Impressões de um retorno!

26/05/2007
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Falar sobre Cuba significa enfrentar o prazeroso desafio de repensar a revolução socialista e o próprio socialismo na América Latina.  Enorme desafio porque a revolução cubana faz parte de um longo processo histórico, dinâmico, ininterrupto, diversificado, abrangente, contraditório, o que torna difícil manter uma perspectiva que permita dar conta dos seus múltiplos aspectos.  Desafio tanto maior pela minha consciência do profundo significado político, cultural e ético da revolução cubana e da resistência cubana para todos os povos do mundo.  Mesmo assim, um desafio prazeroso porque as impressões que quero apresentar foram obtidas a partir de observações direta da sociedade cubana à qual tive a satisfação de retornar, graças ao nosso Movimento.

Quero abordar aspectos da sociedade que vi, ouvi e senti nos doze dias que estive em Cuba, neste último mês de maio, embora seja evidente que inúmeras informações de leituras, de correspondência, e, inclusive, da própria memória de outros momentos em que lá estive marquem o que foi vivido e observado, agora, nestes poucos dias.  Sei que as observações que farei não permitem generalizações, porque não derivam de uma abordagem aprofundada e diversificada. 

No fundo, quero mesmo compartilhar as minhas impressões deste reencontro com a sociedade cubana e reafirmar minha cada vez mais profunda convicção da necessidade de fazer a revolução dentro da revolução e de construir o socialismo dentro do socialismo, de forma permanente.  Em última instância, meu reencontro com a sociedade cubana só reforçou esta convicção.

1.  A revolução e o socialismo são processos históricos

            Após quarenta e oito anos desde o seu triunfo, em primeiro de janeiro de 1959, a revolução socialista continua em marcha e é levada adiante por um povo, por um partido e por um comandante que se confundem nas ações e iniciativas que assumem.  Unidos, partido e povo, fazem a fortaleza da revolução, garantindo a continuidade da construção do socialismo cubano.

Na minha opinião, Cuba vive, hoje, um dos momentos mais importantes da sua história revolucionária e socialista.  Passado o chamado período especial em tempo de paz, Cuba está enfrentando, agora, as contradições geradas pelas medidas adotadas para superar a crise que se abateu sobre a Ilha, após a queda do muro de Berlim, da dissolução do bloco socialista do leste europeu e do esfacelamento da URSS, no final dos anos 80.

            Distantes de Cuba, corremos o risco de idealizá-la, mas, mal desembarcamos, encontramos uma sociedade em construção, habitada por muitos projetos, muitas realizações mas, também, por novas contradições, problemas e tensões.  Como dizem os próprios cubanos, “é o custo que estamos pagando pela implementação de certas medidas necessárias para enfrentar e superar o período especial”.  Na verdade, este custo diz respeito aos efeitos causados principalmente pela expansão do complexo turístico e do funcionamento das empresas mistas.  Em outros termos, trata-se do custo a ser pago por causa das duas principais decisões tomadas pela revolução cubana para enfrentar o bloqueio imposto a Cuba pelos Estados Unidos e que tem se acirrado nos últimos anos. 

            O socialismo é uma construção histórica e, portanto, está sujeito às influências das conjunturas nacionais e internacionais e das condições objetivas e subjetivas que uma determinada sociedade é capaz de produzir.  Penso que é assim que devemos ver Cuba, pois só podemos compreendê-la inserida na sua história, no seu processo de desenvolvimento socialista, na sua inserção específica no contexto internacional.  Por isso mesmo, a revolução cubana não pode ser compreendida sem os duros ataques que ela sofreu, especialmente o bloqueio imperialista, e sem a sua forma de autodefesa, que foi a chamada fase do período especial.

            Não foi por mera questão de preferência que, até o final da década de 80 do século passado, Cuba tornou-se dependente do bloco socialista do leste europeu.  Afinal, em 1970, por orientação do imperialismo norte-americano, que adquire franca hegemonia sob o domínio das ditaduras militares e governos títeres, todos os países da América Latina, com a exceção do México, romperam relações comerciais e diplomáticas com Cuba!

            Quando o bloco socialista do leste europeu vem abaixo, ainda não tínhamos, na América Latina, nem a Venezuela do governo Chávez, nem os demais governos progressistas de hoje.  Por isso, é ainda mais digno de respeito esse esforço verdadeiramente heróico e revolucionário do governo e do povo cubanos, pois, ao invés da alternativa de um fácil retorno ao capitalismo, decidiram persistir na busca de um caminho próprio para a construção do socialismo.  Nas duras e solitárias condições impostas pelo bloqueio e, mais tarde, pela dissolução do bloco socialista europeu, Cuba persistiu no seu compromisso socialista e na busca das alternativas que pudessem aprofundar a revolução a partir das condições econômicas, sociais e políticas existentes na Ilha de Martí.

            Esse foi o pano de fundo que, no início de 1990, levou Cuba a discutir e implementar uma série de medidas e planos, principalmente na área econômica, que lhe permitissem resistir às pressões do imperialismo norte-americano.  Mais ainda, é quando Cuba assume um conjunto de ações e de iniciativas que tinham por objetivo avançar o processo de retificação dos erros e das tendências negativas, que já se manifestavam no interior do Estado e do próprio partido.  Não por acaso, o lema da revolução nesse período era Resistir para Vencer! Com essa firme e sólida determinação da direção do Partido, tendo à frente a capacidade política e a autoridade moral de Fidel e da própria revolução, o povo é convocado a compreender e apoiar medidas que exigiam uma forte dose de sacrifícios. 

            Hoje, após mais de uma década deste heróico esforço coletivo, graças à superação das antigas contradições, Cuba vive um novo momento histórico e enfrenta novas questões.  Por isso, sem ter realizado qualquer privatização, sem suprimir nenhum dos direitos ou conquistas da revolução, sem ceder um milímetro às exigências do imperialismo, a revolução e a construção do socialismo continuam vivas e ativas, mas novas contradições surgem na sociedade cubana e, dentre elas, sem maior aprofundamento, podemos destacar que:

a) os problemas com os transportes públicos persistiram e, por isso, surgiram e foram sendo aceitos meios de transporte particulares (como os táxis e outros veículos adaptados ao transporte), cujo funcionamento propicia a acumulação de uma quantidade de recursos privados que são trocados por CUC (Peso Cubano Convertível), cotado um pouco acima do dólar, o que permite um maior poder aquisitivo e o consumo de produtos vendidos apenas com a utilização desta moeda;

b)
alguns problemas do abastecimento de responsabilidade pública incentivaram soluções privadas graças a uma certa despenalização do dólar; em outros termos, pelo fato de trabalhar em certas atividades como, por exemplo, na rede hoteleira ou nas empresas mistas, uma camada social de cubanos passou a ter acesso ao dólar e, portanto, também aos produtos que não fazem parte da cesta básica, garantida a todos os cubanos;

c)
apareceram casos de corrupção de alguns diretores em algumas empresas.  São resquícios do capitalismo, difíceis de serem superados; no entanto, aqui, numa sociedade socialista, existe uma grande diferença, pois, quando descobertos, estes casos são tratados com todo rigor e de forma exemplar;

d)
certas questões sociais, que afetam especialmente a juventude, tornaram-se mais evidentes: alcoolismo, prostituição, jovens ociosos, que não querem trabalhar, nem estudar, etc;

            Esse é um rápido diagnóstico de algumas questões que precisam ser reconhecidas, pois, afinal, acreditar no processo revolucionário não significa imaginar uma revolução idealizada, que já nasce perfeita e acabada, sem contradições, totalmente descolada das condições materiais de vida dos seus habitantes.  São contradições novas que o partido, as organizações populares e de massa, além do próprio aparelho estatal, procuram entender, buscando alternativas coletivas para a sua superação.  Aliás, a postura vigilante, segura e propositiva com a qual o partido e o governo procuram incorporar as massas para continuar avançando na construção de uma sociedade socialista, nos enche de ânimo.  Atualmente, estão em execução mais de duzentos projetos sociais, envolvendo principalmente a juventude, justamente para enfrentar os problemas e as contradições do processo em marcha.  um empenho visível de inovar, criando alternativas e potencializando o capital humano como elemento estratégico da revolução.

A título de mera ilustração, menciono algumas conquistas da área de educação.  Nas condições brasileiras nem dá para acreditar, mas, em Cuba, em qualquer escola, nenhum professor tem mais que vinte alunos em sala de aula! Imaginem vocês! Para melhorar as condições do ensino e aprendizagem, todas as escolas, inclusive as que estão nas montanhas mais afastadas, possuem televisão, vídeo e computador! Em certas escolas, nas montanhas, a energia elétrica não chegou, mas a energia solar, sim! Imaginem, ainda, vocês, que, no interior de Cuba, existem cerca de trezentas escolas que só possuem cinco alunos, mas ali está um professor! E mais: em cento e cinqüenta escolas, há um professor para cada aluno! São meras ilustrações sobre a importância do estudo, da formação humana e da consciência, mas indicam a firmeza de um propósito quanto às questões chaves para o avanço da revolução socialista.

Imaginem um país-universidade! Pois assim é Cuba, onde todos os jovens podem cursar uma faculdade, de qualidade, gratuitamente, em seus próprios municípios! Bem que os cubanos costumam dizer, com merecido orgulho, que “existem no mundo milhões de crianças fora da escola, mas nenhuma delas é cubana”!

Imaginem que a taxa de mortalidade infantil é de 5,3 para cada mil nascidos vivos – doze vezes menor que a taxa existente antes da revolução – e que a expectativa de vida do cubano já se aproxima dos oitenta anos de idade! Pois eu poderia mencionar muitos outros aspectos da cultura, da economia, da convivência social que são indicadores da qualidade de vida da sociedade cubana.  Destaquei os indicadores da saúde e da educação porque, apesar das dificuldades vividas no período especial, ainda assim muitas conquistas da revolução e do socialismo não só foram mantidas, como avançaram.

            De um crescimento negativo, em torno de 30 % do PIB, nos anos 90, Cuba chega a 2006 com um crescimento econômico em torno de 12,5 %, o índice mais elevado da história revolucionária e que expressa uma tendência de consolidação do crescimento da economia.

            Poderíamos enumerar, ainda, uma série de iniciativas e de programas sociais de atendimento à juventude, aos idosos, aos trabalhadores de maneira geral; todas procuram forjar um povo cada vez mais culto, mais humano, mais solidário, mais cubano, mais latino-americano; cada vez mais revolucionário e mais internacionalista, sob condições que continuam extremamente difíceis.  Neste reencontro pude ver, ouvir e sentir a elevada auto-estima de um povo orgulhoso de pertencer a um país independente, livre e soberano que, com humildade e simplicidade, enfrenta todos os dias, vinte e quatro horas por dia, a força inclemente do mais terrível imperialismo, localizado a pouco mais de duzentas milhas de distância.

Não foi por acaso que, neste último primeiro de maio, mais de um milhão de cubanos (homens, mulheres, jovens, crianças) desfilaram na Praça da Revolução manifestando seu apoio ao partido, a Fidel, à revolução e ao socialismo.  Uma mobilização enorme em defesa da soberania e em repúdio ao imperialismo.  Somente quem esteve lá, sentindo tanta emoção, tanta vibração, tanta decisão, pode compreender o que isso significa!

2.  A revolução e o socialismo são processos que avançam         

Somente um povo organizado e consciente, com um partido dirigente e um Estado socialista, é capaz de enfrentar os desafios da atual conjuntura histórica e continuar avançando no processo de construção do socialismo, que se iniciou no final da década de 50. 

No atual momento de superação de desafios, segundo seus próprios dirigentes, Cuba pretende enfrentar seis tarefas mais urgentes:

1º) Manter a autoridade política, ética e moral do partido dirigente.  A autoridade do partido está na justeza da sua linha política; no exemplo dos seus militantes e quadros; no seu vínculo com o povo; na sua capacidade de escutar e de persuadir; em suma, na sua capacidade de incorporar a maioria do povo na luta pelos objetivos da revolução socialista.

2º) Implementar e ampliar a capacidade de crítica e de autocrítica no interior do partido, mantendo-o cada vez mais aberto e receptivo aos anseios e às necessidades das massas; aumentar a participação democrática do povo organizado em todas as tarefas, desde a vacinação dos recém-nascidos, à prevenção da Aids, ao combate ao consumo de drogas e ao alcoolismo, até a vigilância revolucionária, em todos os sentidos e aspectos;

3º)
Aperfeiçoar as políticas e os métodos para alcançar maior nível de agilidade na solução das necessidades e interesses das massas, sem se desviar do horizonte socialista.  Enfrentar e superar as tendências burocráticas que estão presentes em diferentes níveis e instâncias do partido, do Estado e das organizações sociais e de massas, e que se manifestam na passividade, no descumprimento das leis, no atraso na implementação dos programas e definições da revolução socialista.

4º)
Manter, fortalecer e desenvolver, de forma permanente, a mobilização das massas para enfrentar a contra-revolução e o imperialismo e para manter a independência da nação, tanto do ponto de vista econômico, como político e cultural;

5º)
Fortalecer a concepção de guerra de todo o povo que, praticamente, todos os cubanos conhecem, pois ela é a solução de massas, a defesa do País diante da possibilidade de uma agressão do império norte-americano e, por isso, foi criado um poderoso sistema defensivo que envolve todas as forças e todo o povo.

6º)
Defender a batalha de idéias no combate à corrupção, aos desvios sociais e de conduta, impedindo que se tornem questões que possam colocar em risco a segurança do país e da revolução.  Essa é uma batalha que só pode ser levada adiante com a participação de todos.  Esta é uma batalha vital, pois, como argumentam os revolucionários, se perdermos a moral, a ética, a consciência, o espírito combativo e criador, o projeto socialista está condenado ao fracasso. 

A batalha de idéias não se restringe apenas aos princípios, à teoria, ao conhecimento, à cultura, aos argumentos, à capacidade de destruir as mentiras e de semear as verdades; ela implica, também as realizações concretas em todos os aspectos da vida social e material dos cubanos, que se traduzem na implementação de aproximadamente duzentos programas sociais.

Para entender melhor esse processo em curso, nada melhor que a definição de revolução tal como a entende Fidel Castro:

Revolução é sentido do momento histórico; é mudar tudo o que deve ser mudado; é igualdade e liberdade plenas; é ser tratado e tratar aos demais como seres humanos; é emanciparmos por nós mesmos e com nossos próprios esforços; é desafiar poderosas forças dominantes, dentro e fora do âmbito social e nacional; é defender os valores em que acreditamos, ao custo de qualquer sacrifício; é modéstia, desinteresse, altruísmo, solidariedade e heroísmo; é lutar com audácia, inteligência e realismo; é não mentir jamais, nem violar princípios éticos; é convicção profunda de que não existe força no mundo capaz de afastar a força da verdade e d as idéias.  Revolução é unidade, é independência, é lutar por nossos sonhos de justiça para Cuba e para o mundo, que é a base de nosso patriotismo, nosso socialismo e nosso internacionalismo” (Cadernos de Estudos da Escola Ñico Lopez, Havana, 2007).

Com firmeza política e ideológica, Fidel procurou demarcar os princípios e os passos fundamentais da revolução.  Sua definição não quer apenas explicar a revolução, mas reafirmar a necessidade de unificar, cada vez mais, o povo, fazendo avançar a revolução dentro da revolução e a construção do socialismo dentro do socialismo. 

Dizem que é necessário falar do socialismo de Cuba e não do socialismo em Cuba.  Em outros termos, quando dizemos socialismo de Cuba estamos reconhecendo a existência dos diferentes socialismos que estão sendo construídos agora, nesse início do século XXI.  Por isso, dizem que a única coisa que se pode copiar de Cuba é a própria idéia cubana de que as experiências históricas socialistas não podem ser copiadas.  A construção de uma sociedade socialista é sempre histórica e não existem receitas prontas, nem fórmulas científicas que sejam igualmente aplicáveis em realidades sociais tão diferentes.  Aqui, a palavra de ordem não é copiar, mas criar e inventar.

Por último, recordo o papel do indivíduo na história, pois, se é certo que a força das mudanças está na ação consciente e organizada das massas, também é certo que, em determinados momentos da luta, o indivíduo cumpre um papel decisivo e não se pode deixar de reconhecer a maestria, a inteligência, a capacidade de formulação, de análise, de direção, do comandante Fidel Castro.  Sua autoridade moral e ética, construída nesses anos de revolução; sua capacidade de propor, de orientar, de explicar os processos revolucionários, tanto para os dirigentes e militantes, como para o povo em geral; sua dedicação incansável; sua capacidade de crítica e de auto-crítica, de se antecipar aos acontecimentos, foram e são fundamentais.  Fidel possui virtudes extraordinárias, mas é provável que a virtude que melhor sintetiza essa história de 80 anos de vida seja sua lealdade ao povo cubano, sua firmeza de princípios, sua capacidade e sua coragem de sempre dizer a verdade, ainda que às custas de maior sacrifício para si próprio e para o seu povo. 

Com Fidel e a revolução, o povo cubano aprendeu o que é ser independente, livre e construtor da própria história.  Por isso, o espírito revolucionário mantém vivos os combates, as batalhas, as conquistas, as idéias e o legado dos heróis das lutas libertárias, em Cuba e na América Latina, mantendo a trincheira, a luz, a utopia socialista, que nos empurram para a frente, construindo nossos caminhos e alternativas na busca da justiça social e da soberania popular em nossos próprios países. 

Esse é um breve resumo das minhas impressões dessa visita de reencontro do povo cubano.  Um povo graças ao qual estão vivos, mais vivos que nunca, a revolução e o socialismo, que não são apenas de todos os cubanos, mas de todos os socialistas e de todos os revolucionários do mundo, em particular da Nuestra América! Assim, todos somos cubanos, porque latino-americanos somos e esta causa é de todos nós.  Os sonhos de Martí, de Bolívar, do Che, de Mariguella, de Florestan, de Apolônio, e de tantos de nós, estão se realizando na enorme vitalidade dos processos políticos que estão em curso na nossa região, integrando todos os povos que lutam por uma América Latina livre e independente.  O inimigo comum é poderoso, mas não é invencível.  Foi o que aprendemos em Cuba e é o que ela continua a nos ensinar. 

(Meu agradecimento especial à professora Heloísa Fernandes pela leitura e revisão desse texto).

Adelar João Pizetta.
Jacareí, maio de 2007.

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