Soberanía alimentar: uma necessidade dos povos

27/06/2011
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O direito à alimentação é um direito humano básico, incluído na Declaração Universal dos Direitos Humanos, das Nações Unidas, 1944. “todas as pessoas têm direito a uma boa nutrição como condição sine qua non para um desenvolvimento pleno, físico e mental (artigo 25).”
 
Nota: Sem fugir às nossas responsabilidades individuas, procuramos consolidar nesse ensaio, a construção coletiva da via campesina no Brasil e a nível internacional sobre o tema da Soberania alimentar. E com isso contamos com a contribuição de muitos pesquisadores da Via Campesina, que sistematizaram conceitos e escritos sobre o tema. 
 
SUMARIO
 
1. A situação mundial: o domínio das empresas transnacionais sobre os alimentos
2. Soberania alimentar: conceitos e trajetória
3. O Caso brasileiro
4. Políticas estruturantes para alcançar a soberania alimentar
 
1.     A situação mundial: o domínio das empresas transnacionais sobre os alimentos.
 
A fome e a desnutrição que atingem a milhões de seres humanos sempre foi ao longo da história da humanidade um dos problemas sócio-econômicos mais graves da organização das sociedades.  Sua ocorrência esteve ligada a diversos fenômenos como: a) pouco conhecimento acumulado de técnicas de produção de alimentos mais produtivas;   b) disputa e perda dos territórios mais férteis para produção de alimentos; c) ocorrência de fenômenos naturais que destruíam colheitas e fontes de alimentos; d) epidemias que atingiam grande parte da população e também impedia a produção de alimentos; e) ocorrência de guerras generalizadas que mobilizavam os trabalhadores e imobilizavam as áreas agricultáveis para produção de alimentos. 
 
Durante o século XX, as sociedades se organizaram de tal maneira que a maioria desses fenômenos já não foramresponsáveis pela ocorrência de fome e desnutrição. No entanto, a fome e desnutrição jamais atingiram tantas pessoas como na era contemporânea da historia da humanidade. Onde estaria a causa agora?  
 
A explicação pode ser encontrada nas teses de nosso querido Josué de Castro: “a fome e a desnutrição não é uma ocorrência natural, mas resultado das relações sociais e de produção que os homens estabelecem entre si”.
 
De fato, a ocorrência da fome que atinge a milhões de pessoas --- que em 2009 alcançou a um bilhão de seres humanos e em 2010 recuou em para 925 milhões, tem suas causas no controle da produção e na distribuição da produção e da renda entre as pessoas.
 
Nunca antes na humanidade a produção de alimentos esteve tão concentrada sob controle de uma mesma matriz de produção. Nunca antes na humanidade tão poucas empresas oligopolizaram o mercado,  atuando a nível internacional e tiveram tanto controle sobre a produção e comércio de produtos alimentícios como agora. Estima-se que menos de 50 grandes empresas transnacionais tenham o controle majoritário da produção de sementes, de insumos agrícolas e da produção e distribuição dos alimentos em todo mundo.
 
O direito a alimentação, sob o manto do capitalismo internacionalizado, não é mais um direito humano, de todos os seres humanos, independente de sua condição social, de cor da pele, local de moradia, gênero e idade. Agora, o acesso a alimentos está regido pelas leis capitalistas do lucro e da acumulação. E, portanto, as pessoas só têm acesso a alimentos se tiverem dinheiro e renda para comprá-los. E como há uma elevada concentração da renda, em praticamente todas as sociedades, e mais gravemente nos paises do hemisfério sul, as populações pobres, majoritárias que vivem nesses países, sofrem as conseqüências da falta de acesso aos alimentos.
 
Vive-se uma situação mundial em que nunca antes o planeta havia produzido tantos alimentos, em função das técnicas agrícolas e da capacidade de beneficiamento e armazenamento, mas mesmo assim, nunca antes tantas pessoas estiveram privadas do acesso a esse direito humano, que fere a sobrevivência da própria espécie. 
 
As chamadas políticas públicas, de responsabilidade dos governos que controlam os aparatos estatais, relacionadas com a política de abastecimento alimentar, estão mais do que nunca estabelecidas no âmbito geral de uma correlação de forças políticas determinadas pela macroeconomia mundial e corroboradas pelas práticas dos organismos multilaterais de defesa dos mercados oligopolistas. Assim, o comportamento do FMI (Fundo Monetário internacional), da OMC (organização mundial do comercio) e do Banco Mundial, sempre defenderamem primeiro lugar os interesses das empresas, encobertos sob o manto da liberdade de circulação do capital e das mercadorias. E no máximo, agora, defendem políticas governamentais compensatórias, para que a fome e a desnutrição não se transformem em tragédias sociais ou conflitos políticos internacionais. O outro organismo das Nações Unidas, criado para cuidar especificamente do tema, a FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) está completamente ausente e incapaz de propor políticas de mudanças estruturais aos governos. A FAO se transformou nas últimas décadas em apenas um organismo burocrático de pesquisa e registro dos volumes da fome e da desnutrição que atinge a humanidade. Ajuda a denunciar, porem não tem forças para combater suas causas.
 
Mesmo as políticas compensatórias recomendadas por esses organismos internacionais acabam atuando muito mais sobre o rebaixamento do custo de vida nas grandes cidades, e assim, facilitam a manutenção e agravamento de baixos salários e das condicionantes de desigualdade social registradas em todos os paises do hemisfério sul. E isso não tem sido contraditório, mas funcional aos interesses dominantes das grandes empresas e governos imperiais, com sua oligopolização do comércio de alimentos e com a política de dependência dos paises pobres, periféricos, perante os mercados internacionais de alimentos controlados por essas grandes empresas transnacionais.
 
Um dos principais estudiosos contemporâneos do problema, o professor suíço e consultor das Nações Unidas, Jean Ziegler   nos adverte que : “Uma das principais causas da fome e da desnutrição de milhões de seres humanos é a especulação, que sobrevêm, sobretudo, da Chicago Commodity Stock Exchange (Bolsa das matérias primas agrícolas de Chicago), onde são estabelecidos os preços de quase todos os produtos alimentícios do mundo (...). Para resolver a crise alguns sugerem as seguintes soluções: regulação da especulação... em vetar de modo absoluto a transformação dos produtos agrícolas em biocarburantes... uma outra poderia ser que as instituições como Bretton Woods e a OMC poderiam mudar os parâmetros de sua política na agricultura e dar prioridade absoluta aos investimentos nos produtos de primeira necessidade e na produção local, incluindo sistemas de irrigação, infra-estrutura, sementes, pesticidas, etc. Trata-se, pois, de um problema de coerência. Muitos países que fazem parte da Internacional Covenant on Economic, Social and Cultural Rights (Convenção Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais) são também membros das instituições Bretton Woods e OMC (...).”[1]
 
O programa de distribuição de alimentos através da FAO, para as populações mais pobres dos países periféricos, são apenas paliativos, não alcançam a toda população e são cada vez mais reduzidos na amplitude. É até certo ponto irônico que os alimentos distribuídos pelo Programa Alimentar Mundial (PAM) para reduzir a fome de milhões de pessoas --- e cujos fundos são constituídos por doações de vários governos no mundo, são adquiridos junto às grandes empresas multinacionais no mercado de alimentos internacional. E inclusive, as empresas usam desse programa para induzir o consumo de alimentos transgênicos, às vezes ainda proibidos nos países recebedores e/ ou usam de estoques com prazos de vencimento do valor nutritivo em risco. Sua importância é tão limitada, que todo programa mundial do PAM para todos os paises que tem populações famintas e menor em recursos, do que o programa bolsa-família do governo brasileiro!     E se compararmos, os trilhões de dólares gastos pelos governos nos paises do norte com socorros financeiros aos bancos na ultima crise (2008-9), veremos o quanto é ridículo a aplicação de alguns poucos milhões de dólares em ajuda alimentaria ao sul.
 
.Para Mazoyer[2], “(...) a enorme distorção existente no sistema agrícola e alimentar mundial está na base das desigualdades de renda e de desenvolvimento entre os países. Este quadro agrícola, por sua vez, é uma herança histórica, e é uma ilusão pensar que somente o excedente produtivo poderá resolver o problema de falta de alimentos para grande parte da população mundial... A grande maioria destes pobres, mal nutridos, subalimentados e que acabam também morrendo, são pobres que vivem no meio rural e contraditoriamente poderiam produzir seus próprios alimentos.  Desde que iniciaram as campanhas de combate à fome, o número de famintos só tem aumentado e o único fator de redução neste número de famintos é a alta da mortalidade por fome. Isto é uma tragédia”.
 
“A saída requer políticas estruturais corajosas abrigadas sob um novo guarda-chuva de segurança alimentar. Talvez esse seja o pior momento da crise para as populações mais vulneráveis do planeta. O agito das apostas na antessala da recuperação (financeira mundial – HMC) significa também o ponto máximo das privações na vida de populações marcadas por carências elementares e um adicional de fome e de famintos no mundo. Não por acaso, as últimas estimativas da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) indicam que a humanidade pela primeira vez na sua história ultrapassou a triste barreira de um bilhão de pessoas subnutridas: em pleno Século XXI, um de cada seis habitantes do planeta passa fome! (...) Nesse fundo do poço não há saída para os países mais pobres sem ajuda internacional: quanto maior a demanda por incentivos fiscais e políticas sociais, menor a disponibilidade de receitas; mais dramática, por conseguinte, a contração da renda e da atividade econômica; maiores os níveis de desemprego e, por conseqüência, mais miséria.”[3]
 
          Tudo leva a crer que em nome da competitividade na produção agropecuária e florestal nos mercados mundiais, as grandes empresas transnacionais e não os governos nacionais é que deverão definir e implementar as macropolíticas estratégicas de abastecimento alimentar em todo o mundo. Não apenas controlando as cadeias alimentares mais importantes, seja do ponto de vista dos volumes negociados, como também dos produtos de interesse da agroindustrialização e da padronização dos alimentos em todo mundo, como controlando internamente em dezenas de países os principais produtos tanto no comércio por atacado como no varejo, através das cadeias multinacionais de supermercados.
 
Vejam só, Paul Conway, vice-presidente sênior da Cargill e responsável pelas iniciativas dessa empresa em segurança alimentar, afirmou[4] que “a promoção de um sistema de comércio livre e aberto, segundo o qual os países possam produzir aquilo em que forem mais capazes (...) e excedentes que possam ser transacionados através da fronteiras internacionais, é a atitude mais correta a tomar (...). Nem todos os países podem ser auto-suficientes por si sós em todos os gêneros alimentícios básicos... O mundo todo ficou muito sossegado sobre a segurança alimentar e, com certeza, provavelmente ficou indevidamente complacente". O alerta emitido pela maior ‘trader’ de commodities agrícolas do mundo ocorreu às vésperas da Cúpula Mundial sobre Segurança Alimentar da ONU (novembro 2009 - HMC), em Roma, a primeira desde 2002. O encontro de cúpula foi provocado pela forte alta no preço dos gêneros básicos, como arroz e trigo, que no ano passado atingiram picos recordes, desencadeando distúrbios por alimentos do Bangladesh ao Haití.
 
Essas macropolíticas alimentares mundiais já estão sendo parcialmente consolidadas, considerando-se que “(...) as maiores empresas alimentícias do mundo (Nestlé, Monsanto, Bungue, Dreyfuss,  Kraft Foods, Pepsi-cola, Coca-Cola, Unilever, Tyson Foods, Cargill, Marte, ADM, Danone) controlam 26% do mercado mundial, e 100 cadeias de vendas diretas ao consumidor controlam 40% do mercado global (...) Resumindo, uma absurda minoria de empresas e uns quantos multimilionários que possuem as suas ações, controlam enormes percentagens dos alimentos,  agroindústrias e dos mercados básicos para a sobrevivência, como os da alimentação e da saúde. Isso permite uma pesada ingerência sobre as políticas nacionais e internacionais, moldando à sua conveniência as regulações e os modelos de produção e consumo que se aplicam nos países...”[5]. Não é em vão que a escassez de estoques de alimentos de 2007 e 2008, a mais grave em 30 anos, deflagrou distúrbios em vários países e ajudou a precipitar a queda de governos.[6]
 
A artificialização da agricultura pelo crescente uso de insumos de origem industrial, a agroindustrialização dos alimentos, a padronização mundial dos hábitos alimentares da população e a manipulação industrial para a oferta de alimentos com sabores, odores e aparências similares aos naturais, aliados ao aumento da oligopolização dos controles corporativos das cadeias produtivas alimentares, nos indica, entre outros fatores, que inversamente à construção de uma soberania alimentar, se caminha uma tirania da dieta alimentar, homogeneizada e manipulada, em busca apenas de altos lucros para as grandes corporações agroindustriais. Sendo provável que até 2050 a população mundial aumente de dos atuais 6,3 bilhões para mais de 9 bilhões, tudo leva a crer que a produção agrícola precisará crescer em 70% na oferta de alimentos para sobrevivência da humanidade, segundo o Fundo Internacional para Desenvolvimento da Agricultura. Ora essa perspectiva coloca em aberto a expansão do agronegócio internacional. Daí que a busca pela apropriação de terras agricultáveis no Brasil não apenas compromete os biomas no país como fazem do seu povo, em particular os camponeses, povos indígenas, ribeirinhos, quilombolas e extrativistas, meros objetos a serem descartados de seus territórios para darem lugar ao interesses de lucro do agronegócio.
O mesmo vem sucedendo com a situação rural de outros paises latino-americanos e com os povos rurais da África e Ásia. “Segundo a FAO, a savana africana cobre 25 países e teria capacidade de ser um novo centro de produção de grãos e alimentos no mundo mais produtivo que o Cerrado brasileiro. Hoje, apenas 10% da área de cerca de 400 milhões de hectares que vai do Senegal à África do Sul é utilizada. Para FAO e Banco Mundial, os investimentos noCerrado brasileiro nos anos 80 colocaram o Brasil como um dos principais fornecedores de alimentos no mundo, ameaçando a posição americana em algumas áreas como soja (...) Apesar dos desafios, a FAO estima que a África esteja em posição mais vantajosa hoje que o Brasil tinha nos anos 70 e 80 para receber investimentos. Uma série de governos árabes tem adquirido terras no Sudão, Uganda e outros países para investir na agricultura, embora a maioria dessas iniciativas tenha como objetivo apenas de exportação. A China também partiu em busca de terras na África para garantir seu próprio abastecimento (...) O continente (africano) conta com terras e interesse estrangeiro. Mas, segundo a FAO, o perigo é de que novos projetos árabes e chineses acabem se transformando em uma nova onda de "colonialismo".[7]
            Esse avanço sobre as terras dos paises em desenvolvimento pelos capitais estrangeiros para a produção de commodities compromete os biomas e afeta o meio ambiente, além da profunda desarticulação social e cultural que provocam. “Um novo estudo, liderado por Holly Gibbs da Universidade de Stanford, concluiu que nas décadas de 1980 e 1990 mais de 55% das novas terras agrícolas foram resultantes da eliminação de florestas naturais e outros 28% de florestas já exploradas.”[8] Essas apropriações das terras africanas pelo capital (‘revolução verde burguesa’ em curso atual na África) e nas terras latino-americanas que se concretizam há décadas (‘revolução verde burguesa’ da década de 1970 na América Latina e Ásia) têm seguidamente desestruturado as organizações sociais e culturais dos povos originários, gerando em contrapartida novas formas de organização e movimentos sociais desses povos e um novo conceito de soberania alimentar no âmbito dos Estados Plurinacionais Comunitários.[9]
 
            Estamos assistindo, também, a uma ofensiva do capital internacional sobre recursos naturais e terras disponíveis no hemisfério sul, para produção de energia, nos chamados agrocombustíveis, que podem ser usados nos veículos individuais, sozinhos ou mesclados com a gasolina e o óleo diesel. Evidentemente que isso afetará a produção de alimentos, pela utilização de terras férteis para o monocultivo de plantas agroenergéticas como a cana-de-açúcar, soja, palma africana, etc. Esse processo ademais contribui para a elevação dos preços dos alimentos, pois os preços da produção de agrocombustíveis estão relacionados com os preços internacionais do petróleo, e elevam a media da renda da terra e dos preços médios de todos os produtos agrícolas. E finalmente, a ampliação de áreas de agricultura baseadas em grande escalas de monocultivos com uso intensivo de venenos agrícolas, afetam o equilíbrio do meio ambiente, destroem a biodiversidade, afetam o nível das águas, e por conseqüência a médio prazo trarão conseqüências danosas a toda produção agrícola, naquelas regiões.
Essa tendência geral pelo controle oligopolizado mundial da produção, processamento e distribuição de alimentos tende a sugerir novas formas de colonialismo. Essas estratégias macro políticas sobre o abastecimento alimentar ditadas pelas empresas transnacionais segue no sentido inverso de qualquer consideração e proposta de soberania alimentar. A agricultura brasileira está seguindo nesse caminho, apesar dos programas governamentais que visam  compensar os distúrbios na oferta de alimentos provocados pelos mercados oligopolizados. Não é em demasia assinalar, conforme observou Peter Rosset em 2008, que as mesmas empresas transnacionais que controlam os mercados de grãos no Brasil fazem com que "61% de todos os contratos futuros de grãos nos EUA sejam adquiridos por fundos (de risco) multimercados (...) Esses fundos têm ‘descoberto’ o ‘commodities trading’ [comércio de bens] como resultado do colapso do verdadeiro mercado estatal nos EUA, e estão em busca desesperada de novas áreas de investimentos. Eles vivem da volatibilidade nos preços, tirando seus lucros das oscilações tanto para altas como para quedas, e estão atualmente inflando a ‘bolha’ das commodities, que está deixando a alimentação fora do alcance das pessoas pobres por todo o mundo".[10]
Outro exemplo grotesco da especulação financeira buscando lucro fácil e virtual, com o comércio de papéis de commodities agrícolas é dado pelo banco ABN Amro. O gigante financeiro ABN Amro é particularmente adepto de obter lucro no atual mercado. Como provedor de produtos de investimento em commodities para investidores privados, o ABN Amro se tornou a partir de março(2008) o primeiro banco a oferecer certificados que permitem aos pequenos investidores apostarem na alta dos preços do arroz na Bolsa de Futuros de Chicago. O departamento de marketing do banco reagiu com precisão fria às manchetes sobre a fome ao redor do mundo. Quando especialistas alertaram sobre a crise de fome iminente e a instabilidade política associada a ela, o ABN Amro apresentou uma nova campanha publicitária em seu site. Com a proibição pela Índia da exportação de arroz, dizia o anúncio, a oferta mundial de arroz caiu ao mínimo: agora o ABN Amro está possibilitando, pela primeira vez, investir no alimento básico mais importante da Ásia”.[11]
O modelo de produção e tecnológico praticado pelo agronegócio no Brasil e em muitos países, ao buscar o controle da oferta dos produtos alimentares e dos sistemas agrícolas, com elevada predisposição para a permissividade na presença do capital estrangeiro através de acordos e fusões agroindustriais entre empresas nacionais e estrangeiras, inclusive para a apropriação de terras, prejudica as iniciativas favoráveis  à soberania alimentar nacional. Impõem condições concretas para que o abastecimento alimentar brasileiro fique subordinado ao mercado internacional sob o controle das grandes empresas privadas. Isso já resultou na eliminação dos estoques estratégicos governamentais nacionais a partir das pressões da Organização Mundial do Comércio – OMC em nome do livre comércio mundial e da distorsões mercantis que esses estoques poderiam provocar. Isso levou a que no passado os governos com vocação neoliberal tenham inclusive eliminado, e privatizado as redes publicas de armazenagem, no Brasil e em todo mundo. Deixaram assim a oferta de alimentos à mercê dos interesses das grandes empresas.
 Em 2005 Chonchol[12], num estudo sobre a soberania alimentar na América Latina, ponderava que “(...) no âmbito das relações entre agricultores e grandes empresas ligadas ao setor ( agroquímicos, sementes, agroindústrias alimentares ou de cadeia de supermercados), também se observa no período (1980-2000 – HMC) que se seguiu às reformas e no contexto da globalização, um aumento do poder de pressão dessas empresas – a maioria transnacionais – sobre os agricultores. Por trás dessa pressão crescente observa-se um processo intenso de fusões e aquisições entre os grandes grupos transnacionais (produtores de sementes, agroquímicos e alimentos, empresas biotecnológicas, grandes cadeias internacionais de supermercados etc.). Tais processos estão proporcionando uma modificação na estrutura do mercado dessas indústrias, com uma forte tendência para a concentração e a internacionalização da produção, inclusive das decisões produtivas concernentes à agricultura dos países latino-americanos[13]. Tudo isso ligado ao enfraquecimento do papel dos estados nacionais na formulação e aplicação das políticas setoriais para a agricultura, é o que está conduzindo ao desaparecimento da soberania alimentar dos diversos países, junto com uma intensificação das diferenças entre as regiões mais desenvolvidas e as mais pobres.”
 
Mas a humanidade tem sobrevivido aos sucessivos modelos concentradores de bens e de riquezas, que alteraram os preceitos equilibrados de produção para o sustento, substituindo-os por negociações de lucro, entre cujas conseqüências está a fome, que atinge agora 925 milhões de pessoas. Cerca de 40 países enfrentam um estado de emergência alimentícia permanente e, nos países em desenvolvimento, uma em cada seis pessoas padece de desnutrição[14], a ponto de, a cada 3,6 segundos, alguém, geralmente uma menina, morrer de inanição. Enquanto isso, alguns países registram excedentes alimentares e excessos no consumo.
 
Com uma cifra de negócios de cerca de 3,5 trilhões de dólares, o comércio dos alimentos processados é, atualmente, um dos filões mais rentáveis que existem; mas a clientela para comprá-los não é universal, pois mais de um bilhão de pessoas vive com uma renda de um dólar ou menos por dia e 2,7 bilhões com menos de dois; três quintas partes da população nos 61 países mais pobres recebem 6% da renda mundial[15]. Isto mostra a irracionalidade da perspectiva comercial para encarar a questão, pois as diferenças estruturais inerentes ao capitalismo e a ausência de uma distribuição justa dos recursos alimentícios aparecem, de todos os pontos de vista, como os alicerces sobre os quais se ergue a crise alimentar que afeta o mundo.
 
            A padronização dos alimentos pelas empresas transnacionais afetam diretamente os hábitos alimentares e as práticas domésticas que as populações tinham, de prover seus próprios alimentos, baseados nos biomas aonde vivem e na sua cultura alimentar centenária. Para que se tenha uma idéia, as hortas domésticas nos paises periféricos e agrários, “...são, muitas vezes, verdadeiros laboratórios experimentais informais, onde elas transferem, favorecem e cuidam das espécies autóctones, experimentando-as a fundo e adotando-as para obter produtos específicos e se possível variados, que estão em condições de produzir. Um estudo recente realizado na Ásia mostrou que 60 hortas de um mesmo povoado continham cerca de 230 espécies vegetais diferentes. A diversidade de cada horta era de 15 a 60 espécies”[16]. Na Índia “as mulheres utilizam 150 espécies diferentes de plantas para a alimentação humana e animal e para os cuidados com a saúde. Em Bengala ocidental, há 124 espécies de "pragas" colhidas nos arrozais que têm importância econômica para as agricultoras. Na região de Veracruz, no México, as camponesas utilizam cerca de 435 espécies de flora e fauna silvestres, das quais 229 são comestíveis”[17]. Essa biodiversidade está relacionada com os padrões alimentares e com práticas de medicina preventiva. Pois alem de um alimento saudável, local, os condimentos utilizados servem também como medicinas naturais preventivas e garantidores da saúde da população. 
           
Tudo isso esta sendo destruído pela sanha do capital internacional. E se transforma em mais pobreza, migrações das populações e fome.
 
2.     Soberania alimentar: conceitos e trajetória
 
Houve nas últimas décadas uma evolução positiva sobre os termos e conceitos utilizados para analisar o problema da fome e da desnutrição.   Durante a maior parte do século XX o assunto era tratado como um problema social decorrente de fenômenos naturais. Foi a obra de Josué de Castro, em “Geografia da fome” traduzida para mais de 40 idiomas, que consolidou o conceito de que a fome era um problema social, resultante da forma de organização social da produção e distribuição dos alimentos. E sua contribuição teórica foi tão importante, que as Nações Unidas lhe concederam o cargo de primeiro secretario Geral da FAO, na década de 1950.
 
Posteriormente, na década de 1990 avançou-se para o conceito de segurança alimentar. Esse conceito foi construído pelos governos ao redor da FAO, com o intuito de que nos marcos dos direitos humanos, todas as pessoas tivessem direito assegurado a alimentação, e caberia aos governos o dever de implementar políticas públicas, que garantissem o acesso aos alimentos. Assim, todas as pessoas teriam a “segurança” da sobrevivência. Teriam a segurança garantida pelos governos de que ofertariam os alimentos necessários para sua sobrevivência.
 
Esse passo foi importante, porque se constituiu numa política publica, de obrigação de todos os governos de resolver o problema da fome de sua população. Porem foi insuficiente.
 
E mais recentemente surgiu então, um novo conceito da soberania alimentar. O conceito foi introduzido em 1996 pela Via Campesina, no contexto da Cúpula Mundial sobre a Alimentação (CMA) realizada em Roma pela FAO. O debate oficial girava em torno da noção de segurança alimentar, reafirmando-a como “o direito de toda pessoa a ter acesso a alimentos sadios e nutritivos, em consonância com o direito a uma alimentação apropriada e com o direito fundamental de não passar fome”. No entanto, as organizações camponesas e em especial as delegadas mulheres, presentes no Fórum paralelo à Cúpula, foram críticas em relação aos termos utilizados na discussão dos governos, que em consonância com a hegemonia do neoliberalismo e o surgimento da OMC na década de 1990, ajustaram a definição de segurança alimentar tentando assegurar esse direito à alimentação através da liberalização do comércio de alimentos, abrindo caminho para fazer da alimentação um grande e lucrativo negócio (para as empresas transnacionais, para a indústria química, para o fast food, entre outras).
 
As organizações camponesas contrapuseram então ao conceito de segurança alimentar o de Soberania Alimentar. Partindo de um principio prévio ao conceito de soberania alimentar, o de que “o alimento não é uma mercadoria, é um direito humano”[18],  e a produção e distribuição dos alimentos é uma questão de sobrevivência dos seres humanos, portanto, é uma questão de soberania popular e nacional. Assim, soberania significa que alem de ter acesso aos alimentos, o povo, as populações de cada país, tem o direito de produzi-los. E será isso que lhes garantirá a soberania sobre suas existências. O controle da produção dos seus próprios alimentos é fundamental para que as populações tenham garantia de acessá-los durante todo ano. Tenham a garantia de que esses alimentos estão adequados ao seu bioma onde vivem, às suas necessidades nutricionais e aos seus hábitos alimentares. O alimento é a energia que necessitamos para a sobrevivência, de acordo com o meio ambiente aonde as pessoas vivem e se reproduzem socialmente.
 
Daí se evoluiu para o conceito de que soberania alimentar significa que cada comunidade, cada município, cada região, cada povo, tem o direito e o dever de produzir seus próprios alimentos. Por mais dificuldades naturais que houver, em qualquer parte do nosso planeta, as pessoas podem sobreviver e se reproduzir dignamente. Já existe conhecimento cientifico acumulado, para enfrentar as dificuldades naturais e garantir a produção de bens suficientes para sua reprodução social.
 
E se a produção e distribuição de alimentos fazem parte da soberania de um povo, ele é inegociável e não pode ficar dependente de vontades políticas ou praticas de governos de outros paises. Como advertia Jose Martí, já no início do século XX, em relação a dependência da América Latina face aos capitais estrangeiros: “Um povo que não consegue produzir seus próprios alimentos, é um povo escravo. Escravo e dependente do outro país que lhe fornecer as condições de sobrevivência!”
 
Este novo e transgressor conceito representa uma ruptura com relação à organização dos mercados agrícolas imposta pelas empresas transnacionais e governos neoliberais no seio das negociações da OMC e da FAO, cujas orientações políticas já tinham violado as normas protecionistas para a agricultura familiar, implementadas por alguns governos nacionalistas e populares, mediante impostos sobre as importações baratas de alimentos, favorecendo o preço de alimentos nacionais, outorgando faixas de preços --- e mantendo os poderes dos compradores públicos[19].
 
             A utopia de uma soberania alimentar, concepção fundamental para se fortalecer a visão de mundo favorável a uma democratização econômica, social, étnica e de gênero contra-hegemônica à neoliberal, teve mais tarde, um complemento essencial na conferencia mundial de soberania alimentar realizada em Mali (2007) na Declaração de Nyéléni[20] quando se afirmou que: “A soberania é o direito dos povos a alimentos nutritivos e culturalmente adequados, acessíveis, produzidos de forma sustentável e ecológica, e seu direito de decidir seu próprio sistema alimentar e produtivo. Isso coloca aqueles que produzem, distribuem e consumem alimentos no coração dos sistemas e políticas alimentares, acima das exigências dos mercados e das empresas. Defende os interesses, e as inclui, para as gerações futuras. Nos oferece uma estratégia para resistir e desmantelar o comércio livre e corporativo e o regime alimentício atual e para processar os sistemas alimentares, agrícolas, pecuários e de pesca para que sejam gerenciados pelos produtores e produtoras locais. A soberania alimentar dá prioridade para as economias locais e aos mercados locais e nacionais, e outorga o poder aos camponeses e à agricultura familiar, à pesca artesanal e ao pastoreio tradicional. Coloca a produção alimentar, a distribuição e o consumo sobre a base da   sustentabilidade ambiental, social e econômica. A soberania alimentar promove o comércio transparente que garante renda digna para todos os povos, e os direitos dos consumidores para controlar sua própria alimentação e nutrição. Garante que os direitos de acesso e gestão de nossa terra, de nossos territórios, de nossas águas, de nossas sementes, de nosso gado e da biodiversidade nas mãos daqueles que produzem os alimentos. A soberania alimentar supõe novas relações sociais livres da opressão e desigualdades entre os homens e mulheres, povos, grupos raciais, classes sociais e gerações.”
 
Sendo a soberania alimentar uma concepção que se constrói a partir da soberania popular, é absolutamente incompatível qualquer estratégia que ensaie tornar os interesses privados de lucro sobrepostos aos interesses da população. E aonde houver uma crescente redução da presença do Estado, nas definições e nos controles estratégicos da produção, processamento e distribuição dos alimentos básicos, e com o fortalecimento pelas políticas das grandes empresas nacionais e transnacionais do agronegócio, tudo leva a crer que essa condição coloca em risco a possibilidade da própria segurança alimentar, pois submete a lógica de abastecimento aos interesses das empresas que controlam os mercados nacionais e internacionais. E isso coloca em risco a própria produção soberana de alimentos, praticado pelos camponeses, pequenos e médios agricultores e na autonomia que as regiões sempre tiveram na produção de alimentos.
 
As organizações sociais e camponesas que cunharam o termo “Soberania Alimentar” enfatizam a idéia de ele ser mais do que um conceito. Trata-se de um princípio e de uma ética de vida que não responde a uma definição acadêmica, mas emerge de um processo coletivo de construção, participativo, popular e progressivo e foi se enriquecendo quanto a seus conteúdos como resultado de um conjunto de debates e discussões políticas iniciadas no próprio processo de conformação da instância que abriga as organizações camponesas críticas das atuais políticas agrárias liberalizadoras e de alimentação. A Via Campesina, fundada em 1992, e a sua instância latinoamericana, a CLOC, constituída em 1994, são as principais organizações interessadas na defesa deste princípio[21].  A conferencia de Mali consolidou também uma grande aliança com outros movimentos sociais de pescadores, pastores,   mulheres do campo e da cidade, consumidores, ambientalistas, nutricionistas, pesquisadores, cientistas, movimentos de saúde pública e com governos progressistas que construíram coletivamente esse novo entendimento de soberania alimentar.
 
Nos diversos documentos e declarações elaboradas coletivamente, o conceito então de Soberania Alimentar foi agregando o conjunto de direitos dos povos de definir suas próprias políticas de agricultura e de alimentação, o que inclui proteger o meio ambiente e os recursos naturais, regulamentar a produção agropecuária e o comércio agrícola interno para o desenvolvimento sustentável, proteger os mercados locais e nacionais contra as importações e limitar o dumping social e econômico de produtos nos mercados. Materializa-se no direito de decidir como organizar o que produzir e como plantar, como organizar a distribuição e consumo de alimentos, de acordo com as necessidades das comunidades, em quantidade e qualidade suficientes, priorizando produtos locais e variedades nativas (CLOC: 2010: 23 - 25). Para Francisca Rodríguez (Anamuri - organização campesina Chilena) trata-se “ não só de um princípio, de um direito ao alimento, mas de uma ética de vida, de uma maneira de ver o mundo e de construí-lo em bases de justiça e de igualdade”.
 
Mais recentemente, na Conferência dos Povos sobre Mudanças Climáticas realizada em Cochabamba, em abril de 2010, foi ratificado que Soberania Alimentar refere-se ao direito dos povos a controlar suas próprias sementes, terras e água, garantindo, por meio de uma produção local e culturalmente apropriada, o acesso dos povos a alimentos suficientes, variados e nutritivos em complementação com a Mãe Terra e aprofundando a produção autônoma, participativa, comunitária e compartilhada de cada nação e povo. Nesta proposta foram reafirmadas novas visões e conceituações baseadas no pensamento do "Bom Viver", ou Bem Viver, o Sumak Kawsay, conceito que nasce da herança ancestral andina, latino-americana, como alternativa que vem se tecendo a partir das organizações populares de base.   E ao mesmo tempo está em consonância, com os direitos dos povos de controle de seus territórios, seus recursos naturais, de sua fertilidade, de sua reprodução social e da integração entre as etnias e povos de acordo com interesses comuns e não apenas determinado pelo comercio e o lucro. E há também uma influencia na construção do conceito, da visão feminina do mundo, a partir da fertilidade e da reprodução social da humanidade em condições igualitárias e justas..
 
As declarações e acordos construídos nos fóruns, seminários, conferencias nacionais, mundiais, com a participação da maior parte das instituições da sociedade civil, de movimentos camponeses,de mulheres e de alguns setores governamentais sobre a soberania alimentar, ainda não tem tido, infelizmente, ressonância pratica, transformadas em políticas públicas na maioria dos governos e nos organismos internacionais.
 
3.     O caso brasileiro
 
            A sociedade brasileira padece ainda desse grave problema estrutural, do seu modo de produção e organização social, que não consegue garantir soberania alimentar ao seu povo. Durante muitos anos, as estatísticas revelavam que mais de 50 milhões de brasileiros passavam fome todos os dias. Essa situação trágica se resolveu parcialmente com o programa da bolsa-família, que atende a mais de 11 milhões de famílias.    Mas as causas do problema não foram afetadas e, portanto, persiste a gravidade. As estatísticas revelam  que ainda há ao redor de 60 milhões de brasileiros que não se alimentam adequadamente, ainda que não sintam fome endêmica.
     
As causas dessa situação estão amplamente analisadas em muitos estudos, ensaios e pesquisas em nossa academia, nos jornais e nas instituições públicas. E este livro representa uma boa amostra dessas reflexões. Poderíamos sintetizar quea estrutura injusta e desigual da riqueza produzida e concentrada ao longo dos 500 anos de capitalismo, produziu uma sociedade extremamente desigual, em que 5% da população controla a ampla maioria do patrimônio de riqueza acumulada; na injusta distribuição anual da renda produzida que destina a maior parte para o capital e a menor parte para os trabalhadores; na injusta propriedade dos bens da natureza, em especial da terra, em que apenas um por cento dos grandes proprietários detém mais de 46% de todas as terras; e na constatação de que empresas capitalistas, sediadas nas cidades com foco em outras atividades produtivas, controlam mais de 170 milhões de hectares de terra. E, mais ainda, que o capital estrangeiro já se apropriou de mais de 40 milhões de hectares, segundo estimativas conservadoras.     
 
São muito diversos os fatores que impedem efetivamente a concretização da soberania alimentar no Brasil, sendo o mais importante o modelo de produção e tecnológico neoliberal da agricultura e da agroindustrialização implantado há décadas no país. Nesse sentido é bem elucidativa a posição sobre o tema, da Declaração de Brasília[22]: “Afirmamos que a fome e a pobreza não são produtos da casualidade, senão de um modelo que viola o direito à vida digna das pessoas e dos povos, acrescentando a subordinação da mulher, explorando seu trabalho e inviabilizando sua contribuição social, econômica e cultural. Apesar das evidências em todo o mundo dos nefastos efeitos do modelo neoliberal, o sistema internacional, os governos e as transnacionais insistem em submeter o planeta a um desenvolvimento que esgota as possibilidades mesmas da vida, convertendo as pessoas em meros agentes produtivos, sem rosto e sem história. A liberalização econômica, como único caminho para o desenvolvimento, é diretamente proporcional ao crescimento da pobreza e da fome na região; o não exercício da soberania alimentar compromete gravemente a soberania dos próprios Estados.”
 
A concentração da propriedade da terra no Brasil ao alcançar 0,857 segundo o índice de Gini, de acordo com os dados do Censo Agropecuário de 2006, superior ao índice de concentração da década de 1920; a histórica presença quase intocada de 178 milhões de hectares em regime de pastagens, dos quais cerca de um terço se encontra em situação de degradação dos solos; o acentuado crescimento dos plantios de sementes transgênicas, seja para o cultivo de grãos seja para as hortaliças, entre diversos outros cultivos; a desagregação do campesinato pela pressão social e física devida à ampliação dos latifúndios modernos por exploração de monocultivo de soja, cana de açúcar, milho, eucalipto, entre outros cultivos, nos dá uma amostra de que o acesso à terra pelos camponeses e o fortalecimento dos mercados locais, conforme sugere a Declaração de Nyéléni, é uma quimera, assim como a possibilidade de que a soberania alimentar se torne um direito dos povos a alimentos nutritivos e culturalmente adequados.
 
A redução drástica do papel do Estado nesse setor desde a década de 1990, ainda que alguns organismos e programas permaneçam e outros tenham sido criados e sejam da maior relevância como exemplos a CONAB, PRONAF, o direito a merenda escolar abastecida por produtos da agricultura familiar, o que se constata é a ampliação do controle das empresas e do capital sobre os mercados de alimentos operando com baixa ou escassa regulamentação.
 
Destaca-se  também como práticas anti-soberania alimentar o crescente controle que as empresas exercem na propriedade privada das sementes, através da imposição de sementes transgênicas. A produção e o direito universal sobre as sementes, como patrimônio coletivo da humanidade, são a base da soberania alimentar do povo.
 
Por outro lado o modo de produção do agronegócio, baseado na monocultura e na ampliação permanente da escala em busca de taxas de lucros cada vez maiores, impõe o uso permanente e cada vez maior de venenos agrícolas. O Brasil se transformou no maior consumidor mundial de agrotóxicos, consumindo na safra de 2009/10, nada menos do que um bilhão de litros de venenos. Uma media de 6 litros por pessoas, e ou 150 litros por hectare cultivado com lavouras. Isso é uma verdadeira tragédia. Pois nossa população esta sendo abastecida com alimentos cada vez mais contaminados. E nossa natureza vem sendo agredida a cada ano, perdendo sua biodiversidade, seu equilíbrio climático e afetando também a qualidade da água e do ar que respiramos todos.
 
Assim, as políticas em curso de segurança alimentar são importantes, porem insuficientes para atacar a raiz do problema.   Os programas governamentais compensatórios como o ‘Bolsa-família’, entre diversos outros similares que contribuem para a redução da insegurança alimentar de milhões de pessoas em situação de pobreza, tendem a serem confundidos com políticas de soberania alimentar quando de fato, pelo seu caráter conjuntural, possam ser considerados como ações emergenciais de minimização da insegurança alimentar devido à pobreza extremada.
 
            A tendência da lógica dominante do capital  no Brasil é atribuir o abastecimento alimentar da população, amplo senso, aos interesses comerciais das grandes empresas nacionais e transnacionais do setor alimentar. Isso significa submeter uma dimensão da soberania nacional aos interesses do lucro e das vontades privadas, ambos supostamente regidos pelos mercados oligopolizados. Ora, essa perspectiva contradiz historicamente o próprio conceito de soberania nacional que tem na Nação soberana sua referência fundamental. E por maior e mais intensa que a práxis liberal implantada, não é o interesse privado que deve reger o público no âmbito da afirmação de uma soberania, mesmo restrita como a alimentar.
 
Mesmo as conclusões da III Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - III CNSAN, realizada em Fortaleza, 2007, foram enfáticas e reafirmaram que o objetivo da segurança alimentar e nutricional implica uma concepção de desenvolvimento sócio-econômico que questiona os componentes do modelo hegemônico no Brasil que são geradores de desigualdade, pobreza e fome e com impactos negativos sobre o meio ambiente e a saúde.[23]
           
4. Políticas estruturantes para alcançar a soberania alimentar
 
 As hipóteses para a construção de uma soberania alimentar no Brasil, no âmbito mais geral de afirmação da soberania popular, necessitariam de reformas estruturais no meio rural e no atual modelo de produção agrícola do país. Entre elas se destacariam, como essenciais:
 
a)       Uma  reforma agrária ampla e massiva que a democratize a posse e uso da terra, tendo como conseqüências a garantia de acesso a 4 milhões de famílias de trabalhadores que querem produzir na agricultura.   Para isso é preciso desapropriar os maiores latifúndios, sobretudo os de propriedade do capital estrangeiro e de empresas não agrícolas, bancos etc.
b)       Mudar o atual modelo de produção e  de tecnologia agrícola dominante para uma outra concepção de produção de alimentos saudáveis, baseados na agroecologia, agricultura ecológica, orgânica e outros caminhos que garantam produção e oferta abundante em todos os locais, regional e a nível nacional.
c)       Limitar o tamanho máximo da propriedade e posse da terra; e garantir o princípio do interesse de toda sociedade sobre os bens da natureza, água, e biodiversidade.
d)       Reformular o papel do Estado para que ele ordene o processo de soberania alimentar, garantindo a sua produção e distribuição em todas as regiões do país.
e)       Controle direto do governo sobre o comércio exterior (importação/exportação) de alimentos e sobre as taxas de juros e de câmbio.
f)        Implementar um amplo programa de pequenas e medias agroindústrias instaladas em todos os municípios do país, na forma cooperativa.
g)       Garantir estoques reguladores de alimentos saudáveis, por parte do governo, para garantia de acesso a toda população.
h)       Desenvolvimento de um novo modelo econômico, baseado na ampla distribuição de renda, na garantia de emprego e renda para toda população; na universalização da educação e na implementação de uma indústria nacional voltada para o mercado interno.
i)         O conhecimento e plena liberdade para intercambiar e melhorar sementes é um componente fundamental da Soberania Alimentar, porque sua existência em diversidade permite assegurar a abundância alimentar, servir de base a uma nutrição adequada e variada, e desenvolver formas culinárias culturalmente próprias e desejadas. As sementes são o início e o fim dos ciclos de produção camponesa, são criação coletiva que reflete a história dos povos e de suas mulheres, as quais foram suas criadoras e principais guardiãs e aperfeiçoadoras. Seu desaparecimento leva ao desaparecimento das culturas dos povos do campo e de comunidades. Como não são apropriáveis, devem manter seu caráter de patrimônio coletivo[24].
j)        Impedir o uso e fomento de sementes transgênicas. Elas representam a propriedade privada da vida, da possibilidade da livre reprodução, e acima de tudo representam a destruição de toda biodiversidade, pois elas não conseguem se reproduzir sem contaminação de todas as demais sementes. Alem de pesar dúvidas e a falta de pesquisa sobre suas conseqüências para a saúde animal e humana.
l)   O direito dos povos e de todo povo brasileiro a consumir de acordo com fatores culturais, éticos, religiosos, estéticos, de qualidade alimentícia, que implica alimentos sadios, acessíveis e culturalmente apropriados (CLOC: 2010: 23),  é condição sine qua non para alcançarmos a soberania alimentar verdadeira.
 
- Horacio Martins de Carvalho é agrônomo e consultor da Via Campesina, João Pedro Stédile, economista e membro da Coordenação Nacional do MST e da Via Campesina Brasil
 
Extraído do livro Brasil. Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Fome Zero: Uma história Brasileira. Brasília, DF, Assessoria Fome Zero, 3 vol., vol. 3 pp. 144 a 156.


[1] Jean Ziegler (2009). Aqueles que violam o direito a nutrição. Arquivo 3 p.
[2]Marcel Mazoyer, entrevista concedida à Débora Prado (2010), in Segurança alimentar é o grande desafio do século XXI. São Paulo, setembro, arquivo 4 p.
[5]Ribeiro, Silvia. Los que se quieren comer el mundo: corporaciones 2008. Boletim ALAI, 05 de janeiro 2009.
[6] Javier Blas, Courtney Weaver e Simon Mundy (2020). Cresce o temor por oferta de alimentos. Reportagem publicado no Financial Times e reproduzida pelo jornal Valor,  em 3 de setembro 2020.
[7]Jamil Chade. Embrapa quer exportar alimento produzido na África. Reportagem in O Estado deS. Paulo, 23/06/2009.
[8] Fernanda B. Muller (2010). Maior parte da expansão agrícola ocorreu às custas das florestas tropicais, in CarbonoBrasil, Mercado Ético, 03 de setembro de 2010. http://mercadoetico.terra.com.br/arquivo/maior-parte-da-expansao-agricol...
[9] Ver CAOI (2008). Estados Plurinacionales Comunitários. Para que otros mundos sean posibles.Lima, CAOI.
[10] Cf. Patricia Fachi, in A Crise Alimentar: Discussão com Peter Rosset. Entrevista com Peter Rosset em 19/05/2008. Página da UNISINOS.
[11]Beat Balzli e Frank Hornig. O papel dos especuladores na crise global de alimentos. Extraído da revista alemã Der Spiegel de 24.04.08, via AEPET
[12]Jacques Chonchol.  A soberania alimentar, in Estudos Avançados. vol. 19  nº. 55, São Paulo, Sept./Dec. 2005. Dossiê América Latina, p. 17.
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103- 0142005000300003&script=sci_arttext&tlng=en#back1
[13]Desarrollo Rural en América Latina y El Caribe, Cepal, 2001, p. 83; citado por Chonchol, op. cit.
[15]Fast facts: The face of poverity, Millenium Project, United Nations, 2001
[16] Sally Bunning and Catherine Hill, Farmemrs' Rights in the Conservation and Use of Plant Genetic Resources: Who are the Farmers?, Women in Development Service (SDWW) FAO Women and Population Division, www.fao.org.
[17]Vandana Shiva,“A masculinização da agricultura: Monocultura, monopólios e mitos”, outubro de 1998, www.grain.org/sp/publications/biodiv172-sp.cfm
 
[18]Entrevista de Camila Montecinos (Pesquisadora do Chile) revista GRAIN, agosto de 2010.
[19] Ibidem
[20]Declaração de NYÉLÉNI. Foro Mundial por la soberania Alimentaria. Nyéléni, Selingue, Malí. 28 de febrero de 2007.
[21]A Via Campesina é um movimento social internacional de camponeses e camponesas, pequenos e médios produtores, mulheres e jovens do campo, indígenas, camponeses sem terra, e trabalhadores agrícolas. É representativo, legítimo e com identidade que vincula as lutas sociais dos cinco continentes. Reúne 148 organizações de 68 países. A CLOC, referência latinoamericana reúne 52 organizações de 20 países. www.viacampesina.cl. Reconhece-se que ativistas e profissionais de organizações não governamentais nacionais e internacionais desempenharam um papel relevante na promoção da Soberania Alimentar, como National Family Farm Coalition (FIAM), Land Research Action Network, GRAIN e CET-SUR no Chile, para citar algumas. No caso das organizações do movimento feminista e de mulheres, destaca-se a participação da Marcha Mundial de Mulheres (MMM).
[22]Declaração da Conferencia Especial para la Soberanía Alimentaria, por los Derechos y por la Vida. Brasília, 10 y 13 de abril de 2008. Apoyo del Comité Internacional para la Soberanía Alimentaria - CIP (Coordinación Regional América Latina y el Caribe). Conferência que antecedió a la 30ª Conferencia Regional de la FAO.
[23] Declaração Final da A III Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CNSAN), realizada no Centro de Convenções do município de Fortaleza (CE), nos dias 03 a 06 de Julho de 2007. 06 de Julho de 2007.
[24] Documento Campanha em defesa das sementes da Via Campesina “Sementes, patrimônio dos povos a serviço da humanidade” (sem data).
https://www.alainet.org/pt/active/47654
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