O marxismo e a questão racial: as cotas

15/01/2018
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    1.- A questão racial e a exploração do capital: de Kennedy a Clinton

Até a II Guerra Mundial, a violência social, jurídica e policial manteve na opressão a população negro-estadunidense, essencial à super-exploração do trabalhado naquele país. Após o fim do conflito, a luta anti-colonial e socialista avançou fortemente na África, Ásia e Américas – Argélia, China, Vietnã, Cuba, etc. A contra-revolução imperialista apresentava a sociedade estadunidense como referência paradigmática. Em 1º de dezembro de 1955, a trabalhadora negra Rosa Parks se negou a entregar a homem branco seu assento em meio de transporte público da cidade de Montgomery, no Alabama, desobedecendo lei estadual. A luta histórica dos afro-estadunidenses elevava-se a um novo patamar.

Durante as administrações Kennedy (1961-63) e Johnson (1963-69), legislação federal impôs a igualdade civil no país. A crescente mobilização do movimento negro e as necessidades da luta contra o socialismo mostraram a insuficiência dessas medidas. Os afro-americanos seguiam sendo cidadãos de segunda classe, vivendo em guetos econômicos e sociais. Era como se a escravidão tivesse apenas vestido andrajos novos.

Movimentos negros revolucionários de inspiração socialista apontavam para a questão material, por além dos direitos civis. Os Panteras Negras, de orientação marxista, gritavam: “Queremos casas decentes […].” “Queremos terra, pão, moradia, educação, roupas, justiça e paz […].” “Queremos desemprego zero […].” Reivindicavam direitos básicos para todos os afro-estadunidenses.[1]

Para o capital, impunham-se medidas que desarmassem a crescente mobilização social e política dos afro-estadunidenses, que perigava espraiar-se aos demais subalternizados. Havia duas grandes soluções. Sob a pressão dos trabalhadores, em muitos países, o Estado garantira, mais ou menos, os direitos fundamentais para toda a população, mesmo imigrada – escola básica, secundária e universitária pública; saúde; moradia, etc. Processo que não abolira a desigualdade da propriedade, essência dos privilégios e da exploração.

Onde pode, o capital opõe-se com unhas e dentes a essas concessões, devido aos seus custos econômicos, políticos e ideológicos. A fragilidade dos trabalhadores estadunidenses ensejou que essa proposta fosse substituída pela recauchutagem do ideário da “terra da oportunidade para todos”, desde que capazes e esforçados.

A retórica liberal-burguesa-protestante yankee prometia sucesso para todos os capazes que se esforçassem. Patrono do empreendedorismo estadunidense, Benjamin Franklin propusera: “Quem tem caráter, trabalha, trabalha e trabalha, vence”. E como todos não podiam vencer, a concorrência selecionava os mais capazes, fortalecendo o sistema. A capacidade e o esforço dividiam a sociedade entre winners [vencedores] e losers [perdedores].

A classe dominante ianque seria formada pelos melhores winners. O fato de serem quase totalmente anglo-saxões comprovaria a superioridade natural branca sobre africanos, asiáticos, ameríndios, etc. Visão introjetada na classe operária branca, “blue collars”, que acreditava se locupletar da opressão imperialista externa e interna.

Para restaurar o caráter performativo da narrativa ideológica da seleção natural dos vencedores, impunha-se o reconhecimento que a comunidade negra sofria as sequelas deixadas pela escravidão, quanto à educação, cultura, trabalho, etc. Aceitou-se que ela partia atrasada, na corrida pelo sucesso.

Para remediar esse handicap negativo, propôs-se intervenção no cume e não no sopé da pirâmide social, através de facilidades pontuais [“descriminação positiva”] para membros selecionados dessa minoria. Em vez de investimentos sociais maciços, facilitaram-se as possibilidades de progressão aos poucos negro-estadunidenses que batiam às portas das universidades, de empregos públicos, etc.

Sequer se treinou todos os afro-estadunidenses para a competição que seria ganha por apenas alguns, solução custosa para o capital. Equilibrou-se em forma limitada a desigualdade na competição com os anglo-saxões, dando um empurrãozinha em alguns afro-estadunidenses, no ponto de partida. Essa “política pública” foi apoiada pelas direções negras colaboracionistas, fortes no Partido Democrata e na classe média negra.

Os Panteras Negras foram objeto de terrível ataque geral pelo Estado, com literal campanha de extermínio físico e aprisionamento de militantes. Em apenas um ano, foram assassinados pela polícia quase trinta panteras negras. Centenas foram aprisionados e mantido por décadas na prisão.

Ao enegrecer relativamente a parte visível do Estado, exército, mídia, etc., a política das cotas mitigava a grave contradição da apologia da “terra das oportunidades” e ampliava o apoio ao capital entre as classes médias e superiores afro-estadunidenses fortalecidas, que descriminavam fortemente o proletariado e sub-proletariado negro.

Nos anos 1950, na Coréia, em nome da liberdade, generais brancos comandaram o ataque a amarelos diabolizados. Em 2006, midiáticos generais negros e latinos prestaram igual serviço em forma racialmente correta. Os soldados estadunidenses que retornaram mortos e estropiados eram e são sobretudo negros, latinos, asiáticos, etc., arrolados sob o açoite da necessidade econômica.

A política mostrou-se vitoriosa. Economizou somas astronômicas; fortaleceu a classe média negra como colchão amortecedor contra afro-estadunidenses deserdados; criou vitrine negra funcional à apologia estadunidense, ao mostrar que o negro também podia chegar lá! Obama foi a cereja desse bolo envenenado. Enquanto isso, enorme massa negra seguiu vegetando na miséria, ignorância, desemprego. O racismo manteve-se como cultura dominante, agora à margem da lei.

Nos anos 1980, durante o governo Clinton, a questão negra foi resolvida em parte com legislação que aumentou em 780% a população carcerária federal, em trinta anos. Com 5% da população mundial, os USA tem 20% da população prisional – 2.240.000. A porcentagem de negros prisioneiros é totalmente desproporcional à demografia do país. Hoje há mais afro-estadunidenses nas prisões que escravos no século 19. Há mais jovens negros na prisão e na droga do que na universidade e em bons empregos. O prisioneiro, sobretudo em prisões privadas, é explorado como um quase escravo.

   2.- Brasil: as cotas e o neo-liberalismo: a era petista (2002-2016)

Hegemônico na formação social escravista, o trabalhador escravizado lutou, sozinho, sem o apoio da população livre negra, parda, branca sobretudo por sua libertação. A vitória da Revolução Abolicionista, em 1888, unificou os trabalhadores, na sua diversidade, participando o negro com destaque nas lutas do mundo do trabalho. Após-1888, a luta contra o racismo e a descriminação racial passou a ser programa específico.

A visão do entrelaçamento das questões  racial e social foi precoce na esquerda brasileira. Em 1929, o primeiro operário candidato à presidência foi o marmorista Minervino de Oliveira, negro e comunista. Nos anos 1930, comunistas brasileiros propuseram um Estado negro independente na Bahia, em transplantação apressada das repúblicas autônomas soviéticas. José da Silva, comunista, foi o único “negro retinto” eleito à constituinte de 1945. Marighella, dirigente do PCB, era filho de operário italiano e seus avós maternos haviam sido cativos. A compreensão da questão negra no Brasil foi avançada sobretudo por pensadores de esquerda. Por falta de informação, militantes de esquerda assimilam a acusação de ”insensibilidade marxista” à questão racial.

É longa a história da luta da população com afro-ascendência no Brasil, que se constituiu como Estado-nação apenas a partir de 1930. Ela avançou em meados dos anos 1970, quando do movimento de redemocratização e das grandes mobilizações operárias. Então, dominava o movimento negro organizações e tendências de esquerda revolucionária, que vinculavam estreitamente a luta anti-racista e social. Na luta anti-capitalista, impunha-se matar o dragão da maldade racista, que oprimia trabalhadores e populares negros.

No Brasil, como os Panteras Negras, exigia-se trabalho, salário, segurança, moradia, saúde e escola pública para os jovens e a população negra, sem exceções. Rejeitavam-se as propostas trazidas por missionários negros estadunidenses da Fundação Ford – Departamento de Estado, de consolidar a sociedade capitalista e a exploração, pondo na vitrine algumas caras negras.

2.1. O PT e as cotas raciais

Em fins dos anos 1980 [dissolução da URSS], consolidou-se a vitória da maré contra-revolucionária e o refluxo da revolução através do mundo. Partidos, sindicados, associações, intelectuais de esquerda se reconverteram ao capitalismo. O PT abraçou o neo-liberalismo, passando a governar a nação, em 2002, segundo as necessidades do capital.

Parte do refluxo, a proposta de “discriminação positiva” [cotas] foi abraçada como política oficial, conquistando enorme consenso no movimento negro, fortemente dominado pela classe média negra. Alguns partidos de esquerda – PSTU, PCdoB, etc. – se opuseram a essa política, dobrando-se a seguir a ela sob a pressão da classe média negra, da mídia, do capital.

A exportação para o Brasil, pelo imperialismo, da política de “discriminação positiva”, tinha dois grandes objetivos. O primeiro, econômico, visava interromper a mobilização por serviços públicos  universais, com destaque para a educação. O que permitia desviar recursos públicos para objetivos não públicos: pagamento da dívida; financiamento do capital; corrupção, etc.

O segundo objetivo, político ideológico, visava dividir explorados negros e brancos, através de literal racialização da sociedade brasileira, lançada durante o governo de FHC, em 1995. Para essa proposta, no Brasil, o motor da história seria a oposição racial e não de classe. Não haveria contradição entre capital e trabalho, entre exploradores e explorados. Desde sempre, haveria oposição entre brancos [exploradores] e negros [explorados]. Para Sueli Carneiro, líder racialista, a esquerda e a direita são “a cara e a coroa de uma mesma civilização”.[2]

A administração lulo-petista abraçou furiosamente a política cotista. Ainda mais que a proposta de compensação de estudantes com alguma afro-ascendência, devido à exploração de algum ancestral, no passado, ou por discriminação racial, no presente, conquistou a simpatia da esquerda branca, bombardeada pela propaganda da mídia, do petismo neoliberal, dos intelectuais ao serviço do Estado, etc.

Poucos visualizaram que a concessão de 10%, 50% ou 100% das vagas de universidades públicas a estudantes com alguma afro-ascendência não exigia qualquer investimento, já que eram vagas existentes. Não se compreendeu que essa política neutralizava a luta pela universalização do ensino público. Ou seja, a proposta de que todos os jovens tem direito a uma vaga universitária. Realidade alcançada em muitos países mais pobres do que o Brasil.

Escamoteou-se que a entrega de algumas poucas vagas já existentes, para alguns estudantes com alguma afro-ascendência, foi acompanhada pela impulsão pelo governo petista da privatização do ensino universitário, através de transferência direta de recursos [ProUni, 2004]; de liberalização da legislação; de frágil expansão da rede pública, etc.

Vejamos os números. Nos anos 2013-15, as universidades públicas facilitaram a entrada anual de 50 mil estudantes com alguma afro-ascendência. Enquanto isso, o sistema universitário oferecia, anualmente, 10,6 milhões de vagas e acolhia apenas oito milhões de escritos. Portanto, 2,6 milhões de vagas, sobretudo privadas, não foram preenchidas, principalmente por questões econômicas.

Mais ainda. Se, em 1960, quase 60% das matrículas se davam em escola públicas, em 2010, 73% ocorriam em escola privadas. Em 2016, em plena crise, com refluxo do ensino privado e leve aumento do público, seis milhões de estudantes se matricularam em escolas pagas e menos de dois milhões, em públicas – 25%. [3] Uma tendência geral à privatização que  se aprofundou durante a Era Petista.

Em 1969, fui preso por pichar o muro da PUCRS exigindo a federalização daquela instituição. Durante todo o período lulo-petista, jamais a UNE – controlada pelo PC do B – organizou manifestação estudantil maciça pela estatização do ensino universitário privado e expansão portentosa das escolas públicas.

O governo lulo-petista não seguiu o grande irmão do Norte apenas na política de privatização do ensino e restrição de gastos sociais. Na era petista, a população carcerária brasileira explodia dos 240 mil, de 2003, para 620 mil, em 2014. Um acréscimo de 380 mil presos – 258%. Sendo que 67% dos aprisionados são sobretudo negros e pardos, que constituem, somados, no máximo, 53% da população nacional. [4]

Também a administração lulo-petista substituiu os investimentos sociais pelo encarceramento de centenas de milhares de brasileiros pobres, sobretudo jovens negros e pardos. Jamais ouvi liderança negra exigindo a libertação imediata dessa população encarcerada, como, fizeram, em 1967, os Panteras Negras: “Queremos liberdade para todos os negros que estejam em prisões e cadeias federais, estaduais, distritais ou municipais.”

2.2. A racialização da sociedade brasileira

Para prosperar a proposta das políticas “compensatórias focalizadas”, impunha-se reinventar a sociedade brasileira, que foi dividida arbitrariamente em brancos e negros, abolindo-se toda expressão descritiva nascida da enorme miscigenação conhecida no Brasil. Essa proposta se tornou política de Estado. Os negros seriam todos aqueles que tivessem alguma afro-ascendência. Na estranha adição, brasileiro com três avós europeus e um afro-descendente era contado estatisticamente como negro. Chegou-se, assim, à proposição de que mais de 50% da população brasileira fosse negra.

Proposta somatória que aglutinou nacionais com forte afro-descendência, objetos da violência racista, e outros que, conforme a região e, sobretudo, a situação social, são vistos universalmente como brancos. Proposta importada do velho racismo yankee que definia legalmente como negro todos que tivessem uma “gota de sangue negra” que fosse. Algo ridículo para o Brasil, onde 90% da população tem até 10% de ancestralidade africana.

Essa adição politicamente interessada levou defensores da racialização do Brasil a propor que a auto-definição étnica seja suficiente para o pertencimento a uma comunidade. Segundo o antropólogo Kabegele Munanga: “Se um garoto, aparentemente branco, declara-se como negro e reivindica seus direitos, num caso relacionado com as cotas, não há como contestar.” Seguindo tal interpretação, estudantes brancos ingressaram como negros em curso como medicina.

Além de comunidade negra inventada, impunha-se a construção de cultura afro-brasileira de fronteiras cerradas. O Brasil possui regiões com forte população afro-descendente e outras dominadas por descendentes de nativos, europeus, etc. É sobretudo abundante a população formada por inter-cruzamentos. Nossa cultura, língua, música popular é fortemente miscigenada, dominando apenas contribuições singulares, em algumas regiões.

Igualmente apoiada pelas petismo, impulsionou-se o ensino escolar obrigatório de disciplina isolada no ensino básico sobre a “cultura e história” afro-brasileira, em geral ministrada por professores não preparados. O que resultou comumente em apresentação folclorizada da música, dança, culinária como contribuição africana à cultura brasileira, ao estilo Gilberto Freyre.

Em vez desse put-pourri folcorizado, pretensamente exclusivo à etnia negra, impunha-se, ao contrário, a apresentação, integrada à história do Brasil, das raízes afro-escravistas como a coluna vertebral da civilização brasileira, própria a todos os nacionais. Além de folclorizar o passado afro-escravista, alicerce da nossa nação, reduz-se o cativo a mero ancestral biológico do afro-brasileiro, negando seu status objetivo de ancestral sociológico de todo brasileiro que se encontre subjetiva ou objetivamente no campo do trabalho, independente de sua origem étnica.

A proposta etnicista do ensino isolado da “cultura e da história negra” abre lugar para que as diversas outras “etnias” nacionais – alemães, italianos, poloneses, etc. – exijam o ensino de suas culturas, em processo perseguido de dissolução do princípio de sociedade e de cultura nacional, na sua diversidade, alicerçada no trabalho, instância unificadora da experiência humana.

Macaqueia-se o etnicismo estadunidense, combatendo inutilmente o racismo com a tentativa de convencimento do “outro” do valor de “minha” cultura. Foram o trabalho e a luta pela liberdade, e não a cultura, as contribuições centrais do negro cativo ao Brasil. Temos é que exigir o reconhecimento da escravidão negra, em todos seus aspectos, como a experiência demiúrgica da nacionalidade brasileira.

O elemento central dissociativo da proposta racialista é que não propõe a luta pelo fim da exploração, mas a integração equânime e escalonada na sociedade de classe das diversas comunidades étnicas imaginadas que comporia a nação – européia, africana, ameríncia, etc. Não haveria contradição entre ricos e pobres, explorados e exploradores, se entre os privilegiados houver número proporcional de afro-descendentes. Um negro morando na avenida Carlos Gomes é conquista histórica para os que seguem apanhando da polícia na periferia. Ele aumenta suas auto-estimas e prova que eles também podem chegar lá!

Consolidaria-se assim no Brasil a visão do liberal-capitalismo yankee que nega ontologicamente a possibilidade da construção de sociedade democrática, fraterna e igualitária, propondo como utopia máxima que as raças e culturas vivam, lado a lado, com seus representantes negociando o direito às mesmas oportunidades formais, no contexto de desigualdade estrutural capitalista, proposta como natural. Visão que põe fim não apenas ao princípio da união dos explorados como ao princípio de comunidade nacional e classista.

- MÁRIO MAESTRI é historiador, professor do PPGH da UPF. Centro de Estudos Marxistas do RS – CEM RS; Plenarinho da UFRGS, 6 de janeiro de 2018 (debate).

[1] BLOOM, Joshua; MARTIN, Waldo E. Black Against Empire California: University of California Press, 2013. pp 70-72.

[2] “Uma guerreira contra o racismo”. CAROS AMIGOS, fevereiro de 2000, pp. 24-9.

[3] CORBUCCI, P.R; KUBOTA, L.C.; MEIRA, A.P. Evolução da Educação Superior Privada no Brasil: da Reforma Universitária de 1968 à Década De 2010. p.8.

[4] http://justificando.com/2016/04/26/populacao-carceraria-brasileira-cresc...

Revista Espaço Acadêmico 13/01/2018
https://espacoacademico.wordpress.com/2018/01/13/o-marxismo-e-a-questao-...
 

https://www.alainet.org/es/node/190356?language=en
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