Papa fazendeiro

20/05/2007
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O Papa se foi deixando atrás de si recordações, assim como palavras e orientações a serem re-lidas, assimiladas e reinterpretadas. Enquanto os bispos da América Latina se reúnem em Aparecida, na V Conferência Geral do CELAM, por ele inaugurada, se fazem balanços de sua visita. Alguns destacam certas palavras, determinados gestos. Outros acentuam recados percebidos nas entrelinhas e não claramente explícitos na fala do Pontífice.

Permitimo-nos igualmente fazer o nosso. Acompanhamos de perto a visita. Desde a chegada na fria e chuvosa São Paulo até a partida no final do domingo, vindo diretamente de Aparecida para o aeroporto de Guarulhos. Vimos o Pacaembu com os jovens, o Campo de Marte com a canonização de Frei Galvão, a missa dominical na esplanada da Basílica de Aparecida. E afirmamos com toda convicção: o ponto alto da visita do Pontífice foi a visita à Fazenda Esperança.

O evento ali era menor. Sete mil pessoas apenas. O lugar não comportaria mais, além de não ser de tão fácil acesso. Encravado na serra da Mantiqueira, há que rodar uma boa quantidade de quilômetros a partir de Guaratinguetá para chegar na área da fazenda. Entretanto e talvez por isso mesmo, o ambiente que ali se respirava era de pura fraternidade e alegria. Quem enfrentou a madrugada fria para chegar a tempo de passar antes que a polícia fechasse a estrada; quem se apressou para conseguir lugar nas arquibancadas simples construídas na fazenda, experimentou algo de certas marcantes afirmações do Evangelho: "Não há maior amor do que dar a vida pelos amigos" ou "O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em redenção por muitos".

A Fazenda Esperança é fruto de um desejo puro de servir. Servir a esses que hoje são os leprosos da sociedade: os dependentes químicos. Ali estão, sob os cuidados desvelados da equipe da fazenda, os considerados perdidos e sem esperança por uma sociedade inclemente e excludente. A esses, devolve-se a confiança como seres humanos e o sentido da vida. Junto a esses o Papa quis passar uma manhã inteira em sua curta visita ao Brasil.

Assim como, naquele tempo, o Filho do Homem declarava ter vindo resgatar o que estava perdido. Assim como o Bom Pastor, deixava as 99 ovelhas no aprisco, para correr atrás da que estava perdida. Assim Bento XVI quis chegar perto daqueles com os quais ninguém quer perder tempo. E com isso mostrou um outro perfil diferente do intelectual eminente e culto, do brilhante teólogo, do chefe de estado. Chegou ali com as sandálias do pescador de homens, do pastor cujo coração vibra ao ritmo das dores e angústias, esperanças e alegrias dos menores entre os filhos dos homens.

Falou simples, sorriu e disse palavras alentadoras aos jovens que ali vivem empreendendo a dura e muitas vezes dolorosa batalha de livrar-se da adicção química para retomar o sentido de suas vidas. Contribuiu materialmente com generosa quantia em dinheiro para a obra da Fazenda Esperança. Mandou duro recado aos traficantes: "Deus vai lhes exigir explicações por todo o mal que fazem". Depois passou, desafiando a segurança e o rígido esquema que o acompanhava, entre os jovens, apertando mãos, deixando-se tocar e distribuindo sorriso e bênção.

Quando se foi, deixou-nos uma impressão nova sobre sua pessoa, que parecia mais próxima e acessível. Nos jovens internos que receberam sua ternura paterna, certamente depositou marca indelével. E seguramente saiu também marcado pelo que ali experimentou. Como cantava o coro alegre que acompanhou sua saída com música e canto, "já era Papa Fazendeiro".

- Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio,
é autora de "Deus amor: graça que habita em nós” (Editora Paulinas), entre outros livros.

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