Acusada de saqueadora

Caso de doméstica mostra divisão da Venezuela

07/02/2014
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 A costureira e doméstica Clotilde Palomino, de 57 anos, assistia televisão num final de tarde, em novembro do ano passado, quando o presidente venezuelano, Nicolás Maduro, fazia mais um de seus anúncios em rede nacional. Empolgada com o que escutou, ela saiu rapidamente da casa humilde onde vive, em uma região popular de Petare, Caracas, com a bolsa a tiracolo. Assim como ela, milhares de outros venezuelanos interpretaram a intervenção na rede de eletrodomésticos Daka, no início de uma ofensiva econômica de fiscalização de preços contra a especulação, como a grande oportunidade para comprar itens antes caros demais.

Luciana Taddeo/Opera Mundi

Clotilde Palomino: "Por que isso aconteceu justo comigo?
Todo mundo estava comprando e os pobres também têm direito"

A imagem logo rodou a Venezuela e o mundo. Horas depois, soube que estava sendo acusada de saquear uma loja da Daka em Valencia, no estado de Carabobo, onde houve confusão. O mau uso de sua foto por alguns meios de comunicação, que não deixaram claro que ela tinha pago pelos produtos, em Caracas, a tornou motivo de piada, difamação e ofensas nas redes sociais. “Por que isso aconteceu justo comigo? Todo mundo estava comprando e os pobres também têm direito de adquirir suas coisas”, reflete em voz alta, deixando lágrimas escorrerem.

O incômodo de certos setores da sociedade venezuelana com a corrida às lojas feita por pessoas como Clotilde ficou evidente e escancarou a forte polarização na Venezuela. A medida do governo contra os empresários expôs o choque entre os projetos do chavismo e da oposição, que criticou duramente Maduro e culpou o câmbio fixo pelos produtos que segundo o governo estavam hiperinflacionados em até 1.200%. Já o presidente, por sua vez, alertou que não aceitaria mais a “guerra econômica”.

“Fui a primeira a sair da loja e vieram vários fotógrafos. Fiquei impressionada e disse: ‘pareço artista de Hollywood’. Eu caminhava e eles tiravam fotos, e eu ria, feliz e emocionada”, conta ela. Nascida na Colômbia e naturalizada venezuelana, Clotilde não poderia prever a polêmica que se seguiu.
 
Clotilde passou a receber ameaças e viu o rosto estampado na web ao lado de duras acusações. “Foi horrível. Me escreviam dizendo para eu devolver as coisas, que meus filhos eram malandros, que eu deveria primeiro arrumar minha casa antes de ir comprar, que eu era tão ignorante que não sabia usar o que tinha comprado. Eu parei de sair por medo de ser agredida por pessoas da oposição ou por alguém que achasse que eu era uma ladra”, relata.
 
Mesmo depois de esclarecer que não tinha roubado nada, alguns sites ainda mantêm publicadas montagens degradantes. La Patilla, um conhecido portal sensacionalista venezuelano, de linha opositora, intitula “Os oito melhores memes da saqueadora da Daka (Fotos + Risos)”. O texto explica que “já ficou claro” que ela não é uma saqueadora, mas satiriza: “ (...) já não importava como tinha adquirido os objetos que carregava, mas sim essa expressão entre ‘êxtase e psicose’ que fez rir a mais de um”.
Polarização

O que aconteceu com Clotilde é uma consequência das transformações vividas pela sociedade venezuelana desde a chegada de Hugo Chávez ao poder, em fevereiro de 1999, que evidenciou e combateu a profunda desigualdade social no país. Esse choque de classes é consequentemente exteriorizado por meio do embate político entre chavismo e oposição.

Para o jornalista e escritor chavista José Roberto Duque, o argumento de que Chávez gerou a polarização do país parte de uma premissa errada. Segundo ele, os últimos 15 anos somente visibilizaram um conflito já existente na sociedade venezuelana. “O que a burguesia gosta de chamar de paz social é, na verdade, o silêncio dos explorados, que foi quebrado com esse governo”, diz ele, afirmando que o que Chávez fez foi evidenciar um conflito de classes “muito anterior a ele”.

Ele afirma que o “Caracaço”, em 1989, onda de protestos contra as medidas neoliberais do então presidente Carlos Andrés Pérez, que terminou com forte repressão em defesa da propriedade privada e milhares de mortes, é um dos melhores exemplos de que a polarização já existia. “Antes, nós, os pobres, não tínhamos uma expressão nacional. O que há agora é o povo chegando a espaços de poder e isso evidencia o conflito”, expressa, salientando que as medidas governamentais fazem com que a oposição aliada ao empresariado se sinta ameaçada.
 
http://lara.psuv.org.ve/

Cenas do "Caracaço", onda de protestos contra as medidas
neoliberais do então presidente venezuelano Carlos Andrés Pérez

Duque admite que o uso de termos pejorativos contra adversários aferre ânimos, mas refuta a acusação de que isso gere a polarização no país. “Essa não é a origem. Antes disso éramos chamados de criminosos, ignorantes, malandros e a classe alta venezuelana se denominou ‘pensante’, como se o resto da população não pensasse. Usavam um arsenal de adjetivos contra nós, e quando o presidente passou a usar adjetivos contra eles, isso passou a ser considerado grave. É uma grande hipocrisia”, disse.

Tentativas de diálogo

O caminho para uma sociedade menos polarizada não parece estar no horizonte próximo. “Mesmo após o golpe contra ele, Chávez chamou ao diálogo, e a resposta foi a paralisação empresarial e petrolífera. Houve outras tentativas, mas são inviabilizadas por uma ala radical da oposição que conspira permanentemente”, explicou Diego Sequera, chefe de redação do site Misión Verdad.

No final do ano passado, Maduro convocou governadores e prefeitos eleitos para um diálogo no Palácio de Miraflores. Em janeiro, após o assassinato de uma ex-miss, uma nova reunião foi realizada, dessa vez com a presença de Capriles. que foi criticado por setores mais radicais. Enquanto Capriles acena para o diálogo, opositores como Maria Corina Machado e Leopoldo López convocaram uma assembleia para discutir “a saída” do atual governo.
 
Na terça, Maduro acusou Capriles de passar uma semana em Miami, fugindo das funções como governador do estado de Miranda. “Saia às ruas, governador vago, te dou a ordem daqui”, expressou. O opositor não demorou em responder: “Ponha-se a trabalhar que o país está destruído”, criticou, afirmando, no entanto, que não participará da marcha opositora convocada por líderes opositores para o próximo dia 12 contra o que denominam como "regime" chavista.
 
- Luciana Taddeo | Caracas
 
 
https://www.alainet.org/es/node/83004
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