O gol do pastor de lhamas
16/01/2006
- Opinión
Ele estava muito contente e bastante descansado depois da maratona que havia feito, na sua camisa azul de manga curta. Ninguém diria que foi eleito presidente de um país da América Latina, com a maior votação que um presidente recebeu. Quando eu lhe disse que ele tem “cara de povo”, se mostrou meio surpreso – até que eu comparei suas feições com os candidatos derrotados por ele na eleição, assim como as dos anteriores presidentes do país – um pais governando em que dois terços das pessoas se identificam como indígenas, mas que sempre foi dirigido pelos brancos – via de regra, ricos.
Havia feito uma viagem impressionante: foi a Cuba – o primeiro país visitado por ele depois de eleito -, à Venezuela, à Espanha, à França, à Bélgica, à Holanda, à China, à África do Sul e finalmente ao Brasil. Nove paises de quatro continentes, em menos de duas semanas. Só não passou esta vez pelo Irâ, para ter tempo ainda de ir à Argentina antes da posse. Na Espanha os conservadores o criticaram por se encontrar com o primeiro ministro José Luis Zapatero – que perdoou a divida boliviana em troca de investimentos em educação – com uma malha de lã boliviana, listada a cores, chamada de “chompa” -, ao invés de engravatar. Saramago saiu a defende-lo, explicando que se trata de uma indumentária tipicamente boliviana. Ele me diz que tem uma porção delas, porque é um presente típico entre os indígenas, que não sabia que poderia provocar reações desse tipo, consciente que o protocolo vai lhe exigir comportamentos a que não esta acostumado.
De fato, no domingo da extraordinária vitória eleitoral, ele resistiu a viajar até a capital, para participar de uma entrevista coletiva. Uma mídia – que o detratou em mais de nove em cada dez matérias que fez – que insiste em reduzi-lo a “líder cocalero”, expressão natural para ele, que a assume como uma das suas múltiplas dimensões, resiste a trata-lo como presidente. Argumentamos que ele deveria, a partir daquele momento, se dizer “presidente de todos os bolivianos” e que a capital, La Paz, é o lugar para estar naquele momento.
Ele aceitou, a contragosto, foi para La Paz, participou alegremente da entrevista coletiva da vitória, com o cabelo negro cheio de confetes. Mas partiu em seguida de volta para Cochabamba, seu estado, “para festejar com a minha gente”.
Agora, em Brasilia, na sala de conferencias do Itamarati, ele se mostra seguro, contente, confiante, fala como presidente de uma nação indígena que reivindica sua soberania nacional e sua democracia multicultural e multiétnica. De camisa azul de manga curta, ao lado de Álvaro Garcia Linera, o vice-presidente, dos mais importantes intelectuais da América Latina, que lhe dá apoio e confiança.
Saímos e, na conversa no hotel, de onde se vë, pela janela, a catedral de Niemayer, depois de contar circunstancias da viagem e de revelar que ticou muito contente com a disposição do governo brasileiro de ajuda-lo, quer saber sobre o Brasil, sobre as possibilidades de reeleição de Lula – que apóia fervorosamente – e a posição dos movimentos sociais.
Porém, logo passa a falar da sua outra paixão – o futebol. Jogou muito, desde criança, na sua cidade. Cuidava das lhamas, mas confessou que o que arrecadava ia para comprar camisas para seu clube de futebol. Jogava de centro-avante, de número 9 nas costas. Era pastor de lhamas e centro-avante. Mas sofria muito com a dura marcação nos rudes campos de terra, até que resolveu então se deslocar para a ponta-direita. Até que se contundiu mais ou menos gravemente no joelho, fruto da dura marcação. Teve que se operar em Cuba, ficando um ano sem jogar. Voltou a jogar e esperar continuar jogando, com seus amigos – Álvaro também gosta de jogar -, mesmo sendo presidente.
Ficamos de ir na próxima vez ao Maracanã. Mas antes vou aceitar seu convite e assistir, primeiro as cerimônias indígenas – numa comunidade aymara - e depois as oficiais – estas em La Paz – da sua posse como primeiro presidente indígena da Bolívia. Ele – Evo Morales Ayma (de aymara, esclarece ele, quando posamos para tirar uma foto juntos).
https://www.alainet.org/pt/active/10368
Del mismo autor
- Hay que derrotar políticamente a los militares brasileños 07/04/2022
- China y Trump se fortalecen 04/03/2022
- Pandemia e Ucrânia aceleram decadência da hegemonia norte-americana no mundo 28/02/2022
- Pandemia y Ucrania aceleran la decadencia de la hegemonía norteamericana en el mundo 28/02/2022
- La anti-política generó la fuerza de extrema derecha 22/02/2022
- Las responsabilidades del PT 10/02/2022
- Estados Unidos, más aislado que nunca en América Latina 03/02/2022
- Memoria y olvido en Brasil 27/01/2022
- 2022: tiempos decisivos para Brasil y Colombia 05/01/2022
- Brasil: una historia hecha de pactos de élite 18/12/2021