A orfandade fecunda

29/08/2006
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Qualquer pessoa que tenha acompanhado nas ultimas décadas a Igreja Católica no Brasil e tenha interesse pela vida do povo se sente meio roubado ao saber que Dom Luciano Mendes de Almeida, arcebispo de Mariana e referência de pastor para tanta gente em todo o mundo, passou para outra dimensão de vida. Dom Luciano é de tal forma querido e respeitado, nos mais diversos ambientes e por todas as pessoas de boa vontade que, nestes dias, muitos estão escrevendo sobre ele. Por isso, provavelmente, nada do que direi aqui será substancialmente original. Ainda mais porque, apesar de conhecê-lo há décadas e, muitas vezes, termos trabalhado juntos, não tive a graça de conviver com ele mais de perto e gratuitamente. Entretanto, Dom Luciano era um tipo de pessoa tão especial, que a gente nem precisava gozar de sua intimidade para sentir a humanidade e a bondade lúcida de um homem movido por uma espiritualidade que irradiava pelos poros do corpo e pelo brilho do olhar. Conheci-o no final dos anos 60, ele como padre jesuíta, pregando um retiro anual para os monges beneditinos de Olinda. Desde então, sempre que o encontrava, me recordava dele como um jesuíta que podia ajudar os monges a serem mais profundamente monges. Reencontrei-o anos depois, já como bispo, secretário da CNBB e depois seu presidente. Confesso que, algumas vezes, desejava vê-lo mais ousado e inovador, em termos de Teologia e de Política. Era um homem prudente e conciliador, cuja profunda convicção de pastor da unidade o levava a mediar conflitos e moderar posições mais do que ser o pioneiro que abre caminho e marca posições de fronteira. Uma vez ou outra tal postura me incomodava e me parecia diplomática ou oficial demais. Hoje, percebo como, muitas vezes, ao agir assim, ele ajudou o conjunto do episcopado católico no Brasil a se abrir em questões que, provavelmente, muitos bispos não aceitariam se não fosse o equilíbrio e a prudência do Dom Luciano. Assim, tenho convicção de que devemos a ele, no começo dos anos 80 que a Comissão Pastoral da Terra, organismo então ligado à CNBB, mas com certa independência, pudesse ser aprovada e assumida pela maioria do episcopado. Do mesmo modo, todas as pastorais populares devem a ele um apoio discreto, mas claro e inequívoco que abria espaço e garantia possibilidades de eficácia. Quem acompanhou de perto a luta interna que percorreu a 4ª conferência dos bispos latino-americanos em Santo Domingos (1992) sabe o quanto Dom Luciano, com sua paciência e humildade, sofreu e como dedicou noites inteiras de trabalho para que o documento final da conferência assumisse a opção da Igreja pelos pobres e as grandes causas das comunidades eclesiais de base em todo o continente. Se eu pudesse lhe dizer uma palavra que, do céu, fosse escutada, seria um pedido de desculpas pelo fato de que esta Igreja que agora o honra e o elogia poderia ter sido mais justa e aberta à imensa contribuição que ele poderia ter dado se fosse mais valorizado. Não me refiro a títulos de honra e a cargos que são humanos e Dom Luciano não se apegava a isso. Penso mais no seu legado de bispo, pai dos pobres que fazia do cuidado com as crianças de rua, os prisioneiros, os lavradores e todas as pessoas oprimidas, o centro da vida e da ação da Igreja. É esta centralidade do amor solidário que ele nos deixa como sua maior herança de discípulo e testemunha de Jesus Cristo, seu e nosso pastor. Não é apenas a Igreja Católica que sente sua perda. É todo o Brasil que pode se considerar meio órfão. Outro dia, no Nordeste, perdíamos Dom Antônio Fragoso. Agora se foi Dom Luciano. Esta orfandade será fecunda se agirmos como fez Eliseu ao recolher o manto do profeta Elias que acabava de subir ao céu. Assim como Eliseu se dispôs a continuar a missão de Elias, nos dispomos a continuar a profecia da solidariedade que Dom Luciano viveu e pedimos a Deus que nos conceda uma porção redobrada do Espírito que o animou. - Marcelo Barros, monge beneditino, biblista, autor de 30 livros entre os quais o recém lançado "Dom Helder Camara profeta para os nosos dias. Goiás. Ed. Rede da Paz, 2006.
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