Mais do Menos: entre tradições e contradições, críticas à política externa de Dilma Rousseff
12/03/2014
- Opinión
Vinte anos após o Plano Real, completos 11 anos de administrações federais do PT, o contexto de 2014 surpreende. Menos por comemorações e contestações em ano eleitoral, mais pela pouca densidade das críticas à política externa de Dilma Rousseff.
O contexto das críticas não passa despercebido. Pouca relevância é concedida à política externa no debate de política públicas no Brasil. Em ano eleitoral, a política externa é tensionada pela disputa doméstica. O quase desinteresse pelas ações internacionais do Brasil é substituído por intenso debate, galvanizado – e capturado – pela ação dos partidos e principais candidatos à Presidência. A performance de diferentes partidos e coalizões é componente fundamental da avaliação de políticas públicas propostas como ‘alternativas’.
Em 2014, diferentes segmentos da oposição investem em duas críticas. Por um lado, Dilma é acusada de não ter grande interesse em questões de política externa. Na ausência de objetivos coerentes, o governo Dilma teria rompido a tradição diplomática brasileira. Tal rompimento implicaria abandonar os compromissos normativos da diplomacia brasileira e fragmentar a implementação da política externa, limitando o papel do Itamaraty.
Por outro lado, Dilma é acusada de ter descontinuado a política externa de seu antecessor, Lula. Esta teria perdido fôlego após a intensidade dos primeiros anos do século e teria caído no marasmo, vítima de indecisões que prejudicam a imagem do Brasil. A PEB de Dilma seria contraditória – dita continuação de Lula, mas confusa na implementação, marcada por improvisos, com resultados desastrosos, sinal de enfraquecimento da política externa do PT.
Em conjunto, essas críticas apontam rumos ‘alternativos’: maior criatividade na definição da política externa; reaproximação com os Estados Unidos; revalorização da América do Sul, que teria sido esquecida (o que indicaria perda de liderança brasileira na região).
Contextualizadas, essas ‘alternativas’ se tornam problemáticas. Seu mérito é questionável, se levarmos em conta a política externa dos dois mandatos presidenciais do PSDB e as diretrizes políticas da recente aliança Rede Sustentabilidade-PSB.
Apesar de iniciar com menção a um mundo convulsionado por crises, o documento Diretrizes-Programa de Governo da aliança Rede Sustentabilidade-PSB não confere destaque, em 72 páginas, a questões de política externa (para além de breves menções a políticas de defesa). Cabe à aliança o privilégio duvidoso de preencher essas lacunas no processo eleitoral.
Se a nova aliança acena para um futuro por determinar, o PSDB mergulha no passado. Recupera discursos do fim do segundo mandato de FHC. Dificuldades e frustrações da PEB tucana são ‘atualizadas’ via críticas a Dilma Rousseff.
Conturbações do passado recente se ocultam nas acusações de que o Brasil teria cometido um erro ao tensionar recentemente as relações com os EUA. Longe de uma opção do governo brasileiro, as relações com aquele país têm sido tensas desde o final da década de 1990.
Após a Guerra Fria, se seguiu um período de hegemonia dos EUA. ‘Consensos’ liberais na economia e na política deram o tom nas principais instituições do sistema (a ONU rediviva, Bretton Woods) e informaram a criação de novas instituições (OMC). Os emergentes assumiram postura cautelosa. Ninguém desafiou a primazia da superpotência.
Nos governos tucanos, o Brasil se posicionou como candidato a ‘global trader’ via estabilização econômica e regionalismo aberto (Mercosul, definido como plataforma econômica). Em paralelo, o país ingressou nos principais regimes herdados da Guerra Fria (como o de não-proliferação de armas nucleares, em 1998). A expectativa brasileira era alavancar o perfil do país, como ‘global trader’ e parceiro responsável das potências ocidentais na promoção de reformas (liberais) do estado. Um país emergente e confiável e um líder na América do Sul.
Atritos com os EUA marcaram o período que viu o enterro da proposta da ALCA. O projeto de ‘global trader’ se esvaiu no esteio das crises mexicana, russa e asiática. À desvalorização do Real em 1999 se seguiu a quebra do peso na Argentina e a profunda crise econômico-política que atingiu nosso vizinho (crise que se desenrolou sob o olhar fleumático da diplomacia brasileira). O Mercosul definhava, rumo a um beco sem saída político-econômico.
Uma descontinuidade ocorreu na política externa de FHC. O perfil ‘global trader’ foi substituído pelo ‘global player’. A participação do presidente em reuniões de ‘governança global’ da ONU e cúpulas do G-8 substituíram o investimento no regionalismo aberto e o crescimento econômico (dos primeiros anos do Real). O pleito no Conselho de Segurança da ONU passou a ser associado a atividades como a (modesta) contribuição para operações de paz no Timor Leste – não mais ao peso econômico do país (estagnado) ou à pretensa liderança na América do Sul – esta, prejudicada pela crise argentina, à qual vieram se somar a reação tardia ao golpe de estado na Venezuela em 2002 e a tolerância com a ditadura de Fujimori no Peru.
O Brasil se pretendia, então, um outro tipo de emergente. Já nesse momento, uma das críticas da oposição em 2014 já se materializara – ao Itamaraty cabia papel importante, mas secundário, diante dos primeiros movimentos de uma era de diplomacia presidencial.
Na OMC, o Brasil enfrentava os EUA em questões como a do algodão. A Rodada Doha emperrava, colocando Brasil e EUA em grupos opostos nas disputas agrícolas e de serviços. No apagar das luzes do governo FHC, a controvérsia sobre os medicamentos retrovirais foi o clímax da tensão diplomática. Também contribuíram o pouco apreço dos EUA pela busca brasileiro pela cadeira permanente no CS (a despeito da entrada brasileira no regime de não-proliferação de armas nucleares) e a inadequação brasileira frente à ‘guerra contra o terror’ de George W. Bush.
A defesa da Aliança do Pacífico (neo-ALCA), a ‘opção’ pelos EUA como crítica da membrezia do Brasil nos BRICS revelam menos futuros promissores e mais indigestões passadas.
Exercícios de nostalgia subestimam impactos da diplomacia presidencial sobre o Itamaraty. A defesa retórica da ‘tradição’ diplomática oculta processos que impactavam a política externa de FHC e se intensificaram desde então.
Vivemos um processo de democratização de nossa política externa. É saudável questionar decisões da Presidência e chancelaria, sejam quais forem, bem como demandar justificativas para decisões/omissões. A democratização/pluralização da política externa a torna uma política pública cujas decisões são feitas diante dos olhos da opinião pública, com ativa participação de segmentos domésticos que, nas últimas duas décadas, auferiram a prerrogativa de manifestar publicamente interesse(s) por questões que afetam a sociedade brasileira.
Em contraste com a política externa de generais, juntas e ditadores, a Constituição de 1988 não priva de supervisão popular os representantes do povo em todos os níveis de poder político. O engajamento do governo com outros agentes com interesse(s) na política externa brasileira, diante do olhar ávido da opinião pública, é sinal de amadurecimento e vitalidade democráticos, não de retrocesso institucional. Algo frisado pelo próprio governo brasileiro quando inaugura debate público sobre a criação de um livro branco de política externa.
A diplomacia presidencial politiza decisivamente a política externa. Burocracia reflexiva, o Itamaraty possui relativa impermeabilidade a mudanças bruscas, leva tempo para se adaptar (o delay entre a percepção do Itamaraty e transformações sistêmicas). A capilaridade política da figura presidencial torna possíveis guinadas adequadas em contextos de mudanças complexas, bem como articulações flexíveis com outros agentes, se evadindo das amarras das burocracias.
O Itamaraty não perde relevância nesse contexto. A diplomacia presidencial pressupõe capacidade contínua de mobilizar a expertise de um vasto corpo diplomático coeso, especializado. Oportunidades que se insurgem cobram inserção na estratégia em curso. Recursos obtidos no caminho sustentam a visão do futuro, suavizam a trajetória. A burocracia diplomática é chamada a canalizar suas energias de forma flexível e criativa, qualidades raras mas imprescindíveis. Articulações desse tipo entre Presidência e Itamaraty lograram sucesso recentemente, como a eleição do Embaixador Roberto Azevêdo para Diretor-Geral da OMC.
Pretender contornar esses processos com a ‘tradição’ do Itamaraty soa preocupante, diante das complexidades do cenário internacional contemporâneo e da própria democratização do Brasil em todas as esferas. A revisão do passado revela a dificuldade que segmentos da oposição têm em lidar com dificuldades do presente, com o mundo mais complexo do que o de 15 anos atrás. Não foi por falta de expertise ou fragmentação da tomada de decisão que FHC sofreu revezes na relação com os EUA e com os vizinhos da América do Sul.
Num outro sentido, o passado nos pode ser útil. Quando críticas apontam falta de criatividade na política externa brasileira como sinal de desgaste, olhemos para o passado.
Em 2001, o economista Jim O’Neill, da Goldman-Sachs, cunhou o termo ‘Brics’ para caracterizar um grupo de países emergentes que seriam portos seguros de investimento externo. Desse portfólio constava o Brasil, à época receptor do maior pacote de ajuda da história do FMI. No mesmo ano, os atentados de 11 de Setembro desfraldaram a ‘guerra global ao terror’ de George W. Bush. Confrontado com novas oportunidades e desafios, o que fez o Brasil?
Na época, o Brasil se acomodou no portfólio da Goldman-Sachs. Permaneceu dependente de fundos externos e do auxílio do FMI, limitado na capacidade de ação autônoma na economia. Os dois últimos anos do governo FHC foram marcados por baixos índices de crescimento, retorno da inflação (e desvalorização do real) em 2002.
Quanto à ‘guerra contra o terror’, o chanceler brasileiro Celso Lafer fez pronunciamento na ONU no dia dos atentados. Invocou – para surpresa dos presentes – o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), instrumento de segurança coletiva criada na Guerra Fria. Essa proposta – se solidarizar com os EUA através do TIAR – não apenas não granjeou simpatias ao Brasil. Em pleno século XXI, soou como um anacronismo inadequado.
Diante deste histórico pouco criativo, a retórica da ‘tradição’ se torna um libelo tecnocrático, defesa corporativa do Itamaraty em face da democratização da política (e das políticas públicas) em curso no Brasil. A ‘alternativa’ da ‘tradição’ nada na contramão de demandas sociais por maior transparência e responsabilidade de nossos representantes.
Em contraste com 2001, o Brasil de 2014, juntamente com outros emergentes (cujas aspirações de reformar o FMI foram recentemente fustigadas no congresso dos EUA), participa da criação de uma nova instituição internacional – o Banco de Desenvolvimento dos BRICS –alternativa ao modelo liberal na ‘solução’ de crises, as que o FMI não resolveu há 15 anos.
O governo Dilma possui mais elementos de continuidade com o governo Lula do que pretende a maioria dos críticos. Dificuldades econômicas vividas pelo Brasil atual não derivam de pacotes do FMI, mas de efeitos do enfrentamento, com recursos próprios, da crise de 2008.
Herdeira dos grandes investimentos do estado brasileiro pós-2008, a economia brasileira sob Dilma mostra um ciclo de recuperação que difere das economias desenvolvidas. O Brasil não apenas respondeu à crise, mas o fez com crescimento econômico e redistribuição de renda em escala incomum na história (afora os primeiros anos do Plano Real e a euforia momentânea do Cruzado). Passado o momento mais duro de enfrentamento da crise, o governo busca novas fontes de investimento para alavancar projetos de infraestrutura, em paralelo ao continuado esforço através do BNDES, parcerias com o setor privado na gestão de serviços públicos (aeroportos, ferrovias, hidrocarbonetos) e preparativos para os megaeventos.
Com vistas a manter políticas da gestão Rousseff – participação crescente em questões de âmbito mundial, empoderamento dos cidadãos via desenvolvimento econômico com justiça – Dilma foi a Davos mostrar a solidez dos fundamentos da economia brasileira e capacidade de fazer frente à nova crise argentina. Com baixa poupança interna, o Brasil busca investimento estrangeiro para reformas estruturais – em condições mais favoráveis do que 2001, quando a Argentina quebrou e o Brasil vivia a desvalorização do Real. Em Davos, o Brasil não pediu auxílio.
Os custos de decisões atuais são medidas, por vezes, em reveses passados. Problemas com Venezuela e Argentina, dificuldades de tirar o Mercosul do atoleiro foram legados do fim do século XX. Não podem, pois, ser computados como ‘erros’ de política externa de Dilma. Relançar o passado recente como ‘alternativa’ traz à tona questões de responsabilidade.
O governo Dilma vive uma crise normativa. Mas esta não deriva da ‘ruptura’ com a ‘tradição’ diplomática. Quando, há uma década, Lula dizia que o Brasil que come deveria ajudar o Brasil que tem fome, havia uma noção de responsabilidade coletiva embutida, convocando à luta contra exclusões seculares e seus efeitos. O Brasil que come tornaria o Brasil que tem fome mais digno e vice-versa. De lambuja, movimentando a economia nacional. O crescimento econômico foi acompanhado de redistribuição de renda, num momento de crise da economia mundial (antes da euforia das commodities).
Os elos dessa fórmula se desfizeram recentemente. O enfrentamento da grave crise de 2008 manteve as políticas domésticas em curso, mas implicou uma substituição normativa – da responsabilidade coletiva em mitigar exclusões sociais seculares para o pragmatismo do crescimento público-privado, acelerado para os megaeventos.
Timoneira na transição, Dilma não apresentou uma alternativa normativa, oscilando entre aquiescência e relutância. Ora cortejou as novas classes médias, ora reprimiu questionamentos às concessões feitas a agentes privados nos megaeventos. Uma cunha se abriu entre políticas e justificativas. Segmentos sociais impactados por transformações recentes ficaram eticamente descobertos. As oposições encontraram terreno para suas críticas nem sempre criativas. Críticas são salutares, combustível da democracia. Mas tais não podem prescindir da memória e da responsabilidade por decisões passadas.
Com essas duas críticas à política externa de Dilma Rousseff – o não tem e o tem, mas acabou – as oposições apresentam mais do menos em termos de alternativas. Por um lado, se furtam a assumir responsabilidade por parte das contradições presentes. Por outro, demonstram pouca criatividade diante de oportunidades e riscos que um país emergente assume num sistema internacional que frequentemente fustiga anseios e ambições emergentes.
A ascensão dos BRICS não se deve apenas à crise econômica de 2008. Ela ocorre contra o pano de fundo da corrosão da legitimidade norte-americana pós-2001. Diante do desconforto com as ‘intromissões’ dos emergentes na ordem internacional após a Guerra Fria, tensões entre Brasil e EUA tendem a se aprofundar. Países emergentes não podem perder oportunidades que surgem numa ordem que lhes é hostil. Sua ascensão depende de sua capacidade de utilizar criativamente as instituições existentes e também de criar alternativas de fôlego próprio.
Os desafios que o Brasil assumiu recentemente são proporcionais ao lugar que o país almeja ocupar na ordem global. Nos lembram os custos de usufruir espaços preciosos para os brasileiros, e o quão distantes estamos de nossos objetivos. A aquiescência diante de assimetrias de poder produz acomodação. Tal postura nos afasta de reflexões sobre a construção e reprodução do poder. Nos livra de dúvidas sobre a solidez e funcionalidade da ordem vigente. Nas engrenagens da ordem internacional assimetrias são produzidas, mas também combatidas.
Uma política externa pública e democrática implica readequar os recursos de que o Brasil dispõe (incluindo o Itamaraty), em face da complexificação das relações políticas internas/externas e do aumento da importância do país no mundo. O engajamento com essas complexidades nos demanda mais, não menos, democracia.
O jogo só começou – na eleição presidencial e no sistema internacional.
O contexto das críticas não passa despercebido. Pouca relevância é concedida à política externa no debate de política públicas no Brasil. Em ano eleitoral, a política externa é tensionada pela disputa doméstica. O quase desinteresse pelas ações internacionais do Brasil é substituído por intenso debate, galvanizado – e capturado – pela ação dos partidos e principais candidatos à Presidência. A performance de diferentes partidos e coalizões é componente fundamental da avaliação de políticas públicas propostas como ‘alternativas’.
Em 2014, diferentes segmentos da oposição investem em duas críticas. Por um lado, Dilma é acusada de não ter grande interesse em questões de política externa. Na ausência de objetivos coerentes, o governo Dilma teria rompido a tradição diplomática brasileira. Tal rompimento implicaria abandonar os compromissos normativos da diplomacia brasileira e fragmentar a implementação da política externa, limitando o papel do Itamaraty.
Por outro lado, Dilma é acusada de ter descontinuado a política externa de seu antecessor, Lula. Esta teria perdido fôlego após a intensidade dos primeiros anos do século e teria caído no marasmo, vítima de indecisões que prejudicam a imagem do Brasil. A PEB de Dilma seria contraditória – dita continuação de Lula, mas confusa na implementação, marcada por improvisos, com resultados desastrosos, sinal de enfraquecimento da política externa do PT.
Em conjunto, essas críticas apontam rumos ‘alternativos’: maior criatividade na definição da política externa; reaproximação com os Estados Unidos; revalorização da América do Sul, que teria sido esquecida (o que indicaria perda de liderança brasileira na região).
Contextualizadas, essas ‘alternativas’ se tornam problemáticas. Seu mérito é questionável, se levarmos em conta a política externa dos dois mandatos presidenciais do PSDB e as diretrizes políticas da recente aliança Rede Sustentabilidade-PSB.
Apesar de iniciar com menção a um mundo convulsionado por crises, o documento Diretrizes-Programa de Governo da aliança Rede Sustentabilidade-PSB não confere destaque, em 72 páginas, a questões de política externa (para além de breves menções a políticas de defesa). Cabe à aliança o privilégio duvidoso de preencher essas lacunas no processo eleitoral.
Se a nova aliança acena para um futuro por determinar, o PSDB mergulha no passado. Recupera discursos do fim do segundo mandato de FHC. Dificuldades e frustrações da PEB tucana são ‘atualizadas’ via críticas a Dilma Rousseff.
Conturbações do passado recente se ocultam nas acusações de que o Brasil teria cometido um erro ao tensionar recentemente as relações com os EUA. Longe de uma opção do governo brasileiro, as relações com aquele país têm sido tensas desde o final da década de 1990.
Após a Guerra Fria, se seguiu um período de hegemonia dos EUA. ‘Consensos’ liberais na economia e na política deram o tom nas principais instituições do sistema (a ONU rediviva, Bretton Woods) e informaram a criação de novas instituições (OMC). Os emergentes assumiram postura cautelosa. Ninguém desafiou a primazia da superpotência.
Nos governos tucanos, o Brasil se posicionou como candidato a ‘global trader’ via estabilização econômica e regionalismo aberto (Mercosul, definido como plataforma econômica). Em paralelo, o país ingressou nos principais regimes herdados da Guerra Fria (como o de não-proliferação de armas nucleares, em 1998). A expectativa brasileira era alavancar o perfil do país, como ‘global trader’ e parceiro responsável das potências ocidentais na promoção de reformas (liberais) do estado. Um país emergente e confiável e um líder na América do Sul.
Atritos com os EUA marcaram o período que viu o enterro da proposta da ALCA. O projeto de ‘global trader’ se esvaiu no esteio das crises mexicana, russa e asiática. À desvalorização do Real em 1999 se seguiu a quebra do peso na Argentina e a profunda crise econômico-política que atingiu nosso vizinho (crise que se desenrolou sob o olhar fleumático da diplomacia brasileira). O Mercosul definhava, rumo a um beco sem saída político-econômico.
Uma descontinuidade ocorreu na política externa de FHC. O perfil ‘global trader’ foi substituído pelo ‘global player’. A participação do presidente em reuniões de ‘governança global’ da ONU e cúpulas do G-8 substituíram o investimento no regionalismo aberto e o crescimento econômico (dos primeiros anos do Real). O pleito no Conselho de Segurança da ONU passou a ser associado a atividades como a (modesta) contribuição para operações de paz no Timor Leste – não mais ao peso econômico do país (estagnado) ou à pretensa liderança na América do Sul – esta, prejudicada pela crise argentina, à qual vieram se somar a reação tardia ao golpe de estado na Venezuela em 2002 e a tolerância com a ditadura de Fujimori no Peru.
O Brasil se pretendia, então, um outro tipo de emergente. Já nesse momento, uma das críticas da oposição em 2014 já se materializara – ao Itamaraty cabia papel importante, mas secundário, diante dos primeiros movimentos de uma era de diplomacia presidencial.
Na OMC, o Brasil enfrentava os EUA em questões como a do algodão. A Rodada Doha emperrava, colocando Brasil e EUA em grupos opostos nas disputas agrícolas e de serviços. No apagar das luzes do governo FHC, a controvérsia sobre os medicamentos retrovirais foi o clímax da tensão diplomática. Também contribuíram o pouco apreço dos EUA pela busca brasileiro pela cadeira permanente no CS (a despeito da entrada brasileira no regime de não-proliferação de armas nucleares) e a inadequação brasileira frente à ‘guerra contra o terror’ de George W. Bush.
A defesa da Aliança do Pacífico (neo-ALCA), a ‘opção’ pelos EUA como crítica da membrezia do Brasil nos BRICS revelam menos futuros promissores e mais indigestões passadas.
Exercícios de nostalgia subestimam impactos da diplomacia presidencial sobre o Itamaraty. A defesa retórica da ‘tradição’ diplomática oculta processos que impactavam a política externa de FHC e se intensificaram desde então.
Vivemos um processo de democratização de nossa política externa. É saudável questionar decisões da Presidência e chancelaria, sejam quais forem, bem como demandar justificativas para decisões/omissões. A democratização/pluralização da política externa a torna uma política pública cujas decisões são feitas diante dos olhos da opinião pública, com ativa participação de segmentos domésticos que, nas últimas duas décadas, auferiram a prerrogativa de manifestar publicamente interesse(s) por questões que afetam a sociedade brasileira.
Em contraste com a política externa de generais, juntas e ditadores, a Constituição de 1988 não priva de supervisão popular os representantes do povo em todos os níveis de poder político. O engajamento do governo com outros agentes com interesse(s) na política externa brasileira, diante do olhar ávido da opinião pública, é sinal de amadurecimento e vitalidade democráticos, não de retrocesso institucional. Algo frisado pelo próprio governo brasileiro quando inaugura debate público sobre a criação de um livro branco de política externa.
A diplomacia presidencial politiza decisivamente a política externa. Burocracia reflexiva, o Itamaraty possui relativa impermeabilidade a mudanças bruscas, leva tempo para se adaptar (o delay entre a percepção do Itamaraty e transformações sistêmicas). A capilaridade política da figura presidencial torna possíveis guinadas adequadas em contextos de mudanças complexas, bem como articulações flexíveis com outros agentes, se evadindo das amarras das burocracias.
O Itamaraty não perde relevância nesse contexto. A diplomacia presidencial pressupõe capacidade contínua de mobilizar a expertise de um vasto corpo diplomático coeso, especializado. Oportunidades que se insurgem cobram inserção na estratégia em curso. Recursos obtidos no caminho sustentam a visão do futuro, suavizam a trajetória. A burocracia diplomática é chamada a canalizar suas energias de forma flexível e criativa, qualidades raras mas imprescindíveis. Articulações desse tipo entre Presidência e Itamaraty lograram sucesso recentemente, como a eleição do Embaixador Roberto Azevêdo para Diretor-Geral da OMC.
Pretender contornar esses processos com a ‘tradição’ do Itamaraty soa preocupante, diante das complexidades do cenário internacional contemporâneo e da própria democratização do Brasil em todas as esferas. A revisão do passado revela a dificuldade que segmentos da oposição têm em lidar com dificuldades do presente, com o mundo mais complexo do que o de 15 anos atrás. Não foi por falta de expertise ou fragmentação da tomada de decisão que FHC sofreu revezes na relação com os EUA e com os vizinhos da América do Sul.
Num outro sentido, o passado nos pode ser útil. Quando críticas apontam falta de criatividade na política externa brasileira como sinal de desgaste, olhemos para o passado.
Em 2001, o economista Jim O’Neill, da Goldman-Sachs, cunhou o termo ‘Brics’ para caracterizar um grupo de países emergentes que seriam portos seguros de investimento externo. Desse portfólio constava o Brasil, à época receptor do maior pacote de ajuda da história do FMI. No mesmo ano, os atentados de 11 de Setembro desfraldaram a ‘guerra global ao terror’ de George W. Bush. Confrontado com novas oportunidades e desafios, o que fez o Brasil?
Na época, o Brasil se acomodou no portfólio da Goldman-Sachs. Permaneceu dependente de fundos externos e do auxílio do FMI, limitado na capacidade de ação autônoma na economia. Os dois últimos anos do governo FHC foram marcados por baixos índices de crescimento, retorno da inflação (e desvalorização do real) em 2002.
Quanto à ‘guerra contra o terror’, o chanceler brasileiro Celso Lafer fez pronunciamento na ONU no dia dos atentados. Invocou – para surpresa dos presentes – o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), instrumento de segurança coletiva criada na Guerra Fria. Essa proposta – se solidarizar com os EUA através do TIAR – não apenas não granjeou simpatias ao Brasil. Em pleno século XXI, soou como um anacronismo inadequado.
Diante deste histórico pouco criativo, a retórica da ‘tradição’ se torna um libelo tecnocrático, defesa corporativa do Itamaraty em face da democratização da política (e das políticas públicas) em curso no Brasil. A ‘alternativa’ da ‘tradição’ nada na contramão de demandas sociais por maior transparência e responsabilidade de nossos representantes.
Em contraste com 2001, o Brasil de 2014, juntamente com outros emergentes (cujas aspirações de reformar o FMI foram recentemente fustigadas no congresso dos EUA), participa da criação de uma nova instituição internacional – o Banco de Desenvolvimento dos BRICS –alternativa ao modelo liberal na ‘solução’ de crises, as que o FMI não resolveu há 15 anos.
O governo Dilma possui mais elementos de continuidade com o governo Lula do que pretende a maioria dos críticos. Dificuldades econômicas vividas pelo Brasil atual não derivam de pacotes do FMI, mas de efeitos do enfrentamento, com recursos próprios, da crise de 2008.
Herdeira dos grandes investimentos do estado brasileiro pós-2008, a economia brasileira sob Dilma mostra um ciclo de recuperação que difere das economias desenvolvidas. O Brasil não apenas respondeu à crise, mas o fez com crescimento econômico e redistribuição de renda em escala incomum na história (afora os primeiros anos do Plano Real e a euforia momentânea do Cruzado). Passado o momento mais duro de enfrentamento da crise, o governo busca novas fontes de investimento para alavancar projetos de infraestrutura, em paralelo ao continuado esforço através do BNDES, parcerias com o setor privado na gestão de serviços públicos (aeroportos, ferrovias, hidrocarbonetos) e preparativos para os megaeventos.
Com vistas a manter políticas da gestão Rousseff – participação crescente em questões de âmbito mundial, empoderamento dos cidadãos via desenvolvimento econômico com justiça – Dilma foi a Davos mostrar a solidez dos fundamentos da economia brasileira e capacidade de fazer frente à nova crise argentina. Com baixa poupança interna, o Brasil busca investimento estrangeiro para reformas estruturais – em condições mais favoráveis do que 2001, quando a Argentina quebrou e o Brasil vivia a desvalorização do Real. Em Davos, o Brasil não pediu auxílio.
Os custos de decisões atuais são medidas, por vezes, em reveses passados. Problemas com Venezuela e Argentina, dificuldades de tirar o Mercosul do atoleiro foram legados do fim do século XX. Não podem, pois, ser computados como ‘erros’ de política externa de Dilma. Relançar o passado recente como ‘alternativa’ traz à tona questões de responsabilidade.
O governo Dilma vive uma crise normativa. Mas esta não deriva da ‘ruptura’ com a ‘tradição’ diplomática. Quando, há uma década, Lula dizia que o Brasil que come deveria ajudar o Brasil que tem fome, havia uma noção de responsabilidade coletiva embutida, convocando à luta contra exclusões seculares e seus efeitos. O Brasil que come tornaria o Brasil que tem fome mais digno e vice-versa. De lambuja, movimentando a economia nacional. O crescimento econômico foi acompanhado de redistribuição de renda, num momento de crise da economia mundial (antes da euforia das commodities).
Os elos dessa fórmula se desfizeram recentemente. O enfrentamento da grave crise de 2008 manteve as políticas domésticas em curso, mas implicou uma substituição normativa – da responsabilidade coletiva em mitigar exclusões sociais seculares para o pragmatismo do crescimento público-privado, acelerado para os megaeventos.
Timoneira na transição, Dilma não apresentou uma alternativa normativa, oscilando entre aquiescência e relutância. Ora cortejou as novas classes médias, ora reprimiu questionamentos às concessões feitas a agentes privados nos megaeventos. Uma cunha se abriu entre políticas e justificativas. Segmentos sociais impactados por transformações recentes ficaram eticamente descobertos. As oposições encontraram terreno para suas críticas nem sempre criativas. Críticas são salutares, combustível da democracia. Mas tais não podem prescindir da memória e da responsabilidade por decisões passadas.
Com essas duas críticas à política externa de Dilma Rousseff – o não tem e o tem, mas acabou – as oposições apresentam mais do menos em termos de alternativas. Por um lado, se furtam a assumir responsabilidade por parte das contradições presentes. Por outro, demonstram pouca criatividade diante de oportunidades e riscos que um país emergente assume num sistema internacional que frequentemente fustiga anseios e ambições emergentes.
A ascensão dos BRICS não se deve apenas à crise econômica de 2008. Ela ocorre contra o pano de fundo da corrosão da legitimidade norte-americana pós-2001. Diante do desconforto com as ‘intromissões’ dos emergentes na ordem internacional após a Guerra Fria, tensões entre Brasil e EUA tendem a se aprofundar. Países emergentes não podem perder oportunidades que surgem numa ordem que lhes é hostil. Sua ascensão depende de sua capacidade de utilizar criativamente as instituições existentes e também de criar alternativas de fôlego próprio.
Os desafios que o Brasil assumiu recentemente são proporcionais ao lugar que o país almeja ocupar na ordem global. Nos lembram os custos de usufruir espaços preciosos para os brasileiros, e o quão distantes estamos de nossos objetivos. A aquiescência diante de assimetrias de poder produz acomodação. Tal postura nos afasta de reflexões sobre a construção e reprodução do poder. Nos livra de dúvidas sobre a solidez e funcionalidade da ordem vigente. Nas engrenagens da ordem internacional assimetrias são produzidas, mas também combatidas.
Uma política externa pública e democrática implica readequar os recursos de que o Brasil dispõe (incluindo o Itamaraty), em face da complexificação das relações políticas internas/externas e do aumento da importância do país no mundo. O engajamento com essas complexidades nos demanda mais, não menos, democracia.
O jogo só começou – na eleição presidencial e no sistema internacional.
- Carlos Frederico Pereira da Silva Gama é professor de Relações Internacional na PUC-Rio
12/03/2014
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