A Copa das Copas é da América do Sul
26/06/2014
- Opinión
A copa do mundo voltou à América do Sul depois de 36 anos. Mais da metade de nós, sul-americanos, nunca havíamos visto um mundial em casa. Parte de nós não imaginava que participaríamos tanto do maior evento do principal esporte do planeta.
Chilenos, colombianos e argentinos se fizeram maioria nas arquibancadas de onde jogaram. Uruguaios e equatorianos contaram com o apoio indubitável dos brasileiros que encheram os estádios. Um fenômeno tão inédito como ignorado pelas análises feitas na onda dos protestos de junho do ano passado.
Os meios de comunicação jogaram sistematicamente contra a copa. Um exemplo entre muitos é o número 82 da revista venezuelana Clímax, que está nas bancas de Caracas com a capa “Brasil 2014: la gran estafa” e a chamada interna “Una fiesta para pocos. Brasil ha dado muestras de no estar preparado para fungir de buen anfitrión”.
A reportagem reproduz argumentos da revista brasileira Veja: os estádios foram caríssimos, a infraestrutura não vai funcionar, o mundial será uma vergonha para o Brasil e só foi feito para que se roubasse o erário público.
A torcida sul-americana compareceu porque confiou em suas equipes e também porque estava segura de que nós os brasileiros organizaríamos uma grande copa. Desconsideraram a avalanche de críticas de que o torneio seria um fiasco. Para isso, além da paixão pelo futebol, contribuiu o fato de conhecermos muito bem a nossa imprensa, que é muito parecida em toda a região. Sabíamos que todo aquele quadro alarmista era falso.
No caso da mídia nativa, o quadro é de emulação. Está se superando em relação à cobertura das manifestações de junho do ano passado quando de crítica passou a apoiadora. Desta vez os grandes meios de comunicação nacional não só mudaram repentinamente de opinião como, em um ato de aparente desespero e explícito despudor, começaram a atribuir aos seus congêneres internacionais a responsabilidade pela uruca pré-copa. Não é de se estranhar que cada vez mais reproduzam argumentos do tipo: “Agora o mundo está vendo o equívoco de haver apostado contra o Brasil”. Lembrando Freud, a negativa histérica e veemente dos próprios atos, acompanhado do mecanismo de transferência da responsabilidade a terceiros é a patética assunção da culpa; o famoso batom na cueca! Até o Ronaldo se viu obrigado a mudar o discurso e retirar as críticas à organização do mundial.
Na copa, o Brasil exerceu o papel de liderança que nossos vizinhos esperam. Acertamos quando pensamos grande. Estamos fazendo uma copa para toda a América Latina. Tudo caminha para que seja reafirmada a escrita de que só os sul-americanos ganham as copas do lado de cá do Atlântico. Mas dessa vez a copa também está fazendo com que os sul-americanos nos conheçamos mais, muito mais. Esse convívio é a condição que nunca houve para a ampliação da integração da América do Sul.
A América do Sul em 1978 e em 2014
Nos últimos 50 anos a América do Sul organizou uma única copa, na Argentina em 1978. Ela me foi apresentada como um dos poucos consensos no futebol brasileiro: roubada, tudo armado, a Argentina comprou o Peru e ao Brasil coube o título de campeão moral, que nunca valeu nada. Refletia um momento de muita obscuridade no Cone Sul. Ditaduras na Argentina, Brasil, Chile, Uruguai, Paraguai, Bolívia... O regime militar argentino, assim como os outros, se legitimava também pelo discurso da ameaça externa. A pouca cooperação regional que existia se concentrava na repressão, em perseguir e matar a esquerda onde quer que ela estivesse.
O brasileiro, durante e depois daquela competição de 1978, não se sentiu mais sul-americano. O mesmo valeu para os próprios argentinos, para os peruanos e para os demais vizinhos que não participaram do torneio.
Se consolidou a versão que a Argentina era nossa rival, para além do futebol. Cresci ouvindo que os argentinos eram nossos maiores inimigos; a todos os nossos vizinhos o Brasil era apresentado como a grande ameaça.
No meio tempo, a copa de 1986 seria na Colômbia. A instabilidade interna e as exigências da FIFA fizeram o país desistir de organizar o torneio. Chegaram a oferecer a copa ao Brasil, que na época não a aceitou e ela foi acontecer no México. Até 2003, Argentina e Colômbia se apresentavam como possíveis candidatas, na definição; em 2006, toda a América do Sul já estava unida em torno candidatura do Brasil.
Hoje o momento é outro, completamente diferente dos anos setenta ou mesmo dos noventa. O Brasil e a América do Sul de 2014 estão construindo democracias cuja riqueza é, com muitas contradições, diminuir as desigualdades, garantir a diversidade e incluir massas que até há muito pouco tempo eram consideradas eternas excluídas. A cooperação regional agora tem objetivos muito mais nobres, o Mercosul cresce, a Unasul se consolida e recentemente foi criada a CELAC (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos). Todas essas novidades incomodam muito os que têm jogado contra a copa do Brasil.
A espetacular presença dos 100 mil argentinos em Porto Alegre, das dezenas de milhares de colombianos em Belo Horizonte, Brasília e Cuiabá, de chilenos também em Cuiabá, Rio e em São Paulo, dos equatorianos em Curitiba e dos uruguaios em Natal, além da grande quantidade de bandeiras da Venezuela em todos os estádios, particularmente em Manaus, criaram uma atmosfera inédita para a reconhecimento mútuo da região. Parte considerável visitou o Brasil pela primeira vez. A maioria quer voltar.
A copa está consolidando, coroando, o processo de afirmação da região que começou a ganhar corpo na virada século com a falência do Consenso de Washington e que foi impulsionada com a ascensão de governos populares em muitos dos nossos países. A América Latina e o Caribe são a única região do mundo em que as desigualdades diminuíram na última década.
Pela primeira vez na história a América do Sul tem desempenho melhor do que o europeu numa primeira fase de mundial. Nosso aproveitamento foi de 83% (5 classificados de um total de 6 participantes) contra 46% do velho continente (6 classificados de um total de 13 participantes). Em termos absolutos, se consideramos as seleções latino-americanas em seu conjunto (somando México e Costa Rica), classificamos 7 seleções (7 classificados em 9 participações, ou 78% de aproveitamento) contra as 6 europeias.
Não tenho dúvidas que o Paraguai, mesmo com a sua retranca, apresentaria um futebol melhor do que o da Grécia. Ou que a Venezuela, que nas eliminatórias ganhou da Argentina com Messi em Puerto La Cruz e da Colômbia com Falcao em Puerto Ordaz, seria uma estreante melhor do que a Bósnia. Aliás, o futebol está superando o beisebol, herança das petroleiras americanas do início do século, como principal esporte na Venezuela. A organização da copa América em 2007 com a construção de sete novos estádios foi decisiva para o movimento que levou as venezuelanas ao quarto lugar no mundial sub-17 feminino neste ano.
Em 2014, também pela primeira vez, a América do Sul jogou com 6 equipes. Não tivemos nenhuma decepção. Equador, o pior sul-americano, foi o melhor entre os eliminados na primeira fase. Saiu da copa ao empatar com um dos três melhores europeus jogando com um a menos por mais de quarenta minutos.
A copa é parte da consolidação da autoestima sul-americana. Nada mais simbólico do que o jogo entre Chile e Espanha no Maracanã. O Chile nunca havia derrotado sua antiga metrópole. Sete derrotas e um empate. Ganharam de 2 a 0. Os sul-americanos não temos jogado com a arrogância dos espanhóis contra a Holanda, tampouco com a ingenuidade da Costa do Marfim contra a Grécia. Temos feito no nosso jogo, e estamos ganhando.
Jogos em todo o país, até na Amazônia
A escolha de realizar partidas em cidades sem tradição futebolísticas foi uma das decisões mais criticadas e, ao mesmo tempo, mais acertadas da organização dessa copa. Fez que a copa fosse de todos os brasileiros, com jogos nas cinco regiões, garantiu que fosse uma copa sul-americana, por estar mais próximas dos vizinhos, e criou possibilidades para fortalecer nosso futebol e a integração regional.
Ao envolver todo o país estamos fazendo um mundial com a grandeza do Brasil. A decisão corajosa de sediar jogos em Manaus e em Cuiabá, além de quatro capitais nordestinas foi uma atitude consoante com nosso objetivo constitucional de diminuir as desigualdades regionais e compatível com várias outras ações de governo dos últimos anos, como a criação de dezenas de universidades, particularmente nas regiões mais pobres do país.
Os minimalistas defendiam um mundial enxuto, com jogos onde sempre há. São Paulo, Rio, Porto Alegre e Belo Horizonte. Talvez em Curitiba, Salvador e Recife também. Diziam que a falta de tradição futebolística e de dinâmica econômica em Fortaleza, Manaus, Natal e Cuiabá deixariam esses estádios vazios.
Desconsideraram que o Brasil está mudando e é muito maior do que o Centro-Sul.
Assisti a um único jogo do mundial. Havia comprado os ingressos antes mesmo do sorteio dos grupos. Optei pala primeira rodada em Manaus, a sede mais próxima da Venezuela. O sorteio apresentou um duelo entre dois ex-campeões, Itália e Inglaterra. Peguei o carro e fui com minha família a partir de Caracas. Muitos quilómetros de estrada. Fiquei aliviado ao ver a simplicidade do trâmite para passar com o carro na fronteira após o ingresso da Venezuela ao Mercosul. No hotel em Boa Vista, havia mais de trinta motoqueiros venezuelanos que faziam o mesmo trajeto. Na estrada, centena deles. Alguns ônibus também iam ao mesmo destino: a Arena da Amazônia.
O estádio mais questionado do mundial custou 500 ou 600 milhões de reais. Tudo funcionou: foi rápido para entrar, a visão do jogo da arquibancada era muito boa, a cerveja gelada, os banheiros limpos. Lotou nos quatro jogos da primeira fase, com um público total de 160 mil pessoas. Se o estádio fosse construído só para a copa, cada ingresso teria que custar quase R$ 4 mil para cobrir todo o custo. Não sei quanto os ingleses, italianos, portugueses, suíços, camaroneses, hondurenhos, norte-americanos e croatas que foram assistir os jogos de seus países gastaram nos dias que ficaram em Manaus, mas não deve ter sido menos do que esse valor.
A maioria do público, porém, era de brasileiros. Muitos de outras regiões do país, vários nunca conheceriam Manaus se não fosse a copa. Ninguém negaria a importância para o país de mais brasileiros conhecerem a Amazônia.
A exposição de Manaus ao mundo foi a maior da história; seu benefício para nós, difícil de calcular. Só nos EUA 25 milhões assistiram ao vivo a partida contra Portugal, mais do que a média das cinco partidas da final da NBA e dos seis jogos da final do beisebol do ano passado. Quanto custaria expor por duas horas para 25 milhões de estadunidenses a ideia subentendida de que a Amazônia tem dono e não são eles? E aos milhões de europeus que assistiram Itália contra Inglaterra?
No dia seguinte, o calor da cidade, que é o mesmo desde que ela foi criada, era o principal assunto nos sites de nossos jornais que não se cansaram de criticar os gastos com o estádio de Manaus. Nenhuma menção aos benefícios do evento para o país. Quando levei meus filhos ao Teatro Amazonas pensei sobre quantos, ao verem aquela construção, não faziam a pergunta simplista que os jornais não se cansaram de estimular sobre os estádios: não seria melhor ter construído um hospital ou uma escola? Minha resposta seria a mesma sobre a Arena da Amazônia.
Fracasso das previsões, sucesso de público e crítica
Os números satisfatórios e o entusiasmo com o mundial após o final da primeira fase são inquestionáveis. O fracasso das previsões também.
O banco Goldman Sachs, que por vias tortas acertou em cheio ao tecer o termo BRIC, parece ir no mesmo caminho agora. Se equivocaram em boa parte dos fundamentos em 2001, mas a agrupação BRIC, depois BRICS, tornou-se realidade anos depois. Em 2014, previu que os europeus dominariam a primeira fase, mas apontaram uma final sul-americana entre Brasil e Argentina. Apostaram que 11 dos 13 europeus passariam de fase, metade ficou pelo caminho. Erraram os oito cruzamentos das oitavas de final! Tirando Alemanha e Brasil, que foram à segunda fase em todas as copas desde que ela passou a ser realizada com grupos e oitavas em 1986, o banco acertou apenas 7 dos outros 14 times. Péssimo rendimento, considerando que 16 dos 32 classificariam.
Pode parecer temerário que as finanças do mundo sejam operadas por esses modelos. Esperamos que, outra vez, acertem no que ficará para a história. Que o Brasil campeão contra os hermanos seja tão real como a Cúpula que se reunirá em Fortaleza na semana depois da copa.
A revista americana ESPN FC indicava que a Argélia era o segundo com menos chances de classificar entre todos os países. Para o Goldman Sachs, a Costa Rica seria o time com menos chance de ser campeão e não haveria nenhum africano nas oitavas. É o que dá utilizar modelos em que os resultados do passado definiriam o presente. Diferente de Espanha, Inglaterra e Itália, Argélia, Costa Rica e Nigéria estão vivos e enfrentarão três dos poucos europeus que restaram.
Há alguns anos, poucos apontavam o sucesso de público que estamos tendo. As médias de pessoas presentes e de ocupação nos estádios são espetaculares. Superam todos os campeonatos nacionais do mundo. No campeonato brasileiro o público médio é de 15 mil (ocupação de 44%) e no italiano de 22 mil (51%). A copa das copas supera a ocupação e o público médio dos melhores campeonatos nacionais nesses quesitos, o alemão (45 mil, 93%) e o inglês (34 mil, 97%). A fabulosa taxa de ocupação de 98% garantirá um público médio final bastante superior aos 50 mil. A média de público só ficará atrás da copa dos EUA, que utilizou estádios de futebol americano. O púbico total deve igualar o recorde de 3,5 milhões.
Os alemães realizaram uma grande copa e com ela reestruturaram e melhoraram seu campeonato nacional. Nós podemos fazer o mesmo respeitando nossas especificidades e utilizando um dos nossos maiores ativos, as dimensões continentais e um mercado interno que cresceu extraordinariamente na última década. O problema não são os estádios caros, mas a gestão que vamos fazer deles. Por que não os times do Brasileirão mandarem cinco partidas por campeonato em estádios neutros, como os novos de Brasília, Manaus, Cuiabá, Fortaleza ou Natal, ou antigos que devem se modernizar em Belém ou Campo Grande.
A revista Veja alguns dias antes do início da copa era taxativa em seu site que “A seleção pode até ganhar, mas o Brasil já perdeu”. Hoje poderíamos dizer sem dúvidas: A seleção pode até perder, mas o Brasil já ganhou!
Chilenos, colombianos e argentinos se fizeram maioria nas arquibancadas de onde jogaram. Uruguaios e equatorianos contaram com o apoio indubitável dos brasileiros que encheram os estádios. Um fenômeno tão inédito como ignorado pelas análises feitas na onda dos protestos de junho do ano passado.
Os meios de comunicação jogaram sistematicamente contra a copa. Um exemplo entre muitos é o número 82 da revista venezuelana Clímax, que está nas bancas de Caracas com a capa “Brasil 2014: la gran estafa” e a chamada interna “Una fiesta para pocos. Brasil ha dado muestras de no estar preparado para fungir de buen anfitrión”.
A reportagem reproduz argumentos da revista brasileira Veja: os estádios foram caríssimos, a infraestrutura não vai funcionar, o mundial será uma vergonha para o Brasil e só foi feito para que se roubasse o erário público.
A torcida sul-americana compareceu porque confiou em suas equipes e também porque estava segura de que nós os brasileiros organizaríamos uma grande copa. Desconsideraram a avalanche de críticas de que o torneio seria um fiasco. Para isso, além da paixão pelo futebol, contribuiu o fato de conhecermos muito bem a nossa imprensa, que é muito parecida em toda a região. Sabíamos que todo aquele quadro alarmista era falso.
No caso da mídia nativa, o quadro é de emulação. Está se superando em relação à cobertura das manifestações de junho do ano passado quando de crítica passou a apoiadora. Desta vez os grandes meios de comunicação nacional não só mudaram repentinamente de opinião como, em um ato de aparente desespero e explícito despudor, começaram a atribuir aos seus congêneres internacionais a responsabilidade pela uruca pré-copa. Não é de se estranhar que cada vez mais reproduzam argumentos do tipo: “Agora o mundo está vendo o equívoco de haver apostado contra o Brasil”. Lembrando Freud, a negativa histérica e veemente dos próprios atos, acompanhado do mecanismo de transferência da responsabilidade a terceiros é a patética assunção da culpa; o famoso batom na cueca! Até o Ronaldo se viu obrigado a mudar o discurso e retirar as críticas à organização do mundial.
Na copa, o Brasil exerceu o papel de liderança que nossos vizinhos esperam. Acertamos quando pensamos grande. Estamos fazendo uma copa para toda a América Latina. Tudo caminha para que seja reafirmada a escrita de que só os sul-americanos ganham as copas do lado de cá do Atlântico. Mas dessa vez a copa também está fazendo com que os sul-americanos nos conheçamos mais, muito mais. Esse convívio é a condição que nunca houve para a ampliação da integração da América do Sul.
A América do Sul em 1978 e em 2014
Nos últimos 50 anos a América do Sul organizou uma única copa, na Argentina em 1978. Ela me foi apresentada como um dos poucos consensos no futebol brasileiro: roubada, tudo armado, a Argentina comprou o Peru e ao Brasil coube o título de campeão moral, que nunca valeu nada. Refletia um momento de muita obscuridade no Cone Sul. Ditaduras na Argentina, Brasil, Chile, Uruguai, Paraguai, Bolívia... O regime militar argentino, assim como os outros, se legitimava também pelo discurso da ameaça externa. A pouca cooperação regional que existia se concentrava na repressão, em perseguir e matar a esquerda onde quer que ela estivesse.
O brasileiro, durante e depois daquela competição de 1978, não se sentiu mais sul-americano. O mesmo valeu para os próprios argentinos, para os peruanos e para os demais vizinhos que não participaram do torneio.
Se consolidou a versão que a Argentina era nossa rival, para além do futebol. Cresci ouvindo que os argentinos eram nossos maiores inimigos; a todos os nossos vizinhos o Brasil era apresentado como a grande ameaça.
No meio tempo, a copa de 1986 seria na Colômbia. A instabilidade interna e as exigências da FIFA fizeram o país desistir de organizar o torneio. Chegaram a oferecer a copa ao Brasil, que na época não a aceitou e ela foi acontecer no México. Até 2003, Argentina e Colômbia se apresentavam como possíveis candidatas, na definição; em 2006, toda a América do Sul já estava unida em torno candidatura do Brasil.
Hoje o momento é outro, completamente diferente dos anos setenta ou mesmo dos noventa. O Brasil e a América do Sul de 2014 estão construindo democracias cuja riqueza é, com muitas contradições, diminuir as desigualdades, garantir a diversidade e incluir massas que até há muito pouco tempo eram consideradas eternas excluídas. A cooperação regional agora tem objetivos muito mais nobres, o Mercosul cresce, a Unasul se consolida e recentemente foi criada a CELAC (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos). Todas essas novidades incomodam muito os que têm jogado contra a copa do Brasil.
A espetacular presença dos 100 mil argentinos em Porto Alegre, das dezenas de milhares de colombianos em Belo Horizonte, Brasília e Cuiabá, de chilenos também em Cuiabá, Rio e em São Paulo, dos equatorianos em Curitiba e dos uruguaios em Natal, além da grande quantidade de bandeiras da Venezuela em todos os estádios, particularmente em Manaus, criaram uma atmosfera inédita para a reconhecimento mútuo da região. Parte considerável visitou o Brasil pela primeira vez. A maioria quer voltar.
A copa está consolidando, coroando, o processo de afirmação da região que começou a ganhar corpo na virada século com a falência do Consenso de Washington e que foi impulsionada com a ascensão de governos populares em muitos dos nossos países. A América Latina e o Caribe são a única região do mundo em que as desigualdades diminuíram na última década.
Pela primeira vez na história a América do Sul tem desempenho melhor do que o europeu numa primeira fase de mundial. Nosso aproveitamento foi de 83% (5 classificados de um total de 6 participantes) contra 46% do velho continente (6 classificados de um total de 13 participantes). Em termos absolutos, se consideramos as seleções latino-americanas em seu conjunto (somando México e Costa Rica), classificamos 7 seleções (7 classificados em 9 participações, ou 78% de aproveitamento) contra as 6 europeias.
Não tenho dúvidas que o Paraguai, mesmo com a sua retranca, apresentaria um futebol melhor do que o da Grécia. Ou que a Venezuela, que nas eliminatórias ganhou da Argentina com Messi em Puerto La Cruz e da Colômbia com Falcao em Puerto Ordaz, seria uma estreante melhor do que a Bósnia. Aliás, o futebol está superando o beisebol, herança das petroleiras americanas do início do século, como principal esporte na Venezuela. A organização da copa América em 2007 com a construção de sete novos estádios foi decisiva para o movimento que levou as venezuelanas ao quarto lugar no mundial sub-17 feminino neste ano.
Em 2014, também pela primeira vez, a América do Sul jogou com 6 equipes. Não tivemos nenhuma decepção. Equador, o pior sul-americano, foi o melhor entre os eliminados na primeira fase. Saiu da copa ao empatar com um dos três melhores europeus jogando com um a menos por mais de quarenta minutos.
A copa é parte da consolidação da autoestima sul-americana. Nada mais simbólico do que o jogo entre Chile e Espanha no Maracanã. O Chile nunca havia derrotado sua antiga metrópole. Sete derrotas e um empate. Ganharam de 2 a 0. Os sul-americanos não temos jogado com a arrogância dos espanhóis contra a Holanda, tampouco com a ingenuidade da Costa do Marfim contra a Grécia. Temos feito no nosso jogo, e estamos ganhando.
Jogos em todo o país, até na Amazônia
A escolha de realizar partidas em cidades sem tradição futebolísticas foi uma das decisões mais criticadas e, ao mesmo tempo, mais acertadas da organização dessa copa. Fez que a copa fosse de todos os brasileiros, com jogos nas cinco regiões, garantiu que fosse uma copa sul-americana, por estar mais próximas dos vizinhos, e criou possibilidades para fortalecer nosso futebol e a integração regional.
Ao envolver todo o país estamos fazendo um mundial com a grandeza do Brasil. A decisão corajosa de sediar jogos em Manaus e em Cuiabá, além de quatro capitais nordestinas foi uma atitude consoante com nosso objetivo constitucional de diminuir as desigualdades regionais e compatível com várias outras ações de governo dos últimos anos, como a criação de dezenas de universidades, particularmente nas regiões mais pobres do país.
Os minimalistas defendiam um mundial enxuto, com jogos onde sempre há. São Paulo, Rio, Porto Alegre e Belo Horizonte. Talvez em Curitiba, Salvador e Recife também. Diziam que a falta de tradição futebolística e de dinâmica econômica em Fortaleza, Manaus, Natal e Cuiabá deixariam esses estádios vazios.
Desconsideraram que o Brasil está mudando e é muito maior do que o Centro-Sul.
Assisti a um único jogo do mundial. Havia comprado os ingressos antes mesmo do sorteio dos grupos. Optei pala primeira rodada em Manaus, a sede mais próxima da Venezuela. O sorteio apresentou um duelo entre dois ex-campeões, Itália e Inglaterra. Peguei o carro e fui com minha família a partir de Caracas. Muitos quilómetros de estrada. Fiquei aliviado ao ver a simplicidade do trâmite para passar com o carro na fronteira após o ingresso da Venezuela ao Mercosul. No hotel em Boa Vista, havia mais de trinta motoqueiros venezuelanos que faziam o mesmo trajeto. Na estrada, centena deles. Alguns ônibus também iam ao mesmo destino: a Arena da Amazônia.
O estádio mais questionado do mundial custou 500 ou 600 milhões de reais. Tudo funcionou: foi rápido para entrar, a visão do jogo da arquibancada era muito boa, a cerveja gelada, os banheiros limpos. Lotou nos quatro jogos da primeira fase, com um público total de 160 mil pessoas. Se o estádio fosse construído só para a copa, cada ingresso teria que custar quase R$ 4 mil para cobrir todo o custo. Não sei quanto os ingleses, italianos, portugueses, suíços, camaroneses, hondurenhos, norte-americanos e croatas que foram assistir os jogos de seus países gastaram nos dias que ficaram em Manaus, mas não deve ter sido menos do que esse valor.
A maioria do público, porém, era de brasileiros. Muitos de outras regiões do país, vários nunca conheceriam Manaus se não fosse a copa. Ninguém negaria a importância para o país de mais brasileiros conhecerem a Amazônia.
A exposição de Manaus ao mundo foi a maior da história; seu benefício para nós, difícil de calcular. Só nos EUA 25 milhões assistiram ao vivo a partida contra Portugal, mais do que a média das cinco partidas da final da NBA e dos seis jogos da final do beisebol do ano passado. Quanto custaria expor por duas horas para 25 milhões de estadunidenses a ideia subentendida de que a Amazônia tem dono e não são eles? E aos milhões de europeus que assistiram Itália contra Inglaterra?
No dia seguinte, o calor da cidade, que é o mesmo desde que ela foi criada, era o principal assunto nos sites de nossos jornais que não se cansaram de criticar os gastos com o estádio de Manaus. Nenhuma menção aos benefícios do evento para o país. Quando levei meus filhos ao Teatro Amazonas pensei sobre quantos, ao verem aquela construção, não faziam a pergunta simplista que os jornais não se cansaram de estimular sobre os estádios: não seria melhor ter construído um hospital ou uma escola? Minha resposta seria a mesma sobre a Arena da Amazônia.
Fracasso das previsões, sucesso de público e crítica
Os números satisfatórios e o entusiasmo com o mundial após o final da primeira fase são inquestionáveis. O fracasso das previsões também.
O banco Goldman Sachs, que por vias tortas acertou em cheio ao tecer o termo BRIC, parece ir no mesmo caminho agora. Se equivocaram em boa parte dos fundamentos em 2001, mas a agrupação BRIC, depois BRICS, tornou-se realidade anos depois. Em 2014, previu que os europeus dominariam a primeira fase, mas apontaram uma final sul-americana entre Brasil e Argentina. Apostaram que 11 dos 13 europeus passariam de fase, metade ficou pelo caminho. Erraram os oito cruzamentos das oitavas de final! Tirando Alemanha e Brasil, que foram à segunda fase em todas as copas desde que ela passou a ser realizada com grupos e oitavas em 1986, o banco acertou apenas 7 dos outros 14 times. Péssimo rendimento, considerando que 16 dos 32 classificariam.
Pode parecer temerário que as finanças do mundo sejam operadas por esses modelos. Esperamos que, outra vez, acertem no que ficará para a história. Que o Brasil campeão contra os hermanos seja tão real como a Cúpula que se reunirá em Fortaleza na semana depois da copa.
A revista americana ESPN FC indicava que a Argélia era o segundo com menos chances de classificar entre todos os países. Para o Goldman Sachs, a Costa Rica seria o time com menos chance de ser campeão e não haveria nenhum africano nas oitavas. É o que dá utilizar modelos em que os resultados do passado definiriam o presente. Diferente de Espanha, Inglaterra e Itália, Argélia, Costa Rica e Nigéria estão vivos e enfrentarão três dos poucos europeus que restaram.
Há alguns anos, poucos apontavam o sucesso de público que estamos tendo. As médias de pessoas presentes e de ocupação nos estádios são espetaculares. Superam todos os campeonatos nacionais do mundo. No campeonato brasileiro o público médio é de 15 mil (ocupação de 44%) e no italiano de 22 mil (51%). A copa das copas supera a ocupação e o público médio dos melhores campeonatos nacionais nesses quesitos, o alemão (45 mil, 93%) e o inglês (34 mil, 97%). A fabulosa taxa de ocupação de 98% garantirá um público médio final bastante superior aos 50 mil. A média de público só ficará atrás da copa dos EUA, que utilizou estádios de futebol americano. O púbico total deve igualar o recorde de 3,5 milhões.
Os alemães realizaram uma grande copa e com ela reestruturaram e melhoraram seu campeonato nacional. Nós podemos fazer o mesmo respeitando nossas especificidades e utilizando um dos nossos maiores ativos, as dimensões continentais e um mercado interno que cresceu extraordinariamente na última década. O problema não são os estádios caros, mas a gestão que vamos fazer deles. Por que não os times do Brasileirão mandarem cinco partidas por campeonato em estádios neutros, como os novos de Brasília, Manaus, Cuiabá, Fortaleza ou Natal, ou antigos que devem se modernizar em Belém ou Campo Grande.
A revista Veja alguns dias antes do início da copa era taxativa em seu site que “A seleção pode até ganhar, mas o Brasil já perdeu”. Hoje poderíamos dizer sem dúvidas: A seleção pode até perder, mas o Brasil já ganhou!
- Pedro Silva Barros é palmeirense, brasileiro, sul-americano. As opiniões expressas neste artigo são estritamente pessoais, não representando necessariamente a de nenhuma das instituições às quais o autor é vinculado.
Créditos da foto: Arquivo
27/06/2014
https://www.alainet.org/fr/node/86735?language=en
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