A encruzilhada Buritis
30/03/2002
- Opinión
Amigo do rei, um filósofo andou apregoando que na política a moral
não precisa coincidir com as exigências éticas. Haveria uma moral
para os cidadãos e outra para aqueles que transitam na esfera que
decide a vida dos cidadãos.
A lição parece ter sido aprendida por alguns ministros do governo
FHC. Empenhados em desalojar os sem-terra da propriedade dos filhos
do presidente, os ministros Aloysio Nunes Ferreira, Raul Jungmann e
Alberto Cardoso asseguraram ao desembargador Gercino José Alves e à
ouvidora agrária Maria de Oliveira - negociadores do governo,
enviados pelo governo e revestidos da autoridade do governo, que não
haveria prisões, caso os sem-terra se retirassem pacificamente. Além
disso, seus líderes seriam recebidos pelo ministro do Desenvolvimento
Agrário.
Os ouvidores confiaram na palavra de seus superiores e os sem-terra
na dos ouvidores. Finda a retirada, a Polícia Federal prendeu 16
agricultores. Em nome da decência, os ouvidores pediram exoneração,
conscientes de que, no mínimo, fizeram papel de bobos. Foram
induzidos a negociar uma cilada.
Os sem-terra de Buritis também caíram numa emboscada eleitoreira. Nas
quatro vezes anteriores em que se aproximaram da fazenda
presidencial, como recurso para terem suas reivindicações ouvidas,
jamais ingressaram na propriedade. Desta vez, encontraram abertas a
porteira da fazenda e a porta da casa. Caminharam do fato político à
invasão de privacidade e de propriedade, pois a fazenda é produtiva e
não se instalou em terra grilada ou devoluta.
Assim, deram ao ministro da Justiça, cabo-eleitoral de José Serra, e
ao ministro do Desenvolvimento Agrário, pré-candidato à presidência,
a munição de que necessitavam para atacar a candidatura Lula, ligando
o MST ao PT. José Dirceu, presidente do PT, protestou, negou os
vínculos, e o ministro recuou.
Há mais de 500 famílias assentadas na região de Buritis. Querem o
assentamento de mais 80 famílias que se encontram acampadas em
situação de miséria. Há anos, todas elas lutam por viabilização do
assentamento, moradias e créditos para a produção. A cada vez que,
para se fazer ouvir, os assentados se aproximavam da fazenda
presidencial, o ministro Raul Jungmann prometia atendê-los. Nunca o
fez. Chegou a declarar que cada família recebera R$ 23 mil, o que não
confere com os cadastros do Pronaf e do Incra.
Para reivindicar seus direitos, empresários, advogados, médicos,
banqueiros ou professores contatam deputados e senadores, suscitam
notas na mídia, dão entrevistas, são recebidos em audiência nos
gabinetes do Planalto. E os miseráveis, o que fazem? A quem recorrer?
Já se queixaram até aos bispos, a ponto de a própria CNBB denunciar o
desinteresse do governo em dialogar com o MST.
Reeleito FHC, fui levado pelo deputado federal Tilden Santiago à
mansão do vice-presidente Marco Maciel. Exortei-o a convencer o
governo a manter abertos os canais com os movimentos sociais. Em vão,
em que pese o empenho do vice-presidente da República.
Gandhi e Luther King ensinaram formas legítimas de pressão, hoje
utilizadas pelo MST. Sofreram, em suas épocas, ataques semelhantes.
Exageros e precipitações que, por vezes, ocorrem, estão longe de se
comparar aos recursos utilizados por quem não cospe no chão, mas
envia presentes às autoridades, cede jatinhos e reforça o caixa 2 de
campanhas eleitorais. Pedir elegância e fino trato a quem passa fome
e quer apenas um pedaço de terra para sobreviver é tripudiar sobre a
evidência de que os sem-terra são vítimas de uma reforma agrária que
nunca sai do papel e dos discursos.
Nesses últimos oito anos, cerca de 920 mil pequenas propriedades
rurais foram cortadas do mapa do Brasil. Segundo dom Tomás Balduino,
presidente da Comissão Pastoral da Terra, apenas 2,8% dos 3.114.898
imóveis rurais ocupam 56,7% de toda a área disponível.
Jean Ziegler, goste ou não o governo, tem razão ao afirmar, em seu
relatório para o ONU, que o Brasil vive uma guerra social. Até hoje,
seis anos depois, prosseguem impunes os que assassinaram os 21
agricultores em Eldorado dos Carajás.
Só quem foi adepto de Stalin pode acreditar que o MST é correia de
transmissão do PT, como ocorria na União Soviética com os movimentos
sociais. Mas tomara que o PT não passe a ter vergonha de suas
origens. Fora dos excluídos, o PT não tem salvação. E duvido que
ganhe eleição.
* Frei Betto é escritor, assessor de movimentos pastorais e sociais,
e autor de "Batismo de Sangue" (Casa Amarela), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/active/1872
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