A China em nova etapa
Há razões para acreditar que o PC da China será capaz de superar o “desenvolvimento desequilibrado e inadequado” atual.
- Opinión
Grande parte da mídia ocidental continua sem entender a China. Para essa mídia, como se fossem totalmente inusuais, os únicos acontecimentos dignos de nota no recente 19º Congresso do Partido Comunista da China teriam sido a suposta ascensão do “pensamento Xi Jinping” ao nível do “pensamento Mao Tsé-Tung” e os prováveis indicadores de que Xi Jinping pretende romper o sistema de rodízio das lideranças do partido e do Estado a cada dez anos.
Pouco adianta explicar que o “marxismo-leninismo” e o “pensamento Mao Tsé-Tung” foram as referências básicas para a elaboração dos diversos “pensamentos” que reorientaram o caminho do PC da China e da nação chinesa no processo de construção socialista na China. Foi com base neles que tomou corpo o “pensamento Deng Xiaoping” (sobre a abertura e reforma do socialismo com características chinesas), elaborado há 39 anos e aprovado na 3ª Sessão Plenária do 18º Comitê Central do Partido Comunista da China, assim como o “pensamento Jiang Zemin” (das Três Representações), o “pensamento Hu Jintao” (das Perspectivas Científicas sobre o Desenvolvimento) e, agora, do “pensamento Xi Jinping” (Socialismo com Características Chinesas na Nova Época).
Cada um desses “pensamentos” representa uma avaliação crítica dos processos anteriores e corresponde à adoção de novas estratégias e novas táticas (políticas, econômicas, culturais etc.), necessárias à superação das contradições e dos desafios surgidos na evolução do processo de desenvolvimento do socialismo chinês. O que o 19º Congresso do PC da China avaliou é que os cenários internacional e interno atualmente vividos pelo país apresentam mudanças marcantes em relação aos períodos ou etapas anteriores e necessitam ser encarados como uma nova etapa no processo de desenvolvimento empreendido pelo povo chinês.
A crise global capitalista continua desorganizando inúmeras economias nacionais e apresenta sinais de que pode transformar-se numa guerra destrutiva. Ela já havia obrigado a China a realizar intensa reestruturação econômica, fazendo com que o mercado interno passasse, de uma hora para outra, a ser o foco principal de seu desenvolvimento e que seu ritmo de crescimento fosse reduzido de 9%-10% ao ano para 6,5%-7% ao ano.
Embora tal crescimento ainda seja quase três vezes superior ao da maioria dos países do mundo, ele trouxe à tona desafios até então considerados secundários e de mais longo prazo pelo partido. Por exemplo, a capacidade excessiva de muitos de seus setores industriais emergiu prematuramente como um dragão perigoso. O mesmo ocorreu com a constante desigualdade no desenvolvimento entre as províncias costeiras e as províncias ocidentais. O PIB dessas cresceu de 17,1%, em 2000, para somente 18,7% em 2010, fazendo com que continuassem ocupando os últimos lugares na lista do desenvolvimento chinês. Além disso, a crescente perda da vantagem da mão de obra barata emergiu antes que o crescimento econômico tivesse condições de absorver os 240 milhões de lavradores restantes que se tornarão excedentes à medida que as tecnologias agronômicas substituam a força de trabalho humano nas lides rurais.
O setor de aço é um exemplo de capacidade excessiva. Sua produção se elevou de 513 milhões de toneladas, em 2008, para 803 milhões de toneladas em 2015, cerca de 300 milhões de toneladas a mais do que a produção conjunta dos EUA e da Eurozona. Muitas empresas de outros setores encararam situação idêntica, tendo que endividar-se ou entrar em bancarrota. Nessas condições, relocalizar externamente empresas de setores excedentes passou a ser uma das necessidades estratégicas do Estado chinês.
A relocalização dos setores excedentes para países vizinhos, assim como o aumento da internacionalização de empresas chinesas, principalmente estatais, para países da Ásia, África e América Latina, poderia cumprir o duplo papel de resolver o problema da superprodução e do fraco desenvolvimento das províncias ocidentais chinesas. Mas isso dependia da articulação de um projeto mais amplo de integração com outros países.
A perda de vantagem no baixo custo da mão de obra, de outro lado, impunha a necessidade de a China elevar sua produção ao ponto mais alto da cadeia de valor global. O que dependia da elevação do padrão de sua indústria, demandando um programa ainda mais intenso de desenvolvimento científico e tecnológico, ao mesmo tempo em que o crescimento econômico deveria continuar mantendo o desemprego em taxas máximas de 4% a 5%.
Pode-se dizer que o enfrentamento de tais desafios teve início antes mesmo da crise global de 2008, com as Perspectivas Científicas sobre o Desenvolvimento, de Hu Jintao, e a aprovação, em 2005, do objetivo de transformar a China, até 2049 – aos 100 anos da proclamação da República Popular da China –, numa potência tecnológica, superando as grandes potências capitalistas. A estratégia para realizar esse desenvolvimento compreende três etapas: a primeira até 2025, visando reduzir a diferença tecnológica com os demais países; a segunda, até 2035, de fortalecimento da posição; e a terceira, até 2045, de alcançar a liderança mundial em inovação.
Essa estratégia continua em vigor, incluindo fusões e reorganizações empresariais, ênfase na inovação, desenvolvimento sustentável, fabricação inteligente, assim como mudanças no padrão de crescimento, transitando da velocidade para a qualidade. Essa é a base para impulsionar os demais setores, como os de investigação e produção de tecnologias inteligentes, automatização e combinação estreita entre industrialização e informatização, especialmente em setores prioritários, como os de tecnologias da informação, equipamentos aeroespaciais, equipamentos ferroviários, veículos com novas energias, ferramentas de controle numérico e robótica.
A efetivação dessa estratégia inclui ainda o desenvolvimento da capacidade de inovação, a otimização da infraestrutura industrial, a formação de talentos, a reforma dos mecanismos e sistemas, a melhoria da administração industrial, a simplificação dos procedimentos administrativos, a melhoria da cooperação entre governo, sistema produtivo e universidade, a criação de um mercado multidimensional de capitais e de mercados competitivos com padrões nacionais, o desenvolvimento de centros de pesquisa e de empresas de tecnologia avançada, e o aumento do financiamento estatal para apoio à indústria manufatureira.
Em correspondência com essa estratégia, a China também reformou o sistema de administração dos investimentos estrangeiros, promoveu intercâmbios e administrou os impostos, reduzindo as barreiras de acesso ao mercado, revendo as políticas relativas a ferro e aço, engenharia química e engenharia naval, e se abrindo ao uso de fundos industriais externos para a participação internacional no desenvolvimento de equipamentos ferroviários, elétricos e de construção.
Com tudo isso, entre 2005 e 2015 a China passou a contar com 50% da malha mundial de trens de alta velocidade, utilizando tecnologias importadas e aportes tecnológicos próprios. Ela também elevou para 58,2% a automatização industrial por controle numérico e para 33,3% a penetração de ferramentas de desenho. Continuando nesse ritmo, em 2020 a China já terá se tornado o país que mais investe em pesquisa e desenvolvimento (P&D), 2% a 2,5% do PIB, com seus avanços científicos e tecnológicos ascendendo a 60% do PIB. Nessa ocasião terão entrado em funcionamento quinze novos centros de P&D e hubs de inovação tecnológica e se concretizará a exigência de elevar para 40% o uso de componentes básicos de produção local (“inovação autóctone” ou “inovação local”).
Desse modo, o plano de desenvolvimento científico e tecnológico não se restringiu à inovação, mas ao processo geral de produção, combinando a participação estatal com a participação de mecanismos de mercado. Dizendo de outro modo, com seu progressivo programa de “abertura e reformas”, “três representações” e “desenvolvimento científico”, o socialismo com características chinesas deu um salto imenso em seus desenvolvimentos econômico (tornou-se a segunda potência econômica mundial), social (retirou mais de 800 milhões de pessoas da linha da pobreza), cultural e político (o povo como referência básica).
No entanto, o entorno geopolítico e geoeconômico, assim como a situação econômica e social interna da China, passou a apresentar problemas e contradições que o projeto de desenvolvimento científico não conseguiu resolver. Problemas e contradições que exigem, além de dar prioridade ao desenvolvimento científico do país, reforçar a integração com outros países e atender as necessidades crescentes de seu povo por uma vida melhor em todos os aspectos.
Em certo sentido, a China parecia adotar um caminho idêntico ao dos Estados Unidos e de outros países centrais para ampliar sua ação econômica e política. A diferença consiste em que a China estimula e deve continuar estimulando outros países a seguirem seu caminho de industrialização com desenvolvimento soberano. Mas a ela faltava, além do projeto do Brics e de seu banco de desenvolvimento, outro projeto de impacto que fortalecesse a integração com seus vizinhos asiáticos e com a Europa.
Tal projeto foi lançado em 2013, por Xi Jinping, que em 2012, durante o 18º Congresso do PCC, substituíra Hu Jintao na Secretaria-Geral do PC e na Presidência da China. Denominado Iniciativa Cinturão e Estrada (ICE), também conhecido pela sigla em inglês Obor (One Belt One Road), pretende construir infraestruturas ferroviárias e marítimas que integrem economicamente os países asiáticos e europeus, representando o mecanismo mais ousado para viabilizar o plano de desenvolvimento científico e tecnológico chinês e superar suas atuais contradições econômicas e sociais.
Xi Jinping o classificou como uma Nova Rota da Seda Terrestre e Marítima. Ou seja, um ambicioso projeto que, por terra, conectará as diferentes províncias chinesas com os países da Ásia Central (Quirguisia, Tadjquistão, Casaquistão, Uzbequistão, Turquimenistão, Irã, Paquistão, Turquia) e com países da Europa (Polônia, Alemanha e Itália). Por mar as províncias chinesas serão conectadas a países do Sudeste Asiático (Malásia, Singapura, Indonésia, Tailândia, Sri Lanka), da África Oriental (Tanzânia, Quênia, Somália, Etiópia), do Oriente Médio (Sudão, Egito, Arábia Saudita) e da Europa (Itália).
Embora haja uma dimensão geopolítica no projeto ICE, sua dimensão geoeconômica está intimamente relacionada às transformações ocorridas na política industrial doméstica. A China reconhece que os países vizinhos podem desempenhar papel importante em sua estabilidade interna, sendo necessário estreitar os laços econômicos e políticos com eles, construindo um vasto projeto de integração econômica e criando uma cadeia de produção regional, dentro da qual a China pode ser um centro manufatureiro e de inovação.
Alguns analistas acreditam que, com investimentos programados de mais de um trilhão de dólares, o ICE tende a minar a influência dos Estados Unidos sobre o amplo mercado euroasiático e reformatar o mundo silenciosamente, ameaçando a chamada ordem internacional “liberal” ou “neoliberal”. Embora isso não faça parte dos planos chineses, e esses considerem perigoso tal tipo de raciocínio, não há dúvidas de que os Estados Unidos não veem com bons olhos tal projeto. Talvez por isso a China também se empenhe em reforçar a Organização de Cooperação de Xangai (OCX), à qual aderiram a Índia e o Paquistão, fazendo com que ela se torne não só a maior organização política – por área e por população – do mundo, mas também a que reúne o maior número de potências nucleares (quatro), constituindo aquilo que Xi Jinping classifica como "um novo tipo de relações internacionais com vistas à cooperação ganha-ganha".
De outro lado, internamente, mais do que antes, o PC da China e o Estado chinês estão obrigados a “prestar maior atenção ao trabalho, ao emprego e aos ingressos dos habitantes, à seguridade social e à saúde do povo”, assim como à luta contra a corrupção, pela ampliação da democracia e pela recuperação do meio ambiente. O enfrentamento desses problemas tornou-se, mais do que antes, essencial para o desenvolvimento do socialismo com características chinesas na nova etapa em que ingressou.
No campo do trabalho e do emprego, embora até agora a China tenha atuado no sentido da formalização institucional dos direitos dos trabalhadores, incluindo-a como instrumento de inclusão social e dinamização da economia, há um empenho continuado para não transformar o Estado chinês em paternalista. Em tais condições, o PC da China continua estimulando que os trabalhadores lutem por seus direitos, de modo a distinguir os interesses de classe envolvidos e ter o Estado socialista como um aliado.
Se o socialismo é apenas uma transição do modo capitalista de produção e de vida para o modo comunista de produção e de vida, comportando a cooperação e o conflito entre as formas capitalistas e as formas sociais, seria um engano estender uma capa totalmente protetora do Estado socialista sobre os trabalhadores, ao invés de estimulá-los a descobrir os mecanismos de exploração do capital através da luta e da experiência prática. Nesse sentido, o crescimento dos movimentos trabalhistas na China só representa um perigo para a continuidade do socialismo com características chinesas se o PC não estiver ao lado dos trabalhadores em suas lutas.
Mais complexo nesse caminho é o fato de que o continuado desenvolvimento científico e tecnológico do processo produtivo chinês tende a pressionar cada vez mais pela redução dos postos de trabalho e a evitar a criação de novos, tornando realidade crescente o desemprego estrutural. Embora a experiência do seguro-desemprego chinês, associada à obrigatoriedade da reciclagem profissional ou de trabalhos comunitários, seja um indicador interessante para o futuro, talvez seja necessária uma ampliação considerável dessas associações com o estudo científico e tecnológico e com as atividades culturais, já presentes embrionariamente nos diversos pensamentos que vêm embasando o socialismo com características chinesas.
O mesmo acontece com o enfrentamento da corrupção, já apontada por Mao Tsé-Tung como as “balinhas de açúcar” capazes de desviar quadros e militantes, por Deng Xiaoping como um dos perigos mais terríveis a serem enfrentados pelo socialismo, e por Xi Jinping como a principal ameaça ao PC da China e ao socialismo. Não por acaso a primeira etapa de seu mandato foi marcada por uma campanha implacável, dos mais altos escalões do partido e do Estado aos mais baixos, contra os envolvidos em ações relacionadas à corrupção.
Finalmente merece destaque a atenção dada à luta pela recuperação ambiental, degradada tanto pelas inúmeras gerações que habitam a China há milênios quanto pelo desenvolvimento dos anos mais recentes. Tal ênfase tem por base a atual busca do desenvolvimento sustentável e as mudanças no padrão de crescimento, que está transitando da velocidade para a qualidade, de modo a construir uma “civilização ecológica socialista”. De um país acusado de destruidor do meio ambiente a China tornou-se a maior investidora nessa área e tudo indica que continuará nesse rumo.
Concluindo, há sérias razões para acreditar que o PC da China será capaz de superar o “desenvolvimento desequilibrado e inadequado” atual do “socialismo com características chinesas” pelo atendimento às “necessidades sempre crescentes (de seu povo) por uma vida melhor”. Isto é, satisfazer o anseio do povo chinês “por uma vida material e cultural superior”, por mais democracia, igualdade, justiça, segurança e meio ambiente recuperado, levando a China a um desenvolvimento pleno e equilibrado para atender as exigências populares e enfrentar as ameaças à sua segurança.
- Wladimir Pomar é escritor e membro do Conselho de Redação de Teoria e Debate
Edição 166, 08 novembro 2017
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