O impasse do desenvolvimento nacional
06/10/2003
- Opinión
"Seria necessário colocar como epíteto de todo estudo sobre a
racionalidade este princípio bem simples mas freqüentemente
esquecido. A vida pode ser racionalizada de acordo com perspectivas e
direções extremamente diferentes". M. Weber.
Confirmando as previsões mais sombrias, o draconiano ajuste fiscal e
monetário promovido pelo governo Lula provocou uma recessão de
grandes proporções. A queda contínua da massa salarial, a
persistência de incertezas que bloqueiam a retomada dos
investimentos, o contingenciamento dos gastos públicos e o patamar
estratosférico dos juros reais não permitem que se vislumbre uma
reversão do mergulho recessivo. Mas mesmo que o fundamentalismo
ortodoxo seja abandonado e que as autoridades flexibilizem a política
econômica, não há nenhuma razão para esperar um espetáculo de
crescimento e menos ainda para supor que uma eventual expansão da
economia possa contribuir para o aumento do bem estar do conjunto da
população. Na realidade, o modelo neoliberal tem se revelado
altamente perverso e anti-social.
No Brasil, o balanço da era FHC é sombrio. Nos oito anos de seu
governo, a renda per capita dos brasileiros ficou praticamente
estagnada; o desemprego alcançou a marca de 20% nas principais
capitais do país; a participação do salário na renda nacional caiu
quase 10 pontos percentuais; e o rendimento médio dos 10% mais ricos
alcançou a escandalosa marca de 48 vezes o rendimento médio dos 10%
mais pobres. Estudos recentes da Cepal mostram que, com pequenas
diferenças, o comportamento de todas as economias latino-americanas
que aderiram ao Consenso de Washington seguiram o mesmo padrão,
combinando de maneira perversa baixo crescimento e aumento das
desigualdades sociais.
É a perspectiva de que a economia brasileira caminha para a terceira
década perdida que coloca em pauta a urgência de a sociedade se
desvencilhar do neoliberalismo e buscar novos rumos para a política
econômica. Esse foi o recado inequívoco das urnas.
Entretanto, para que o debate sobre as alternativas com que se
defronta o Brasil não seja uma farsa, como foi a patética
controvérsia que dividiu a administração FHC entre os autoproclamados
desenvolvimentistas, defensores de um neoliberalismo "pragmático", e
os monetaristas que praticavam à risca o programa de ajustamento
exigido pela banca internacional, é fundamental resgatar o sentido da
reflexão sobre o desenvolvimento nacional e não se esquivar de suas
implicações políticas. Caso contrário, as escolhas da sociedade
continuarão limitadas a alternativas tacanhas: mais ou menos
crescimento (dentro de um patamar medíocre de expansão); maior ou
menor concentração adicional da renda e da riqueza nacional; e
aumento maior ou menor da dependência externa.
A noção de desenvolvimento diz respeito à capacidade de o Homem
controlar o seu destino. No capitalismo, a questão central reside na
subordinação do processo de acumulação aos desígnios da sociedade
nacional. Trata-se sobretudo de um problema qualitativo sobre as
condições externas e internas que permitem ao Estado nacional
arbitrar o sentido, a intensidade e o ritmo do processo de destruição
criadora que caracteriza o desenvolvimento capitalista, de modo a
assegurar a reprodução de mecanismos de socialização do excedente
social entre salário e lucro. De acordo com esta concepção, o
desenvolvimento requer como condição sine qua non um mínimo de
equidade social. Parte-se do princípio de que é a transferência dos
aumentos na produtividade física do trabalho para salário real que
permite combinar aumento progressivo da riqueza da Nação e crescente
elevação do bem-estar do conjunto da população. A essência do
problema reside na presença de estruturas sociais e de uma dinâmica
de incorporação de progresso técnico que permitam que o movimento de
acumulação de capital provoque uma tendência à escassez relativa de
trabalho.
Logo, para que a reflexão sobre os rumos da política econômica possa
abrir novos horizontes para o povo brasileiro ela deve superar o mito
de que as mazelas do subdesenvolvimento - a pobreza, a desigualdade
social e a dependência externa - podem ser resolvidas pela simples
aceleração do crescimento. Escrevendo numa época em que a economia
brasileira apresentava altíssimo dinamismo, Florestan Fernandes
colocou a questão nos seguintes termos: "Ao contrário do que se pensa
e do que se tem propalado freneticamente, como uma espécie de fé, os
problemas do Brasil não são 'problemas de crescimento'. Crescimento
tem havido, especialmente ao nível econômico. Ele não chegou a
assumir, porém, as proporções e um padrão que afetassem a integração
do Brasil como uma sociedade nacional". Donde a extrema atualidade de
sua observação: "Os povos que tentam essa saída e persistem nela,
mesmo depois de descobrirem suas limitações, o fazem porque não
possuem outros meios para forçar a melhoria de seu 'destino
histórico' na civilização a que pertencem. No fundo, trata-se de uma
saída cega e desesperada, tão irracional e improdutiva quanto seria
combater a raiva mordendo-se o cão que a transmitisse".
Quando levado às últimas conseqüências, esta perspectiva desemboca na
crítica da modernização dos padrões de consumo como principal
responsável pela perpetuação do subdesenvolvimento. Não é possível
resgatar o debate sobre as alternativas do desenvolvimento nacional
sem sepultar de uma vez por todas a ilusão de que seja possível
generalizar pelo conjunto da população mundial o estilo de vida das
economias centrais. Furtado explicitou de maneira definitiva as
limitações enfrentadas pelas economias periféricas no sistema
capitalista mundial: "(...) a civilização surgida da revolução
industrial européia conduz invevitavelmente a humanidade a uma
dicotomia de ricos e pobres, dicotomia que se manifesta entre países
e dentro de cada país de forma pouco ou muito acentuada. Segundo a
lógica dessa civilização, somente uma parcela minoritária da
humanidade pode alcançar a homogeneidade social ao nível da
abundância. A grande maioria dos povos terá que escolher entre a
homogeneidade a níveis modestos e um dualismo social de grau maior ou
menor".
Logo, a retomada do desenvolvimento passa necessariamente por uma
mudança radical do estilo de desenvolvimento da economia brasileira,
o que requer coragem para enfrentar o status quo e criatividade para
vislumbrar novos horizontes. O desafio é duplo. Por um lado, trata-se
de superar o processo de modernização dos padrões de consumo e vencer
o jugo do capital financeiro, sem o que ficamos condenados a
transformar a busca de saldos comerciais crescentes, a obtenção de
superávits fiscais gigantescos, a progressiva liberalização da
economia (como prevê a proposta do ALCA) e a abertura de grandes
negócios para o capital (como é o caso da Reforma da Previdência) em
objetivos prioritários e permanentes da política econômica. Por outro
lado, trata-se de afirmar uma nova agenda política que coloque em
primeiro plano o atendimento das necessidades sociais das camadas
desfavorecidas e a defesa da soberania nacional. Trata-se também de
recuperar a capacidade de intervenção do Estado na economia,
quebrando a blindagem institucional que garante o poder descomunal do
grande capital na economia brasileira. Evidentemente, não há a menor
possibilidade de que uma mudança de tal envergadura possa ocorrer sem
fortes embates com as forças externas e internas que sustentam o
modelo econômico brasileiro.
Para os descrentes na possibilidade de alternativas econômicas que
não contem com a benção da comunidade financeira internacional e não
estejam perfeitamente enquadradas nos cânones da ortodoxia, não custa
lembrar que o obstáculo ao desenvolvimento nacional não é um problema
técnico. O bloqueio a uma política econômica voltada para o
atendimento das necessidades nacionais é sobretudo político. E, como
a história ensina que só a pressão social de baixo para cima é capaz
de promover os interesses das classes trabalhadoras, as forças
populares devem evitar o equívoco de acreditar em homens
providenciais. Não pode haver ilusão. O povo brasileiro não deve
esperar nenhuma transformação social que ele não possa conquistar com
as próprias mãos.
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