Venezuela: a OEA, a Unasul e a política externa brasileira
01/04/2014
- Opinión
Os protestos que já duram quase dois meses na Venezuela levaram as diferentes instituições regionais a se posicionarem, e têm gerado debate polarizado no Brasil. Os processos de tomada de decisão e as ações em curso revelam que persistem tensões na Venezuela, e também um quadro novo no jogo multilateral das Américas. Internamente, os grupos radicais perdem legitimidade e partem para ações mais violentas; regionalmente, a América Latina mostra que não quer ser mais tutelada. A Unasul acerta ao ir à Venezuela e favorecer o diálogo. A oposição no Brasil erra ao colocar em jogo as excelentes relações com a Venezuela.
Em 2002, houve um golpe na Venezuela contra o presidente Chávez. Apenas Estados Unidos e Espanha, além do Fundo Monetário Internacional, reconheceram o presidente golpista, dando legitimidade à ruptura institucional. O golpe fracassou e, doze anos depois, a Organização dos Estados Americanos (OEA), liderada pelos Estados Unidos, e a Cúpula Ibero-Americana, liderada pela Espanha, estão fragilizadas. Por outro lado, se consolidam instituições latino-americanas sem a participação de potências extrarregionais, como a Unasul e a da Comunidade de Estados Latino-Americanos e do Caribe (CELAC), com destacado protagonismo de Brasil e Venezuela.
Muitas análises internacionais sobre os recentes eventos da Venezuela têm o seguinte roteiro: a Venezuela violaria os direitos humanos e a democracia, muitos países da região teriam sido comprados pelo petróleo venezuelano e há uma vinculação ideológica entre o (Partido dos Trabalhadores) PT e o processo bolivariano que impediria uma reação mais dura por parte do Brasil. O suposto fracasso do bolivarianismo colocaria em xeque toda a recuperação da ação estatal que a América Latina desenvolveu nos últimos anos.
A britânica The Economist, em sua edição da semana passada, gastou uma página completa para afirmar que o Brasil havia esvaziado as discussões da OEA para tratá-las na Unasul, que a Venezuela será um tema nas eleições do Brasil e que a democracia e os direitos humanos só poderiam ser respeitados pela política externa brasileira em caso de vitória da oposição. O alvo explicito é a reeleição de Dilma Rousseff.
A oposição venezuelana e os países mais simpáticos a ela, EUA e Panamá, optaram por levar o tema à OEA com o objetivo de criar uma missão de observação. A primeira tentativa, em 6 de março, saiu pela culatra. O texto final, aprovado por 29 votos a 3 (EUA, Canadá e Panamá), apresentou “o mais enérgico rechaço a toda a forma de violência e intolerância e um chamado a todos os setores à paz, à tranquilidade, ao respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais, incluindo os direitos à liberdade de expressão e reunião pacífica e circulação”, sem qualquer menção aos observadores. No dia seguinte, a mesma OEA apresentou defesa do “governo democraticamente eleito”. Ambas as reuniões foram fechadas, sem nenhum alarde na imprensa sobre este ponto.
Os derrotados apresentaram a versão de que o petróleo venezuelano havia comprado os votos da maioria dos países da região. O espanhol El País tachou: “Caracas exerce seu império entre os Estados membros”. Um simplismo absoluto sob qualquer conceito de império ou imperialismo. O PIB dos Estados Unidos corresponde a um valor próximo a 70% e o da Venezuela a algo como 1,5% da produção total das Américas. Até o México, subordinado ao NAFTA, votou com os venezuelanos.
O secretário de Estado John Kerry falou pela primeira vez em 11 de março que o governo Obama estaria “preparado” para sanções à Venezuela, pois “os vizinhos da Venezuela não estão nos escutando”.
Em 14 de março, após a posse da presidenta Michelle Bachelet, os chanceleres da Unasul se reuniram em Santiago. Além de declarar apoio ao governo venezuelano, decidiram realizar uma visita à Caracas. Não para observar, como gostariam os Estados Unidos, mas para “apoiar, assessorar e ajudar o diálogo”. Novamente a violência foi condenada e se enfatizou a preocupação com qualquer ameaça à independência ou soberania da Venezuela.
Uma semana depois, em 21 de março, a deputada radical María Corina Machado tentou criar um fato político em reunião da OEA. Foi inscrita como representante-adjunta do Panamá para entrar na sessão. A reunião foi novamente fechada; os relatos indicam que ela sentou à mesa como membro da representação do Panamá, que o embaixador do Panamá teria garantido que ela não pronunciaria sobre a Venezuela e, assim que o fez, perdeu o direito à palavra por decisão dos Estados membros. Além de não sensibilizar nenhum dos governos da região, ainda deu argumento para os deputados mais exaltados exigirem a sua cassação por representar um país estrangeiro em uma reunião internacional. Esta tem sido a praxe da oposição radical: provocar uma ação que é vista como violenta com o objetivo de provar a violência do Estado.
Após a conclusão dos debates na OEA e antes da visita da Unasul à Caracas para fortalecer o diálogo, houve uma onda de ataques de políticos norte-americanos ao governo venezuelano. A fragilidade dos argumentos foi sintetizada pelo senador Marco Rubio (republicano da Florida). Começou o discurso para os seus pares afirmando que sabe “que a situação com a Ucrânia tem cativado a atenção do público, mas quero falar sobre algo que está acontecendo em nosso própriopátio traseiro”, apresentou como prova do desrespeito aos direitos humanos o uso de jatos de água e gás lacrimogêneo, sobre este acrescentando que teriam uma marca “Hecho en Brasil, Made in Brazil”, mostrou uma foto de supostos franco-atiradores do governo venezuelano contra os protestos em Táchira (depois foi revelado que a foto, registrada pela AFP, era de 2013, da segurança do Palácio Presidencial, em Caracas), criticou os 29 países da OEA que não deram a palavra a María Corina, aplaudindo o empenho do Panamá; questionou a transferência de recursos para uma OEA que não teria mais capacidade de intervenção e concluiu defendendo sanções econômicas contra a Venezuela.
Nos dias 26 e 27 de março, oito chanceleres e representantes de todos os países da Unasul estiveram em Caracas. Participaram de reuniões das comissões de política e da de economia da Conferência de Paz e ouviram diferentes setores. O deputado Julio Borges, reconhecido crítico do chavismo e líder do partido de Capriles, participou com outros representantes da oposição. Da mesma forma, estudantes dos dois lados, religiosos de diversas denominações, poderes públicos, ONGs de direitos humanos. Por fim, os chanceleres “reafirmaram seu estreito apoio à democracia, ressaltando a vontade coletiva da Unasul em apoiar um processo de diálogo amplo e respeitoso, levando em consideração a Conferência Nacional de Paz, e reiteraram a condenação a qualquer tentativa de ruptura da ordem constitucional”.
É consenso que há uma diminuição da importância da OEA e que esta coincide com o declínio daCúpula Ibero-Americana, formulada e financiada majoritariamente por Espanha e Portugal. Nasceu com os preparativos das comemorações espanholas pelos 500 anos da ocupação europeia das Américas, na tentativa de aumentar seu peso político ao se apresentar como interlocução privilegiada com a América Ibérica. O início dos anos 1990 coincidiram com a criação da União Europeia, com a hegemonia neoliberal na América Latina e com a onda de privatizações que levaram à aquisição de empresas públicas de diferentes países por transnacionais europeias, particularmente espanholas.
Mesmo sendo um braço europeu na região, a Cúpula Ibero-Americana perde força à medida que a CELAC ganha. Evidencia-se que o compromisso de integração da América Latina é, hoje, maior com o Caribe do que em relação às antigas metrópoles. A edição de 2013 da Cúpula Ibero-Americana foi realizada (não por acaso) no Panamá com a presença de menos da metade dos chefes de Estado dos países membros e sua principal decisão foi que a partir de 2014 o fórum passará a ser bienal, não anual como havia ocorrido nos últimos 23 anos. Dos doze presidentes sul-americanos, apenas Juan Manuel Santos da Colômbia e Horacio Cartes do Paraguai foram ao evento.
O processo de fundação CELAC, que começou com a Cúpula da América Latina e Caribe sobre Integração e Desenvolvimento (CALC) em 2008 em Salvador da Bahia, por iniciativa do presidente Lula, e culminou em 2011 em Caracas, respaldada pelo presidente Chávez, contou com a participação de mais de 30 chefes de Estado em ambas as ocasiões. É a síntese do grande esforço de aproximar os países do Caribe à América do Sul e Latina. Hoje, Guiana e Suriname se reconhecem como sul-americanos; há quinze anos, se viam apenas como caribenhos. O Brasil está mais próximo da República Dominicana, a Argentina mais próxima de Cuba, o Uruguai está mais próximo do Haiti. Esse não é um mérito apenas brasileiro ou venezuelano, mas foi o instrumento que permitiu ao Brasil ter uma presença sem precedentes no Caribe. Hoje, há indústrias brasileiras na República Dominicana, o país constrói a maior obra de infraestrutura de Cuba, lidera a missão de paz da ONU para a estabilização do Haiti, discute projetos conjuntos com a Guiana e o Suriname e tem uma presença diplomática mais ampla do que qualquer país europeu no Caribe.
Há, portanto, um claro contraste entre o papel histórico da OEA e o atual protagonismo do novo multilaterialismo latino-americano. O próprio secretário-geral da OEA, José Miguel Insulza, que outrora fora muito crítico ao governo Chávez, afirmou em aula inaugural na Universidade do Chile, nesta segunda (31/3), que os problemas da Venezuela devem ser resolvidos internamente, desqualificando a instituição de sua trajetória a serviço do intervencionismo norte-americano. Talvez a memória de intervenções, como as invasões da Guatemala, República Dominicana e Granada, no século passado, e o apoio aos golpes contra Aristides, Zelaya e Lugo, neste século, ajudem a explicar a posição dos caribenhos e latino-americanos pelo rechaço à violência, o respaldo ao governo democraticamente eleito e a exigência de respeito à soberania e independência da Venezuela hoje.
Também em 31 de março, o governador da Florida, Rick Scout (republicano), afirmou no discurso em que prometeu encaminhar a Barack Obama abaixo-assinado organizado por uma venezuelana que vive nos EUA há 37 anos e firmado por um mil (!) pessoas, que “o presidente tem que tomar medidas, necessitamos impor sanções econômicas ao regime de Maduro”.
Sanções econômicas norte-americanas são absolutamente improváveis, pois, entre outros fatores (como as eleições de novembro próximo para muitos governos dos EUA, incluindo o da Florida, câmara dos deputados, legislativos locais e um terço do senado), impactariam diretamente na cooperação que a Venezuela pratica no Caribe. Estratégias de integração como a ALBA e, principalmente, a Petrocaribe, têm amenizado os efeitos da crise econômica na região nos últimos 6 anos. No Haiti, por exemplo, a Venezuela é o único país que aporta recursos para o orçamento do governo e não apenas em projetos específicos. A deterioração da situação do Caribe teria impacto direto no fluxo migratório de caribenhos das camadas mais pobres para os EUA, o que não interessaria para os norte-americanos no curto e médio prazos.
Interessa, sim, aos EUA manter a instabilidade na Venezuela e diminuir as possibilidades de exportação de inspirações bolivarianas para países da região. Não querem novos Zelayas, não gostaram da eleição recente de Sanchéz Cerén em El Salvador, desejariam que o Daniel Ortega e os sandinistas estivessem fora do poder na Nicarágua. Ao mesmo tempo, porém, não convém o colapso das economias haitiana, dominicana ou nicaraguense.
Os setores que radicalizaram nos protestos são muito minoritários. As lideranças Leopoldo López e María Corina nunca encontraram respaldo eleitoral fora da zona mais afluente da região metropolitana de Caracas. María Corina havia tido 234 mil votos nas eleições parlamentares de 2010 e López governou a rica Chacao entre 2000 e 2008. Em 2012, quando a oposição realizou prévias para escolher o candidato que enfrentaria Hugo Chávez, Leopoldo López abandonou a disputa e María Corina teve apenas 3,7% (110 mil) dos votos no escrutínio que definiu Henrique Capriles como candidato. Nos últimos dias, os estudantes que organizam barricadas vaiaram Capriles. A grande maioria dos que votaram na oposição são contra os protestos violentos; na última pesquisa do instituto Hinterlaces, divulgada em 16 de março, 87% dos venezuelanos pensam assim. As lideranças políticas e econômicas da porção majoritária da oposição sabem que López e Corina não são alternativas de governo e que o colapso do sistema político venezuelano levaria a grandes incertezas. Poucos ganhariam com um golpe ou autogolpe; Maduro e Capriles, personalidades políticas mais populares do país, não figuram neste grupo.
As lideranças da oposição mais radical na Venezuela não acreditam em um golpe tradicional no curto prazo. Apostam no desgaste constante ao qual episódios esporádicos de violência, com períodos de desestabilização pontuais, são fundamentais para a grande exposição midiática dentro e fora do país.
Ao capital internacional, expresso na opinião da The Economist, aos europeus moderados, expressos pelo El País, à oposição brasileira, expressa pelos maiores meios de comunicação nacionais, interessa um quadro de instabilidade sem colapso.
É lamentável que para a manutenção da instabilidade há que se ter espaço para o radicalismo que se converteu em quase 40 mortes nos últimos 50 dias. É lamentável que destruam universidades e postos de saúde, que ateiem fogo em sedes de ministérios, que coloquem em risco parte dos grandes avanços sociais que a Venezuela alcançou nos últimos anos.
O Brasil ganhou muito com o chavismo e tem muito a ganhar com a estabilidade política, o avanço democrático e o desenvolvimento econômico e social da Venezuela. Nos últimos anos foram concluídos importantes projetos de infraestrutura, houve um grande aumento do comercio bilateral e dos investimentos brasileiros na Venezuela, ampliaram-se as formas de cooperação. Juntos, Brasil e Venezuela criaram e fortaleceram instituições para a integração.
A torcida contra a Venezuela atrapalha o diagnóstico dos problemas, que não são poucos, e das limitações do processo político em curso no país. Mais que isso, dificulta a construção de soluções.
Há, porém, outra agenda. Fortalecer a recém-criada, por sugestão dos chanceleres da Unasul, Comissão de Direitos Humanos, vinculada à Presidência da Venezuela; garantir a investigação e punição dos responsáveis pelas quase 40 mortes; apoiar as propostas que forem construídas na comissão econômica da Conferência de Paz, particularmente no que se refere ao abastecimento de alimentos e à segurança na distribuição de energia elétrica, a consolidação do novo sistema de acesso à divisas e à desburocratização do comércio exterior e ao reforço a produção nacional.
A Unasul e o Brasil podem contribuir com essa pauta, que não deve ser restrita ao curto prazo. O fortalecimento da democracia e o desenvolvimento econômico e social do Brasil tem hoje as condições históricas para associar-se ao dos seus vizinhos. O colapso de qualquer país sul-americano, é uma derrota para a Unasul e desastroso ao Brasil.
A política externa, como qualquer política pública, deve ser debatida à exaustão pela sociedade. Em texto recente em O Estado de S. Paulo, o ex-embaixador Rubens Barbosa critica a proposta de criação de um Conselho de Nacional de Política Externa. Em sua leitura, o conselho serviria para esvaziar o papel do Itamaraty e violaria do art. 87, I, da Constituição Federal brasileira, que, em seu entender, daria “atribuição exclusiva ao Ministério das Relações Exteriores para coordenar os órgãos da administração pública federal em sua área de competência”. A proposta não esvazia o ministério, tampouco é inconstitucional; pelo contrário. A Constituição sequer cita o Ministério das Relações Exteriores, o referido artigo trata de atribuições dos ministros em geral, não de ministérios. O espírito da constituição cidadão é que a sociedade participe da formulação de políticas públicas; nos últimos 25 anos, o Brasil tem caminhado nesse sentido em muitas áreas.
A política exterior não pode ser dissociada das outras políticas públicas nem ser autônoma em relação à vontade popular. O Conselho Nacional de Política Externa, como o nome indica, não teria função executora nem atribuições que são exclusivas do Itamaraty. Seria um espaço de diálogo e reflexão com a sociedade civil, sindicatos, empresários, movimentos sociais, intelectuais, governos subnacionais e outros ministérios, de modo a propiciar ao executivo uma visão mais ampla da complexa sociedade brasileira e de seus anseios em relação à inserção internacional. Seria mais uma demonstração da maturidade de nossa democracia.
Se o Conselho existisse, provavelmente os interesses brasileiros nas relações estratégicas com países como a Venezuela, a Colômbia, o Peru ou a Argentina estariam mais protegidas de querelas eleitorais. Se o Conselho existisse, haveria melhores condições para dar consequência, adequada às complexidades atuais, ao art. 4º, parágrafo único, de nossa Constituição que, ao reger as relações internacionais do Brasil, define que o país “buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”.
Em 2002, houve um golpe na Venezuela contra o presidente Chávez. Apenas Estados Unidos e Espanha, além do Fundo Monetário Internacional, reconheceram o presidente golpista, dando legitimidade à ruptura institucional. O golpe fracassou e, doze anos depois, a Organização dos Estados Americanos (OEA), liderada pelos Estados Unidos, e a Cúpula Ibero-Americana, liderada pela Espanha, estão fragilizadas. Por outro lado, se consolidam instituições latino-americanas sem a participação de potências extrarregionais, como a Unasul e a da Comunidade de Estados Latino-Americanos e do Caribe (CELAC), com destacado protagonismo de Brasil e Venezuela.
Muitas análises internacionais sobre os recentes eventos da Venezuela têm o seguinte roteiro: a Venezuela violaria os direitos humanos e a democracia, muitos países da região teriam sido comprados pelo petróleo venezuelano e há uma vinculação ideológica entre o (Partido dos Trabalhadores) PT e o processo bolivariano que impediria uma reação mais dura por parte do Brasil. O suposto fracasso do bolivarianismo colocaria em xeque toda a recuperação da ação estatal que a América Latina desenvolveu nos últimos anos.
A britânica The Economist, em sua edição da semana passada, gastou uma página completa para afirmar que o Brasil havia esvaziado as discussões da OEA para tratá-las na Unasul, que a Venezuela será um tema nas eleições do Brasil e que a democracia e os direitos humanos só poderiam ser respeitados pela política externa brasileira em caso de vitória da oposição. O alvo explicito é a reeleição de Dilma Rousseff.
A oposição venezuelana e os países mais simpáticos a ela, EUA e Panamá, optaram por levar o tema à OEA com o objetivo de criar uma missão de observação. A primeira tentativa, em 6 de março, saiu pela culatra. O texto final, aprovado por 29 votos a 3 (EUA, Canadá e Panamá), apresentou “o mais enérgico rechaço a toda a forma de violência e intolerância e um chamado a todos os setores à paz, à tranquilidade, ao respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais, incluindo os direitos à liberdade de expressão e reunião pacífica e circulação”, sem qualquer menção aos observadores. No dia seguinte, a mesma OEA apresentou defesa do “governo democraticamente eleito”. Ambas as reuniões foram fechadas, sem nenhum alarde na imprensa sobre este ponto.
Os derrotados apresentaram a versão de que o petróleo venezuelano havia comprado os votos da maioria dos países da região. O espanhol El País tachou: “Caracas exerce seu império entre os Estados membros”. Um simplismo absoluto sob qualquer conceito de império ou imperialismo. O PIB dos Estados Unidos corresponde a um valor próximo a 70% e o da Venezuela a algo como 1,5% da produção total das Américas. Até o México, subordinado ao NAFTA, votou com os venezuelanos.
O secretário de Estado John Kerry falou pela primeira vez em 11 de março que o governo Obama estaria “preparado” para sanções à Venezuela, pois “os vizinhos da Venezuela não estão nos escutando”.
Em 14 de março, após a posse da presidenta Michelle Bachelet, os chanceleres da Unasul se reuniram em Santiago. Além de declarar apoio ao governo venezuelano, decidiram realizar uma visita à Caracas. Não para observar, como gostariam os Estados Unidos, mas para “apoiar, assessorar e ajudar o diálogo”. Novamente a violência foi condenada e se enfatizou a preocupação com qualquer ameaça à independência ou soberania da Venezuela.
Uma semana depois, em 21 de março, a deputada radical María Corina Machado tentou criar um fato político em reunião da OEA. Foi inscrita como representante-adjunta do Panamá para entrar na sessão. A reunião foi novamente fechada; os relatos indicam que ela sentou à mesa como membro da representação do Panamá, que o embaixador do Panamá teria garantido que ela não pronunciaria sobre a Venezuela e, assim que o fez, perdeu o direito à palavra por decisão dos Estados membros. Além de não sensibilizar nenhum dos governos da região, ainda deu argumento para os deputados mais exaltados exigirem a sua cassação por representar um país estrangeiro em uma reunião internacional. Esta tem sido a praxe da oposição radical: provocar uma ação que é vista como violenta com o objetivo de provar a violência do Estado.
Após a conclusão dos debates na OEA e antes da visita da Unasul à Caracas para fortalecer o diálogo, houve uma onda de ataques de políticos norte-americanos ao governo venezuelano. A fragilidade dos argumentos foi sintetizada pelo senador Marco Rubio (republicano da Florida). Começou o discurso para os seus pares afirmando que sabe “que a situação com a Ucrânia tem cativado a atenção do público, mas quero falar sobre algo que está acontecendo em nosso própriopátio traseiro”, apresentou como prova do desrespeito aos direitos humanos o uso de jatos de água e gás lacrimogêneo, sobre este acrescentando que teriam uma marca “Hecho en Brasil, Made in Brazil”, mostrou uma foto de supostos franco-atiradores do governo venezuelano contra os protestos em Táchira (depois foi revelado que a foto, registrada pela AFP, era de 2013, da segurança do Palácio Presidencial, em Caracas), criticou os 29 países da OEA que não deram a palavra a María Corina, aplaudindo o empenho do Panamá; questionou a transferência de recursos para uma OEA que não teria mais capacidade de intervenção e concluiu defendendo sanções econômicas contra a Venezuela.
Nos dias 26 e 27 de março, oito chanceleres e representantes de todos os países da Unasul estiveram em Caracas. Participaram de reuniões das comissões de política e da de economia da Conferência de Paz e ouviram diferentes setores. O deputado Julio Borges, reconhecido crítico do chavismo e líder do partido de Capriles, participou com outros representantes da oposição. Da mesma forma, estudantes dos dois lados, religiosos de diversas denominações, poderes públicos, ONGs de direitos humanos. Por fim, os chanceleres “reafirmaram seu estreito apoio à democracia, ressaltando a vontade coletiva da Unasul em apoiar um processo de diálogo amplo e respeitoso, levando em consideração a Conferência Nacional de Paz, e reiteraram a condenação a qualquer tentativa de ruptura da ordem constitucional”.
É consenso que há uma diminuição da importância da OEA e que esta coincide com o declínio daCúpula Ibero-Americana, formulada e financiada majoritariamente por Espanha e Portugal. Nasceu com os preparativos das comemorações espanholas pelos 500 anos da ocupação europeia das Américas, na tentativa de aumentar seu peso político ao se apresentar como interlocução privilegiada com a América Ibérica. O início dos anos 1990 coincidiram com a criação da União Europeia, com a hegemonia neoliberal na América Latina e com a onda de privatizações que levaram à aquisição de empresas públicas de diferentes países por transnacionais europeias, particularmente espanholas.
Mesmo sendo um braço europeu na região, a Cúpula Ibero-Americana perde força à medida que a CELAC ganha. Evidencia-se que o compromisso de integração da América Latina é, hoje, maior com o Caribe do que em relação às antigas metrópoles. A edição de 2013 da Cúpula Ibero-Americana foi realizada (não por acaso) no Panamá com a presença de menos da metade dos chefes de Estado dos países membros e sua principal decisão foi que a partir de 2014 o fórum passará a ser bienal, não anual como havia ocorrido nos últimos 23 anos. Dos doze presidentes sul-americanos, apenas Juan Manuel Santos da Colômbia e Horacio Cartes do Paraguai foram ao evento.
O processo de fundação CELAC, que começou com a Cúpula da América Latina e Caribe sobre Integração e Desenvolvimento (CALC) em 2008 em Salvador da Bahia, por iniciativa do presidente Lula, e culminou em 2011 em Caracas, respaldada pelo presidente Chávez, contou com a participação de mais de 30 chefes de Estado em ambas as ocasiões. É a síntese do grande esforço de aproximar os países do Caribe à América do Sul e Latina. Hoje, Guiana e Suriname se reconhecem como sul-americanos; há quinze anos, se viam apenas como caribenhos. O Brasil está mais próximo da República Dominicana, a Argentina mais próxima de Cuba, o Uruguai está mais próximo do Haiti. Esse não é um mérito apenas brasileiro ou venezuelano, mas foi o instrumento que permitiu ao Brasil ter uma presença sem precedentes no Caribe. Hoje, há indústrias brasileiras na República Dominicana, o país constrói a maior obra de infraestrutura de Cuba, lidera a missão de paz da ONU para a estabilização do Haiti, discute projetos conjuntos com a Guiana e o Suriname e tem uma presença diplomática mais ampla do que qualquer país europeu no Caribe.
Há, portanto, um claro contraste entre o papel histórico da OEA e o atual protagonismo do novo multilaterialismo latino-americano. O próprio secretário-geral da OEA, José Miguel Insulza, que outrora fora muito crítico ao governo Chávez, afirmou em aula inaugural na Universidade do Chile, nesta segunda (31/3), que os problemas da Venezuela devem ser resolvidos internamente, desqualificando a instituição de sua trajetória a serviço do intervencionismo norte-americano. Talvez a memória de intervenções, como as invasões da Guatemala, República Dominicana e Granada, no século passado, e o apoio aos golpes contra Aristides, Zelaya e Lugo, neste século, ajudem a explicar a posição dos caribenhos e latino-americanos pelo rechaço à violência, o respaldo ao governo democraticamente eleito e a exigência de respeito à soberania e independência da Venezuela hoje.
Também em 31 de março, o governador da Florida, Rick Scout (republicano), afirmou no discurso em que prometeu encaminhar a Barack Obama abaixo-assinado organizado por uma venezuelana que vive nos EUA há 37 anos e firmado por um mil (!) pessoas, que “o presidente tem que tomar medidas, necessitamos impor sanções econômicas ao regime de Maduro”.
Sanções econômicas norte-americanas são absolutamente improváveis, pois, entre outros fatores (como as eleições de novembro próximo para muitos governos dos EUA, incluindo o da Florida, câmara dos deputados, legislativos locais e um terço do senado), impactariam diretamente na cooperação que a Venezuela pratica no Caribe. Estratégias de integração como a ALBA e, principalmente, a Petrocaribe, têm amenizado os efeitos da crise econômica na região nos últimos 6 anos. No Haiti, por exemplo, a Venezuela é o único país que aporta recursos para o orçamento do governo e não apenas em projetos específicos. A deterioração da situação do Caribe teria impacto direto no fluxo migratório de caribenhos das camadas mais pobres para os EUA, o que não interessaria para os norte-americanos no curto e médio prazos.
Interessa, sim, aos EUA manter a instabilidade na Venezuela e diminuir as possibilidades de exportação de inspirações bolivarianas para países da região. Não querem novos Zelayas, não gostaram da eleição recente de Sanchéz Cerén em El Salvador, desejariam que o Daniel Ortega e os sandinistas estivessem fora do poder na Nicarágua. Ao mesmo tempo, porém, não convém o colapso das economias haitiana, dominicana ou nicaraguense.
Os setores que radicalizaram nos protestos são muito minoritários. As lideranças Leopoldo López e María Corina nunca encontraram respaldo eleitoral fora da zona mais afluente da região metropolitana de Caracas. María Corina havia tido 234 mil votos nas eleições parlamentares de 2010 e López governou a rica Chacao entre 2000 e 2008. Em 2012, quando a oposição realizou prévias para escolher o candidato que enfrentaria Hugo Chávez, Leopoldo López abandonou a disputa e María Corina teve apenas 3,7% (110 mil) dos votos no escrutínio que definiu Henrique Capriles como candidato. Nos últimos dias, os estudantes que organizam barricadas vaiaram Capriles. A grande maioria dos que votaram na oposição são contra os protestos violentos; na última pesquisa do instituto Hinterlaces, divulgada em 16 de março, 87% dos venezuelanos pensam assim. As lideranças políticas e econômicas da porção majoritária da oposição sabem que López e Corina não são alternativas de governo e que o colapso do sistema político venezuelano levaria a grandes incertezas. Poucos ganhariam com um golpe ou autogolpe; Maduro e Capriles, personalidades políticas mais populares do país, não figuram neste grupo.
As lideranças da oposição mais radical na Venezuela não acreditam em um golpe tradicional no curto prazo. Apostam no desgaste constante ao qual episódios esporádicos de violência, com períodos de desestabilização pontuais, são fundamentais para a grande exposição midiática dentro e fora do país.
Ao capital internacional, expresso na opinião da The Economist, aos europeus moderados, expressos pelo El País, à oposição brasileira, expressa pelos maiores meios de comunicação nacionais, interessa um quadro de instabilidade sem colapso.
É lamentável que para a manutenção da instabilidade há que se ter espaço para o radicalismo que se converteu em quase 40 mortes nos últimos 50 dias. É lamentável que destruam universidades e postos de saúde, que ateiem fogo em sedes de ministérios, que coloquem em risco parte dos grandes avanços sociais que a Venezuela alcançou nos últimos anos.
O Brasil ganhou muito com o chavismo e tem muito a ganhar com a estabilidade política, o avanço democrático e o desenvolvimento econômico e social da Venezuela. Nos últimos anos foram concluídos importantes projetos de infraestrutura, houve um grande aumento do comercio bilateral e dos investimentos brasileiros na Venezuela, ampliaram-se as formas de cooperação. Juntos, Brasil e Venezuela criaram e fortaleceram instituições para a integração.
A torcida contra a Venezuela atrapalha o diagnóstico dos problemas, que não são poucos, e das limitações do processo político em curso no país. Mais que isso, dificulta a construção de soluções.
Há, porém, outra agenda. Fortalecer a recém-criada, por sugestão dos chanceleres da Unasul, Comissão de Direitos Humanos, vinculada à Presidência da Venezuela; garantir a investigação e punição dos responsáveis pelas quase 40 mortes; apoiar as propostas que forem construídas na comissão econômica da Conferência de Paz, particularmente no que se refere ao abastecimento de alimentos e à segurança na distribuição de energia elétrica, a consolidação do novo sistema de acesso à divisas e à desburocratização do comércio exterior e ao reforço a produção nacional.
A Unasul e o Brasil podem contribuir com essa pauta, que não deve ser restrita ao curto prazo. O fortalecimento da democracia e o desenvolvimento econômico e social do Brasil tem hoje as condições históricas para associar-se ao dos seus vizinhos. O colapso de qualquer país sul-americano, é uma derrota para a Unasul e desastroso ao Brasil.
A política externa, como qualquer política pública, deve ser debatida à exaustão pela sociedade. Em texto recente em O Estado de S. Paulo, o ex-embaixador Rubens Barbosa critica a proposta de criação de um Conselho de Nacional de Política Externa. Em sua leitura, o conselho serviria para esvaziar o papel do Itamaraty e violaria do art. 87, I, da Constituição Federal brasileira, que, em seu entender, daria “atribuição exclusiva ao Ministério das Relações Exteriores para coordenar os órgãos da administração pública federal em sua área de competência”. A proposta não esvazia o ministério, tampouco é inconstitucional; pelo contrário. A Constituição sequer cita o Ministério das Relações Exteriores, o referido artigo trata de atribuições dos ministros em geral, não de ministérios. O espírito da constituição cidadão é que a sociedade participe da formulação de políticas públicas; nos últimos 25 anos, o Brasil tem caminhado nesse sentido em muitas áreas.
A política exterior não pode ser dissociada das outras políticas públicas nem ser autônoma em relação à vontade popular. O Conselho Nacional de Política Externa, como o nome indica, não teria função executora nem atribuições que são exclusivas do Itamaraty. Seria um espaço de diálogo e reflexão com a sociedade civil, sindicatos, empresários, movimentos sociais, intelectuais, governos subnacionais e outros ministérios, de modo a propiciar ao executivo uma visão mais ampla da complexa sociedade brasileira e de seus anseios em relação à inserção internacional. Seria mais uma demonstração da maturidade de nossa democracia.
Se o Conselho existisse, provavelmente os interesses brasileiros nas relações estratégicas com países como a Venezuela, a Colômbia, o Peru ou a Argentina estariam mais protegidas de querelas eleitorais. Se o Conselho existisse, haveria melhores condições para dar consequência, adequada às complexidades atuais, ao art. 4º, parágrafo único, de nossa Constituição que, ao reger as relações internacionais do Brasil, define que o país “buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”.
Créditos da foto: Arquivo
02/04/2014
https://www.alainet.org/fr/node/84477?language=en
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