Nova onda de violência e devastação no campo brasileiro vista a partir da Geografia

29/04/2008
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A concentração da propriedade da terra se constitui num dos pilares da concentração de poder não só no Brasil como em toda a América Latina. Desde o início da invasão dos territórios dos povos originários pelos europeus que o domínio e controle da terra e de suas riquezas minerais se configuraram como o principal objetivo dos invasores. Para isso, os invasores conformaram um conjunto de justificativas que teve na idéia de raça (Aníbal Quijano) um elemento central para legitimar esse controle dos recursos e da riqueza por parte dos fidalgos, ou seja, dos fi´d´alguém, já que os filhos de ninguém, isto é, os povos originários e os negros não eram considerados humanos.

Assim, a estrutura assimétrica das relações sociais e de poder tem no controle dos recursos e da riqueza e nessa distinção/discriminação social com base na raça a base da constituição da formação das classes sociais no Brasil e na América Latina. Por isso a questão fundiária associada à questão étnico-racial se constitui num dos temas mais explosivos de nossa formação social. Até recentemente essas questões se mantiveram dissociadas no debate político em parte graças à eficácia da ideologia da mestiçagem e da democracia racial e, em parte, pela ideologia da vanguarda da classe operária que obscurecia outras formas possíveis de classificação social. Todavia, nos últimos anos esse quadro vem se modificando com a emergência de movimentos sociais que trazem para o debate político o elemento étnico-racial constitutivo das nossas relações sociais e de poder desde sempre. Estamos, pois, diante da negação da negação da condição de humanidade por parte dos negros e dos povos originários que, assim, se apresentam afirmando ter direito a instituir direitos.

Desde o início do período colonial que se conformou no Brasil e na América Latina duas geografias antagônicas: (1) uma geografia marcada por assimétricas relações sociais e de poder étnico-racializadas, (1.1) seja por meio do cativeiro dos homens (escravidão) e (1.2) à violência contra as mulheres (haja vista o fato de a maioria dos colonos que vieram para o Brasil não ter vindo para cá com suas esposas e, assim, violar as mulheres indígenas e as negras eram práticas comuns), (1.3) seja por meio do cativeiro da terra (latifúndio) que destina os nossos melhores recursos, tanto técnicos (dos engenhos dos séculos XVI e XVII, aliás, as mais modernas manufaturas que então o mundo conhecia, aos atuais tratores-computadores com seus plantios diretos de monoculturas transgênicas), (1.4) como naturais (os melhores solos, nossas energias e águas, nossas matas queimadas para fazer ferro-gusa limpo para o primeiro mundo e a contaminação e a devastação a isso associado que fica para nós) para a exportação e; (2) uma geografia da liberdade que se conformou por meio de  quilombos, nos refúgios dos indígenas e no apossamento de terras pelos camponeses (“homens livres”), onde a diversidade dos cultivos e o aproveitamento do potencial que a natureza com sua produtividade primária (fotossíntese) oferece, conformaram modos de vida e de produção marcados por uma riquíssima culinária e uma medicina criativa e eficaz cujos conhecimentos são, hoje, objeto de intensa luta por apropriação (etnobiopirataria) e que é responsável por grande parte do nosso alimento de cada dia.

A julgar pelos dados recém divulgados pela Comissão Pastoral da Terra, em seu Caderno de Conflitos 2007, essas duas geografias parecem atualizar a contraditória história de nossa formação territorial. De 2006 para 2007 houve um espraiamento dos assassinatos no campo brasileiro [Mapa 1]: de oito estados com registro de assassinatos em 2006 passou-se para quatorze, ainda que tenha havido um decréscimo no número total de assassinatos no país, de 39 para 28, fruto da expressiva queda dos assassinatos no estado do Pará que de 24, em 2006, passou a 5, em 2007. De dez estados com registro de famílias expulsas em 2006 passou-se também a 14, em 2007 [Mapa 2]. O número total de famílias expulsas aumentou 140% de um ano para outro; em 15 unidades da federação houve aumento do número de pessoas envolvidas em conflitos de 2006 para 2007 [Mapa 3]; aumentou também o número de trabalhadores em situação análoga à de escravo: em 2006 foram 6.930 casos denunciados com o resgate de 3.633 trabalhadores em 16 estados; em 2007 foram 8.653 casos com o resgate de 5.974 em 18 unidades da federação. Esses últimos dados são ainda confirmados em matéria publicada pela Folha de São Paulo, em 17 de fevereiro de 2008 (FSP, Caderno B: 04), que informa que os grupos móveis do Ministério do Trabalho resgataram em propriedades do setor sucro-alcooleiro 3.117 pessoas submetidas à condição análoga à de escravo, o que correspondia a 53% do total de casos registrados no país. Os demais casos foram registrados, principalmente nas atividades de carvoejamento e de pecuária. Observemos que assassinatos, expulsão de famílias e trabalho escravo são ações que revelam práticas de fazer justiça com as próprias mãos. Por outro lado, o número de famílias despejadas também aumentou na região sudeste, isto é, na região onde estão os estados de maior desenvolvimento capitalista do país, aqui indicando que além da violência com as próprias mãos do poder privado acima indicada, o poder público também vem contribuindo com suas ordens de despejo para consagrar a apropriação concentrada da terra.

Considere-se que desde 2004 quando o n° de ocupações atingiu seu máximo (508) que esse n° vem caindo tendo passado de 384, em 2006, para 364, em 2007. O mesmo vem ocorrendo com os acampamentos que foram 284, em 2003, e baixaram para 67, em 2006, e 48, em 2007.

Quando se observa as categorias sociais evolvidas nos conflitos [Mapas 4, 5 e 6] por terra no ano de 2007 vemos que os Sem Terra correspondem a 44% do total e as Populações Tradicionais a 41%! Assim, vemos que os conflitos envolvendo trabalhadores rurais sem terra e trabalhadores com terra, mas sem reconhecimento formal da sua condição de apossamento praticamente se equivalem, já que as Populações Tradicionais implicam os Posseiros, os Remanescentes de Quilombos, os Faxinaleses, os Ribeirinhos, os Pescadores, os Seringueiros, os Castanheiros, as Mulheres Quebradeiras de Coco, os Geraizeiros. Esses dados indicam que está em curso um intenso processo de expropriação camponesa no Brasil.

O que estaria engendrando tamanho agravamento da violência no campo brasileiro, sobretudo quando se registram também uma diminuição significativa dos acampamentos, das ocupações e demais ações dos movimentos sociais? Há, de um lado, razões de “longa duração”, como diria Fernand Braudel, haja vista que a violência com as próprias mãos por parte das nossas oligarquias moderno-coloniais, os números confirmam amplamente, sempre aumenta quando existe algum avanço no sentido da democratização da sociedade brasileira e o poder público passa a agir de modo republicano e não como soe acontecer nos períodos de normalidade patrimonialista onde impera a vontade dos “donos de poder”, conforme a precisa caracterização de Raimundo Faoro. Foi assim no período da Constituinte, nos finais dos anos oitenta, quando a sociedade brasileira via avançar um conjunto de movimentos sociais que pautavam o debate da Reforma Agrária e, com ela, buscavam conformar uma democracia substantiva democratizando o acesso à terra e demais recursos necessários à saúde, educação, meio ambiente, apoio à infância, à adolescência e à terceira idade. Seringueiros, atingidos por barragem, remanescentes de quilombos, mulheres quebradeiras de coco babaçu, geraizeiros, retireiros, faxinaleses, castanheiros, ribeirinhos, pescadores, e demais formações sociais camponesas começaram a constituir um novo léxico político, diversificando e complexificando o debate da reforma agrária no país. As expectativas de democratização que se fizeram com a eleição do Sr. Lula da Silva também fizeram aumentar os índices de violência no campo por parte das oligarquias preocupadas com a possibilidade que o governo avançasse na política de reforma agrária. O aumento dos assassinatos, do n° de famílias expulsas e de famílias despejadas no primeiro ano do governo do Sr. Lula da Silva foi uma clara demonstração de força por meio da violência por parte das oligarquias empresariais latifundiárias.

O fato do governo do Sr. Lula da Silva não ter avançado no sentido de mexer na estrutura de poder do latifúndio e, ainda, apostar numa nova onda de avanço moderno-colonial não tem sido suficiente para arrefecer a violência do poder dos “grandes latifúndios empresariais monocultores de exportação”, eis o verdadeiro nome dos agronegociantes. Hoje, são enormes as oportunidades que se abrem para a exportação de commoditties, só comparáveis às oportunidades que se abriram nos séculos XVI e XVII quando também uma verdadeira revolução tecnológica se deu na produção, com os engenhos, e na circulação, com a navegação. O capitalismo de estado monopolista, sob o comando do Partido Comunista Chinês, tem demonstrado sua superioridade sobre o capitalismo monopolista de estado, sob a hegemonia neoliberal da banca de Wall Street e suas instituições globalitárias (FMI, Banco Mundial, G-7+1, OMC), ativando a demanda de matérias primas agrícolas, minerais e de energia e oferecendo oportunidades enormes, sobretudo para países que dispõem amplas reservas de terra e seus recursos, como é o caso do Brasil.

O avanço do cultivo da cana de açúcar, sobretudo nos estados de São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso do Sul, vem se fazendo sobre áreas de pastagens principalmente e, assim, o gado vem avançando sobre as áreas de cerrado e floresta, seja no Mato Grosso, no Tocantins, no Pará, no Maranhão, no Piauí e oeste baiano. O mesmo vem acontecendo com a ampliação da área de soja, de milho e de monocultivos de madeiras exóticas (eucalipto e pinnus eliotis). Numa espiral virtuosa de voiolência e devastação, esse avanço do gado e desses monocultivos de exportação, ao exercer pressão sobre essas áreas de cerrado e de florestas oferecem oportunidades que viabilizam os grileiros de terras, os madeireiros que se apresentam como moderno-colonizadores, as empresas de carvão que oferecem matéria prima para purificar o ferro a ser exportado por modernas e coloniais infra-estruturas de estradas de ferro e portos. Grilada a terra, retirada as madeiras nobres, queimadas as madeiras para fazer o carvão é chegada a hora dos pecuaristas e de outros agronegociantes completarem esse tragicamente dinâmico Complexo de Violência e Devastação.

São essas amplas expectativas de negócios que estão subjacentes às ações de violência que aumentam no país. Os dados dessa geografia da violência permanecem incontestados pelas entidades do bloco de poder técnico-científico-agroindustrial-financeiro-midiático diretamente ligado a essa problemática, bloco de poder esse conformado por entidades como a Associação Brasileira de Agrobusiness – ABAG, a Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação – ABIA, a Associação da Indústria de Açúcar e Álcool – AIAA, a Rede Globo Comunicações e Participações, Agência Estado, entre outras, conforme se pode consultar no sítio http://www.abag.com.br/

A violência se mostra, assim, como componente estruturante das relações sociais e de poder de nossa história territorial de ontem e de hoje e, tal como ontem e hoje, sempre esteve associada ao avanço do que havia de mais moderno nos colonizando.

 
Carlos Walter Porto-Gonçalves
 
Doutor em Geografia e Professor do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense e Pesquisador do CNPq – Conselho nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – e do Grupo Hegemonia e Emancipações de Clacso. Ganhador do Prêmio Casa de las Américas 2008 de Literatura Brasileira. Ex-Presidente da Associação dos Geógrafos Brasileiros (1998-2000). Membro do Grupo de Assessores do Mestrado em Educação Ambiental da Universidade Autônoma da Cidade do México. Ganhador do Prêmio Chico Mendes em Ciência e Tecnologia em 2004 é autor de diversos artigos e livros publicados em revistas científicas nacionais e internacionais, em que se destacam: - “Geo-grafías: movimientos sociales, nuevas territorialidades y sustentablidad”, ed. Siglo XXI, México, 2001; “Amazônia, Amazônias”, ed. Contexto, São Paulo, 2001; “Geografando – nos varadouros do mundo”, edições Ibama, Brasília, 2004; “O desafio ambiental”, Ed. Record, Rio de Janeiro, 2004; “A globalização da natureza e a natureza da globalização”, Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2006 e El Desafio Ambiental, Ediciones PNUMA, México, 2006.
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