário de Dilma supera o de FHC. A taxa de câmbio permanece substancialmente menor em 2014 do que no ano eleitoral de 2002, ou ainda durante a crise de 1998-1999. Impasses relativos à desaceleração do crescimento são bem mais suaves do que os de décadas atrás.
Em relação ao contexto pré-crise, o Brasil cresceu de vulto em relação aos EUA. Estes tiveram sua importância reduzida frente ao Brasil – tanto em termos de produto interno bruto quanto de contribuição para o crescimento da economia mundial. Isso ocorreu não apenas graças à postura brasileira, mas deriva do crescimento de outros emergentes, especialmente a China. A “novidade” da China no discurso da oposição brasileira presta tributo à consolidação dos BRICS e indica: não haverá retorno ao status quo da década passada.
É nesse sentido que os EUA buscam se aproximar do Brasil em três frentes de negociação: no plano comercial, manter e ampliar o volume de negócios impactado pela crise. O comércio bilateral – reduzido em 30% após 2008 – já se reaproxima do pico histórico de 55 bilhões de dólares anuais.
No meio ambiente, o Brasil desponta como agente capaz de colocar em diálogo os grandes poluidores da atualidade – além dos EUA, a China – e o mundo em desenvolvimento “isentado” de maiores responsabilidades no Protocolo de Quioto. Em contraste com acordos bilaterais entre grandes poluidores (mantendo assimetrias frente à comunidade internacional) a atuação do Brasil se funda numa norma internacional: o princípio de responsabilidades comuns, porém diferenciadas. Ademais, o Brasil associou temas de Meio Ambiente ao combate à pobreza no qual o país se notabilizou, ao realizar a conferência Rio 20 e através de iniciativas como o programa PAA África.
O zelo normativo do Brasil reitera posturas tradicionais de sua diplomacia, como o respeito pelo multilateralismo e a adesão incondicional ao princípio da integridade territorial dos estados (princípios fragilizados no bombardeio do Iraque e Síria pela coalizão anti-ISIS liderada pelos EUA).
No plano regional, Brasil e EUA possuem uma extensa agenda de interesses sobrepostos, casos do Haiti, Venezuela e Argentina. O Brasil assume, em grande medida, responsabilidades dantes associadas com uma “área de influência” estadunidense. A participação de empresas brasileiras em cadeias regionais e globais de produção cresceu, mas permanece abaixo de seu potencial.
Dificuldades correntes de parceiros estratégicos como Argentina e Venezuela, fartamente exploradas pela oposição, mostram desafios a ser enfrentados com desassombro. Não são exclusividade dos governos Dilma. Foi no governo FHC que o Brasil criou um grupo de países latino-americanos para manter Hugo Chávez no poder na Venezuela, vítima de um golpe de estado apoiado...pelos Estados Unidos. Via BNDES, FHC financiou a construção do metrô de Caracas (além de investimentos na região portuária de Mariel, em Cuba). Foi também nos governos tucanos – entusiastas de áreas de livre comércio – que a ALCA naufragou e que o MERCOSUL sofreu com as implicações da crise econômico-política na Argentina. Nossas relações com a América Latina nos lembram que política externa é uma política pública não redutível a idiossincrasias partidárias.
Nos próximos anos, o crescimento da economia brasileira dependerá menos da escolha de parceiros do que do encaminhamento dado a contradições internas – como o empoderamento da força de trabalho (não apenas em termos de renda), a primarização da pauta exportadora versus a capacitação da indústria, e as turbulências das empresas brasileiras. Ao invés de deixar os mercados exercerem o papel de juízes auto-impostos, fazer da economia pós-crise nova rota de crescimento demanda do segundo governo Rousseff um aprofundamento da qualidade da democracia.
A política externa contribui com o aprofundamento da democracia no Brasil através da articulação de esforços que traduzem a complexidade do país. À expertise do Itamaraty vieram-se somar o dinamismo da diplomacia presidencial e múltiplas ações da sociedade civil cada vez mais interessada em questões que afetam seu presente e suas perspectivas de futuro. Gerar sinergias inclusivas que beneficiem a população brasileira é o desafio mais agudo da política externa em democratização.
Dilma Rousseff foi reconduzida à Presidência. Sua reeleição não ocorreu a despeito de suas políticas. Tampouco foi ancorada em promessas de ruptura – que entram choque com as transformações do Brasil nos últimos 25 anos. Do país da hiperinflação e dos marajás, o mais desigual do mundo, para um destacado membro dos BRICS, protagonista de iniciativas de cooperação internacionais, recém-saído do Mapa da Fome da FAO. O país se tornou porto seguro para investimentos internacionais, e o investimento externo brasileiro se multiplicou. Contrariando previsões pessimistas, o Brasil se tornou um país mais rico, justo – e complexo.
O eleitorado brasileiro legitimou Dilma e a autorizou a dar continuidade a mudanças. Há ampla expectativa de que a política externa de seu segundo governo consolide esforços políticos que começam a frutificar (como a cooperação Sul-Sul). Que o enfrentamento dos desafios se faça de forma condizente com sua profundidade. À luz dos avanços o Brasil segue, sem volta, para o futuro.
- Carlos Frederico Pereira da Silva Gama é Professor de Relações Internacionais na PUC-Rio
Créditos da foto: Roberto Stuckert Filho/PR
16/11/2014
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