Cotas nas universidades paulistas: as intenções e o inferno astral do governo estadual
19/02/2013
- Opinión
Uma das coisas mais importantes no jornalismo, inclusive no chamado jornalismo opinativo é estar bem informado. Manuel Carlos Chaparro, professor do curso de jornalismo da ECA/USP sempre dizia que não existe uma fronteira intransponível entre informação e opinião – o que há de diferentes nos textos jornalísticos é o predomínio de um ou outro gênero.
Infelizmente o que se percebe em parte do jornalismo contemporâneo é a troca da opinião construída em argumentos centrados em informações e dados pelo opinionismo, o que vale é dizer o que eu acho e ponto, sem qualquer preocupação com a qualidade das argumentações.
Eliane Catanhêde, colunista famosa do jornal “Folha de S. Paulo” cometeu dois erros graves de informação nestes últimos dois meses para construir suas argumentações. Uma foi no caso da pretensa “crise energética” (disse que haveria uma reunião extraordinária do conselho de energia, quando esta reunião era ordinária e estava marcada há muito tempo) e, mais recentemente, quando disse que a reeleição do presidente do Chile, Sebastian Piñera, estava mal das pernas – o equívoco da colunista é que no Chile não existe a reeleição, como no Brasil, e portanto Piñera não pode ser candidato à reeleição.
O mais grave de tudo isso foi a recusa da colunista de assumir os seus erros e corrigir.
O opinionismo também aparece em alguns veículos fora do mainstream. Recentemente, fui criticado em um editorial de um portal de notícias especializado em questões raciais, junto com os meus colegas Silvio Almeida e Marcos Orione, por sermos contra a proposta dos reitores das universidades de “cotas” chamada “Inclusão com mérito”.
O editorialista do portal parte do pressuposto de que a postura nossa e da Frente Pró Cotas é de ser contra sem sequer se dar ao luxo de ler a proposta. Veja a argumentação: “Os títulos – “A demagogia da proposta de inclusão nas Universidades estaduais paulistas”, “A Inconstitucionalidade da proposta” e “Um Projeto elitista e excludente” – já dispensariam a leitura, porque escancaram o propósito: doutrinar, ao invés de esclarecer. Desqualificam, liminarmente, a proposta para os que não a conhecem, ou seja: os milhões de pretos, pardos e indígenas, estudantes de escolas públicas, que até agora foram mantidos do lado de fora dos muros de Universidades, ditas públicas, mas que, na verdade, só tem sido públicas para alguns poucos, inclusive os autores.” Realmente o autor do editorial seguiu a risca o que disse – “o título dispensa a leitura”, por isso ele não leu os artigos e caiu na fácil tentação do opinionismo.
Todo o meu artigo foi construído com base na proposta apresentada pelo Cruesp com o título “Inclusão com mérito” onde vou fazendo as críticas ponto a ponto da proposta, inclusive o valor da bolsa proposta para os alunos considerados “carentes” e até mesmo a linha de carência adotada. Como também o tal college, os seus critérios para aprovação para entrada na universidade (70% de aproveitamento nos dois anos) e vai por ai afora. Quem realmente leu o meu artigo sabe que ele foi construído com base em uma análise da proposta, inclusive fiz até um agradecimento ao João Mendes, militante da Unegro, que me disponibilizou o documento do Cruesp. Antes de ler este documento, não escrevi nenhum artigo a respeito. E nem o fiz com base apenas na leitura do título “Inclusão com mérito”, embora o título já suscite muitas discussões. Enfim, tive a preocupação sim de apresentar a proposta conforme consta neste documento e, em cima das informações, tecer a minha opinião.
Já o editorialista simplesmente tachou todos os artigos do que ele chama de “acadêmicos” como opiniões centradas em interesses partidários. Isto é, o fato da proposta ser oriunda de um governo do PSDB é que motivou as críticas. Interessante que o editorialista não faz o raciocínio inverso – que os defensores da proposta o fazem por serem aliados ao governo do PSDB, como por exemplo, o presidente do Conselho da Comunidade Negra, órgão do Poder Executivo do Estado de São Paulo (que, inclusive, tem um artigo publicado neste mesmo portal). E o mais grave ainda insinuou que tudo não passa de ação de “grupos de diferentes origens político-ideológicas que se opõem a Alckmin, na sua maioria, candidatos derrotados nas últimas eleições municipais em S. Paulo e cidades da região metropolitana.”
Já vi este filme antes, uma forma de desqualificar uma posição é dizer que há uma instrumentalização partidária do movimento. Uma tendência à criminalização da militância partidária e, ao mesmo tempo, uma desqualificação das pessoas que participam do movimento achando que elas são ingênuas o suficiente para servirem de “massa de manobra”.
Há mais de cinco anos que não milito em partido nenhum, militei durante muito tempo no Partido Comunista do Brasil (PC do B), partido, aliás, que o diretor do portal que hoje me critica foi candidato a prefeito de Cubatão em 2008 e também um partido que teve papel decisivo na construção de uma importante entidade do movimento negro brasileiro, da qual também fui um dos fundadores. Saí desta entidade e deste partido por divergências políticas e ideológicas e não porque criminalizo a militância partidária, muito pelo contrário. O editorialista vai resumindo o embate na disputa PT e PSDB sem se dar conta que parte significativa do movimento pró-cotas não é aliada ao PT.
Mas a raiz do problema está escondida no meio destas divagações do editorialista: “Na semana passada, a tentativa de abrir a discussão sobre a proposta com o responsável, reitor Carlos Vogt, conduzida pelo Frei David Raimundo dos Santos (foto), diretor executivo da Rede Educafro – o maior cursinho de pré-vestibulares para negros no país -, resultou em completo fracasso porque uma “plenária” foi convocada para o mesmo dia, no mesmo horário na Câmara Municipal pelos “contra”.”
Em outras palavras, o incômodo que gerou o editorial foi que o evento promovido pelo Educafro fracassou. Por que? Porque a Frente Pró-Cotas realizou no mesmo dia uma plenária. Como se a Frente Pró-Cotas fosse obrigada a seguir o comando do Educafro. E mais: se o editorialista diz que o evento da Frente Pró-Cotas é uma articulação “partidária” e mais além, afirma que “a maioria dos negros de S. Paulo e do Brasil não está interessada na disputa político-eleitoral que opõe PT e PSDB, nem na briga por espaço dos seus sócios ou oponentes menores no condomínio partidário, muito menos na verborragia juvenil e inconsequente dos que, de forma autoritária, querem silenciar – aos gritos, palavras de ordens vazias e clichês inspirados em um fundamentalismo messiânico déjà vu -, o saudável e necessário debate democrático” por que então, um evento da Frente Pró-Cotas, “partidarizado”, “verborrágico”, “infantil”, etc, etc, esvaziou um evento voltado ao “saudável e necessário debate democrático”?
A Frente Pró-Cotas tem proposta, ao contrário do que faz supor o editorialista. É o projeto de lei 530/2004 que tramita na Assembléia Legislativa. É com base neste projeto que o movimento pelas cotas quer discutir. E é também por temor a tramitação e possível aprovação deste projeto que o Cruesp lançou a proposta “Inclusão com mérito”, conforme admitiu o próprio reitor da Unesp publicada na Folha de S. Paulo (clique aqui para ler). Ora, se os próprios autores da proposta admitem estar temerosos de que uma proposta mais avançada seja aprovada, por que não fortalecê-la e ampliar a discussão para uma dimensão mais ampla que envolva também a assembléia legislativa? A questão central que o editorialista tenta fugir é esta: a estratégia mais adequada é se fechar em tentativas de diálogos com reitores de universidades que sempre foram contrários às cotas ou puxar a discussão para um fórum mais amplo em que o governo e o Cruesp tenham que se explicar à sociedade o porquê da resistência em pura e simplesmente implantar um sistema de reserva de vagas para as universidades estaduais.
Concluindo, o editorialista também tenta desqualificar eu e os meus colegas como acadêmicos ao dizer que as universidades são públicas para poucos, inclusive nós. Tenho dito em vários artigos meus, que as universidades são estatais e não públicas não só por conta do acesso restrito, mas também pelo quase nulo espaço de intervenção da sociedade civil. A produção científica da universidade pouco tem contribuído para responder as demandas da sociedade que a mantém. No caso da população negra, um exemplo disto é a ausência de pesquisas e estudos na área de saúde sobre a anemia falciforme. Ou um outro exemplo é o pequeno espaço existente nos currículos das licenciaturas para discutir as temáticas previstas nas leis 10639/03 e 11645/08.
Por isto, qualquer insinuação de que minhas posições são para defender privilégios é uma difamação sem propósito que só pode partir de quem não conhece a minha trajetória no movimento popular nos anos 1980 e no movimento negro desde os anos 1990 quando participei da organização do I Encontro Nacional de Entidades Negras, da Marcha Zumbi à Brasília, do Congresso Intercontinental dos Povos Negros, entre outros. Nesta trajetória, deparei com muitas diferenças de posições políticas, ideológicas e até mesmo éticas, tipo pessoas que usam o movimento negro para sobreviver subordinando a militância em oportunidades de negócios particulares. Minha consciência é tranquila e tenho o testemunho de muitas pessoas que me conhecem e que, ainda que divirjam de minhas posições, podem corroborar a honestidade e transparência das minhas posições. Não tenho procuração para defender os professores Silvio Almeida e Marcos Orione, mas pelo que conheço, posso dizer o mesmo referente a estas pessoas.
https://www.alainet.org/es/node/73797
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