O caráter confiscatório da dívida externa
03/04/2002
- Opinión
Em pouco mais de cem anos de República, a dívida externa nunca foi tão elevada como
agora, relativamente à nossa capacidade de pagamento. O total da dívida externa
bruta está representando nesse ano de 2002, cerca de 5 vezes o valor de nossas
exportações, e é muito superior, proporcionalmente, à dimensão atingida em outras
situações de crise interna e/ou internacional: ao final da República Velha a relação
dívida externa/exportações era de 3, por ocasião do golpe civil-militar de 1964 era
de 2,5, e em 1979, ocsião do segundo choque de preços do petróleo, era de 3,8. Ã
luz desses números, fica claro que a dívida externa atual é a maior da história
republicana brasileira.
Vista por outro ângulo, relativamente à capacidade individual de cada brasileiro, a
situação é ainda mais grave. Em termos individuais, devemos hoje ao exterior uma
cota equivalente à 62% da nossa renda per capita, enquanto em 1979 devíamos o
equivalente a 25%. Essa informação, surrupiada aos nacionais, é um bom indicador da
deterioração da situação real do cidadão brasileiro perante a nova ordem
internacional inaugurada nos anos 1980 sob as características da acumulação rentista
e da exploração crescente dos países periféricos pelos centrais que sediam o grande
capital.
Mais da metade da dívida externa atual foi construída durante os anos do Plano Real,
sem que se tenha verificado um aumento do Produto Interno por habitante que se situa
hoje em torno de US 2.800, cifra idêntica à de 1993. Devemos duas vezes mais do que
em 1993, sem que nos tenhamos tornado mais ricos, mais produtivos. Pelo contrário,
o patrimônio coletivo que nos pertencia foi entregue a empresas multinacionais,
obrigando-nos a pagar tarifas crescentes por serviços públicos essenciais como a
energia elétrica e as as comunicaçoes telefôbnicas e o aprovisionamento doméstico do
gás de cozinha.
Em todo esse período recente, em que ocorreu o agravamento da situação econômica e
financeira externa da nação, as autoridades governamentais tem se comportado de
maneira irresponsável, aparentando desconhecer as implicações políticas maiores de
uma dívida externa impagável. Mesmo agora, quando atingimos o pico do suportável,
continuam emitindo bônus e outros títulos de dívida no exterior, continuam
permitindo que empresas estrangeiras e nacionais assumam novas dívidas em dólar,
junto às altas finanças internacionais.
Todo dia, quando abrimos os jornais, temos notícias de que a Embratel está
contratando empréstimo superior a US$ 300 milhões, de que tres bancos (Itaú,
Bradesco e Unibanco) já captaram, em 2002, outros US$ 300 milhões no mercado
externo, e de que empresas do setor elétrico candidatam-se a nada menos do queUS$ 1
bilhão. Casos como esses ocorrem diariamente, para alegria dos bancos estrangeiros
que aqui operam e que recebem gordas comissões por essas operações que eles lideram,
a exemplo do Citibank e do Bank of Boston.
A dívida externa transforma-se rapidamente em dívida pública interna, graças a
política monetária seguida pelo Banco Central, e agrava o problema do cidadão
brasileiro que é obrigado a pagar impostos cada vez maiores para manter o equilíbrio
fiscal exigido pelo Fundo Monetário Internacional, isto é o cidadão brasileiro é
obrigada a pagar impostos crescentes para sustentar as rendas do grande capital que
estão aplicadas em títulos da dívida pública. E assim vamos ficando a cada dia mais
pobres, mais tripudiados, mais dominados pelas altas finanças internacionais.
Sair desse ciclo perverso não é tarefa fácil, principalmente quando o Governo se
coloca contra os interesses da nação, admitindo por exemplo que o Banco Central atue
no mercado de derivativos, sabidamente um núcleo da especulação financeira. O
Sistema Brasileiro de Pagamentos, que entrará em operação ao final de abril deverá
ser mais um elemento importante de evasão de divisas, se for administrado com
irresponsabilidade semelhante à que tem caracterizado a gestão da dívida externa
brasileira.
Argumentos como os que desenvolvemos acima, mais o caráter oligopólico do preço que
pagamos pelo dinheiro estrangeiro (as taxas de juros de agiotagem internacional
aplicadas aos países periféricos), fazem crescer a consciência nacional de que a
dívida externa brasileira é ilegítima e imoral. Foi contraída e está sendo
expandida graças a um conluio do qual participam todos os brasileiros responsáveis
pela gestão das contas externas, mas também todos os agentes estrangeiros que dela
se beneficiam aqui e no exterior, incluindo o Fundo Monetário Internacional e o
Banco Mundial, duas agências multilaterais que deveriam zelar pela estabilidade do
sistema financeiro internacional e pela gestão responsável dos balanços de
pagamentos dos países membros.
Uma parcela da sociedade brasileira está absolutamente consciente dos riscos que
corremos todos, em razão dos descaminhos seguidos em matéria de endividamento no
estrangeiro, e está participando, em nível nacional, da campanha pela Auditoria da
Dívida Externa. Uma auditoria que deve ser feita pela sociedade civil e integrada
por todas as instituições irmanadas aos objetivos de defesa da soberania nacional.
O núcleo central dessa campanha localiza-se em Minas Gerais, mas já há grupos
atuando em vários estados do Brasil, motivados não só pela dedicação à pátria
Brasil, mas também pelo apoio vigoroso recebido da população brasileira, que se
pronunciou maciçamente a favor da Auditoria, em plebiscito nacional realizado em
2000.
Os brasileiros que seguem atentamente a questão sabem que a atual dívida externa não
foi feita com base em contratos legitimados democraticamente, e estão conscientes de
que ela não foi realizada segundo os critérios racionais da teoria econômica, isto é
para facilitar o crescimento econômico. Ressaltam, a cada dia, suas características
de ilegitimidade e sinalizam que os juros pagos por esta dívida assemelham-se cada
vez mais a tributo prestado a credores complacentes e associados.Tributo perverso e
confiscatório imposto pelas altas finanças internacionais a países que, como o
Brasil, não dispõem ainda de mecanismos democráticos capazes de impugnar atos
contrários ao interesse nacional praticados sob a máscara de contratos econômico-
financeiros entre elites.
* Ceci Vieira Juruá, economista, membro da Aliança por um Mundo Responsável, Plural
e Solidário e de Attac-Brasil.
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