O novo marco latino americano e a política externa do governo brasileiro

10/03/2005
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Uma herança externa maldita Desde o seu início o governo Lula teve na sua política externa um marco diferencial e um marco de clara ruptura com a do governo FHC. Este se caracterizou pela política de maior subordinação que o Brasil já teve aos Estados Unidos, desde os primeiros tempos da ditadura militar. Mesmo neste período, especialmente durante o governo de Ernesto Geisel – pela junção da diversificação dos investimentos estrangeiros no Brasil, assim como pela invocação por parte de Washington de temas de “ direitos humanos” -, houve conflitos e distanciamentos, que primaram pela ausência durante o governo de FHC. As relações cordiais entre os governos FHC e Clinton – presentes já no envio de um assessor de marketing deste para assessorar a campanha tucana, assim como o convite especial para que FHC presenciasse a posse do novo presidente dos EUA - anunciavam uma política de máxima aproximação. O caso Raytheon – de concessão unilateral à empresa norte-americana, que havia participado do financiamento da campanha de Clinton, que triunfou com métodos escusos contra uma concorrente francesa – revelava a que ponto o novo governo do Brasil se submeteria aos desígnios de Washington. Os convites a FHC para as reuniões da então chamada “terceira via”, conduzida por Blair e por Clinton, davam um tom ideológico à adesão brasileira à política do eixo anglo-norte americano em política internacional, em detrimento das alianças na América Latina e no sul do mundo. E de fato, apesar dos conflitos na área comercial, o governo brasileiro subordinou todos os problemas a um apoio às políticas dos EUA, seja no plano político e militar, seja nas áreas comercial e financeira. Mesmo com a saída de Clinton e a ascensão de George Bush, as posições do governo de FHC e de seu ministro de relações exteriores do último período, Celso Lafer, expressaram, total apoio às reações de Washington aos atentados de setembro de 2002. FHC chegou a anunciar que se trataria do “começo da nova guerra mundial”, enquanto Lafer caracterizava a queda das Torres Gêmeas como um acontecimento “mais importante que a queda do Muro de Berlim”, revelando os fetiches de sua preferência mas sobretudo como a adesão acrítica às posições de Washington obnubilava sua capacidade de discernimento sobre o que acontecia no mundo. Na conclusão do balanço da política externa do governo FHC, Luis Alberto Moniz Bandeira, em seu livro “As relações perigosas: Brasil-Estados Unidos (De Collor a Lula, 1990-2004)”, publicado pela Editora Civilização Brasileira no ano passado, afirma: “Para vastos setores tanto das Forças Armadas quanto da sociedade civil, a política externa de Fernando Henrique Cardoso, da mesma forma que a política econômica, afigurou-se , de maneira geral, como simples acessório dos interesses hegemônicos dos Estados Unidos, no mundo e, em especial, na América Latina. As atitudes de Celso Lafer concorreram, fortemente, para consolidar essa percepção e desgastar ainda mais o prestígio do governo, ao projetar a imagem de subserviência aos desígnios dos Estados Unidos, em meio a uma gestão turbulenta como nunca houve na historia do Itamaraty.” (pág. 283) O Brasil, conjuntamente com a América Latina, tiveram seu perfil internacional completamente rebaixado, pela subserviência mencionada a Washington, perdendo peso no plano mundial. O Mercosul ficou reduzido a sua expressão mais baixa, desde sua criação, ainda na década de 80, pela falta total de coordenação das políticas dos dois governos, mas sobretudo pelas políticas liberais, que abriram aceleradamente o continente à penetração do capital estrangeiro, particularmente o capital especulativo. A herança deixada por governantes como FHC, Carlos Menem, Carlos Salinas de Gortari, Carlos Andrés Perez e Alberto Fujimori, havia relegado o continente a uma região sem força política e sem liderança no plano mundial. A reversão de prioridades externas Desde o começo a política exterior do governo Lula buscou diferenciar-se, na forma e no conteúdo, das políticas herdadas do governo anterior. As próprias nomeações de dois embaixadores preteridos e praticamente punidos no governo anterior – o atual Secretário Geral do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães, e o atual embaixador na Grã-Bretanha, José Maurício Bustani – para cargos importantes, no momento mesmo da posse do novo Ministro de Relações Exteriores, Celso Amorim, já denotava a vontade de mudança significativa na política exterior brasileira. Mas não era apenas na atitude que a nova política externa se diferenciaria da anterior. As prioridades mudaram, radicalmente. O Mercosul passou a ocupar um lugar estratégico nessa nova orientação, em detrimento da Alça, ao mesmo tempo que o Sul do mundo passou a ser incluído como campo fundamental de alianças para o novo governo brasileiro. Um novo projeto, de resgate e extensão dos planos de integração, assim como dos países a compor um novo Mercosul, foi formulado a partir do eixo Brasil/Argentina, que via substituir-se a dupla FHC/Menem, pela Lula/Kirchner. Além do avanço na integração comercial, surgiram, entre outras, propostas como as de um Parlamento do Mercosul e de uma moeda comum – claramente tomados da experiência européia. A evolução positiva do quadro latino-americano favoreceu essa nova proposta. Os novos governos na Venezuela, na Bolívia e no Paraguai, foram mais sensíveis que os anteriores, enquanto o Peru também se mostrava receptivo à integração. Este processo pôde também contar, a seu favor, com o esgotamento da euforia da expansão da economia norte-americana, assim como do modelo neoliberal – de que a crise argentina seria a melhor expressão -, e a passagem do governo Clinton para o de Bush – acentuada pela reação deste aos atentados de setembro de 2002. Como resultado, o governo Bush conseguiu dar continuidade à política comercial de Clinton, estendendo acordos bilaterais de livre comércio – conforme a Alca ficaria bloqueada pelo novo quadro, como veremos mais adiante -, assinando acordos com o Chile, o Uruguai, El Salvador, Equador, porém ficou politicamente isolado. O fracasso do seu representante preferido no continente – Vicente Fox, presidente do México -, deixou o governo Bush concentrando seu apoio no continente a Álvaro Uribe, presidente da Colômbia, envolvido em uma interminável situação de guerra interna. No entanto, apesar disso tudo, o Mercosul acabou avançando pouco, ficando bloqueado pelas políticas liberais – especialmente a brasileira -, que não favorecem a integração regional, menos ainda a formulação e posta em prática de um projeto de desenvolvimento regional, que uma verdadeira integração de longo prazo requer. Os conflitos setoriais entre grupos empresariais do Brasil e da Argentina, em 2004, representam bem as dificuldades de compatibilizar interesses corporativos com políticas estatais de integração. A política externa brasileira conseguiu bloquear o início da Alca em janeiro de 2005, diante das diferenças com a posição dos EUA e da rigidez na forma nas relações por parte do governo Bush. No entanto, terminou se avançando pouco no Mercosul. Os avanços mais importantes na integração regional acabaram vindo mais recentemente. O triunfo do governo de Hugo Chavez no referendo interno de agosto de 2005 e a vitória da Frente Ampla nas eleições uruguaias, assim como a atuação do presidente venezuelano no Fórum Social Mundial de Porto Alegre, em janeiro de 2005 e o resultado positivo da reestruturação da dívida argentina, geraram condições novas para o processo de integração regional. As propostas de Hugo Chavez existiam antes – a da Petrosul, a da TV do Sul, entre outras -, mas foi somente quando seu governo resolveu positivamente sua crise interna, foi que elas ganharam força. Logo depois do FSM, Lula assinou acordos históricos com o governo venezuelano, que incluem coordenação de suas políticas petrolíferas e a construção de uma empresa conjunta para exploração de gás em Cuba. Em seguida veio a reunião dos presidentes da Argentina, do Brasil e da Venezuela, na posse de Tabaré Vazquez, em Montevideu, que programou três cúpulas desses governos, convidando-se a outros, sobre política econômica, política de energia e políticas sociais. O processo de integração regional ganhou nova força e amplitude. O significado da política externa brasileira A natureza de uma política, ainda mais em um período histórico marcado pela forte hegemonia imperial, tem seu significado definido pelas suas posições em relação a essa força dominante. A mudança mais significativa da política exterior do governo Lula para o de FHC é precisamente esta – a consciência da presença determinante da hegemonia imperial dos EUA. Já no momento da segunda guerra do Iraque, o Brasil assumiu posição clara de oposição a que o Conselho de Segurança da ONU apoiasse a intervenção dos EUA e da Grã-Bretanha. Na reunião da OMC em Cancún, a formação do Grupo dos 20 – com a reaparição de uma organização de países do Sul do mundo, depois da sua desaparição no começo dos anos 80, contando, além do Brasil, com a China, a Índia, a África do Sul, a Argentina, o México, entre outros. Os aspectos negativos da política externa – que não tiram o seu sentido geral positivo – vêm da participação da operação militar no Haiti, da defesa de posições de livre comércio na OMC e de votações no Conselho de Segurança sobre o Afeganistão e Chipre, entre outros, em que o Brasil não demarcou uma posição própria. Mas a posição na OMC e a negativa a apoiar a Argentina na reestruturação de sua dívida têm o sinal da equipe econômica, mais do que do Itamaraty, revelando uma dualidade que em alguma momento terá que se definir – da mesma forma que a prioridade da Alca ou do Mercosul. Porém, a inserção internacional da política externa brasileira lhe dá uma relevância particular, magnificando seus aspectos positivos, diante da ausência de questionamentos à hegemonia imperial norte-americana no mundo. A política do governo Bush no seu segundo mandato enfrenta uma situação de isolamento inédito no continente, com uma projeção que ainda pode ser pior. A possibilidade de eleição de Lopez Obrador – candidato favorito nas pesquisas, do PRD – no México, assim como a de Evo Morales na Bolívia em 2006, projetam uma situação como nunca o continente havia vivido. Isto, caso Lula consiga se reeleger, assim com Kirchner e Hugo Chavez – situações estas mais seguras do que a brasileira. Pode-se contar que Washington atuará de forma direta e brutal para impedir que isso aconteça, agindo desde já no México, ao tentar impugnar a candidatura de Lopez Obrador no México, da mesma forma que agirá apoiando o candidato da direita brasileira, sobretudo pela ausência, até aqui, de alternativa na Venezuela e na Argentina. A colocação em prática dos acordos definidos pelos presidentes da Argentina, do Brasil e da Venezuela, em Montevideu, por sua vez, projetam um avanço no processo de integração regional, que pode consolidar um polo alternativo à hegemonia dos EUA, como não existe em nenhum outra região do mundo. Considerando-se que a América Latina é o continente onde se situa o maior grau de resistência às políticas neoliberais, com protagonismo dos movimentos sociais, mas ainda sem uma direção política definida, esses acordos podem preencher esse vazio, colocando a luta antineoliberal em um patamar superior. Sua dinâmica pode colocar para o governo brasileiro, induzindo efeitos para dentro do país, uma nova possibilidade de superação do modelo herdado do governo FHC – tão maldito quanto a política externa, esta superada pela política externa.
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