Uma crise de destino
22/06/2005
- Opinión
Não bastou ignorar as promessas de transformação social, abandonadas nos palanques eleitorais. Também não foi suficiente aprofundar a política econômica conservadora de seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso, nem entregar ministérios a representantes do mercado financeiro e do agronegócio. Todos esses recuos ideológicos não bastaram para o presidente Lula manter uma relação estável com a direita brasileira. Pelo contrário, a atual crise política brasileira mostra que neoliberal por neoliberal, a elite prefere o original.
Pelo menos, três aspectos desenham o pano de fundo desse momento de instabilidade. O primeiro é a proximidade das eleições em 2006, a disputa pelo poder com o PSDB (de FHC) e os interesses estadunidenses na América Latina. O segundo aspecto aponta para os percalços de uma gestão focada na manutenção da governabilidade por meio de alianças com os setores mais conservadores e reacionários da política brasileira. Por fim, o terceiro aspecto sinaliza para as conseqüências de um governo que não tem projeto de nação, apenas de poder, e esqueceu-se de construir uma base sólida de apoio popular, distanciando-se dos movimentos sociais.
Diante desse cenário, as principais organizações populares brasileiras decidiram fazer um embate decisivo. Dia 21 de junho, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a União Nacional dos Estudantes (UNE), ao lado de outras entidades, lançaram a “Carta ao Povo Brasileiro”. Não por acaso, o documento tem o mesmo nome de uma outra carta escrita pelo então candidato Lula, no auge de sua campanha eleitoral, em junho de 2002, procurando tranqüilizar os mercados financeiros e a elite sobre um futuro governo petista. Na época, o documento foi interpretado como um recuo frente às ameaças golpistas da direita de criar um clima de instabilidade no país (fuga de capitais, explosão da cotação do dólar, etc.). O chamado “golpismo cotidiano”, expressão do sociólogo Emir Sader.
Três anos depois, as principais organizações sociais brasileiras se unificaram na Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS) e ofereceram apoio ao presidente Lula, novamente encurralado pela direita. Mas, em troca, estão exigindo mudanças estruturais em seu governo, sobretudo, na política econômica. Se as reivindicações serão aceitas, apenas o poder de mobilização popular dessas organizações poderá responder.
FHC-Kissinger
Em 23 de fevereiro de 2005, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso fez uma emblemática conferência em Washington, a convite do ex-secretário de Estado Henry Kissinger. Na ocasião, como revelou o jornalista José Arbex Jr., FHC exaltou a atuação de Kissinger na formulação da política externa estadunidense nos anos 70. Esse ex-funcionário do governo dos EUA, a quem FHC chamou de “velho amigo”, foi um dos mentores do golpe militar contra o governo socialista de Salvador Allende, no Chile, apenas para citar um exemplo da sua “honrada” biografia. Detalhe: Allende, morto no ataque ao Palácio La Moneda, acolheu a FHC e lhe concedeu asilo, na época do golpe militar no Brasil (1964).
Dois dias após a conferência, o Financial Times noticiou que estava sendo criado um grupo de monitoramento da América Latina que pedia maior presença dos Estados Unidos na região. Sob a liderança de FHC e de Carla Hills (ex-representante comercial estadunidense), esse grupo apontou para os riscos da ascensão de governos de esquerda no continente e cobrou uma ação mais vigorosa dos estadunidenses para evitar que o governo de Hugo Chávez contaminasse toda o continente.
Esses dois atos antecedem à crise brasileira, detonada em meados de maio com a divulgação pela revista Veja de uma denúncia de corrupção na estatal Os Correios. A publicação semanal, assumidamente neoliberal, é a mais lida do país (mais de 1 milhão de tiragem) e esteve com FHC nos oito anos em que esteve na presidência. Certa vez, Roberto Civita, o dono do grupo Abril, que edita a revista, disse: “Pensam que a Abril apóia o programa de governo do Fernando Henrique. A questão está mal colocada. Não é a Abril que apóia o programa de Fernando Henrique. É o Fernando Henrique que apóia o programa de governo da Abril” (revista Carta Capital).
A reportagem divulgada pela revista mostrava um diretor da estatal brasileira recebendo 3 mil reais (cerca de 1,2 mil dólares) para fraudar uma licitação. A fonte da denúncia era um vídeo, de autoria não revelada. Na gravação, o funcionário dos Correios revela que há um esquema de corrupção na estatal, organizado pelo presidente do PTB, deputado federal Roberto Jefferson, com objetivo de arrecadar verbas para o partido.
O PTB é uma das legendas da base aliada de Lula e foi contemplado com a indicação de cargos em diversas empresas públicas, em troca de apoio no Congresso. A denúncia tem grande repercussão na grande imprensa, que tenta vincular o PT às denúncias e, dia 21 de maio, Fernando Henrique Cardoso diz que “o governo Lula parece um peru bêbado”, em uma reunião do PSDB. Começava, assim, a maior crise política da gestão petista, enquanto surgiam na cidade de São Paulo, capital econômica do país, os primeiros adesivos “Geraldo Alckmin para presidente”, referência ao atual governador de São Paulo, possível candidato à eleição presidencial em 2006.
Más companhias
A denúncia de corrupção nos Correios jogou holofote sobre as más companhias do governo Lula na sua busca frenética por apoio na Congresso. Um desses novos aliados, o presidente do PTB, Roberto Jefferson, é um dos políticos mais reacionários da vida pública brasileira. Em seu currículo, constam ações como liderar a tropa de choque em defesa do ex-presidente Fernando Collor de Melo, que sofreu impeachment em agosto de 1992. Um ano depois, foi acusado de corrupção no escândalo dos “anões do orçamento”, grupo de parlamentares que controlava o Orçamento na Câmara. Jefferson também apoiou Fernando Henrique Cardoso durante seu governo e, por diversas vezes em sua vida, disse que os petistas eram “demônios”.
A opção por se aliar aos políticos conservadores foi tomada pelo governo Lula como uma escolha pela “governabilidade”, ou seja, no intuito de se construir maioria no Congresso e na Câmara. Essa estratégia incluiu alianças com partidos reacionários, além do PTB, como o PP (de Paulo Maluf, conhecido pelo lema: “rouba, mas faz”) e o PL (ligado à Igreja Universal).
Para tanto, foram feitas concessões, muitas concessões. Uma delas foi seguir à risca a orientação neoliberal na política econômica. O deputado Delfim Netto (ex-ministro da ditadura, célebre defensor da idéia de que é preciso fazer o bolo crescer, primeiro, para, depois, distribuir), por exemplo, é um dos principais interlocutores de Antonio Palocci.
E por que Lula escolheu esse caminho? “Talvez por temer uma desestabilização, por temer uma reação mais violenta da elite brasileira, não saberia dizer. De qualquer maneira, eu discordo da política econômica, uma das razões pelas quais eu deixei o governo”, afirmou frei Betto, amigo pessoal de Lula e ex-assessor especial da Presidência, em entrevista a Marcelo Netto, do jornal Brasil de Fato.
O tripé dessa política econômica são os juros altos, foco nas exportações e superávit primário. Um estudo do economista da Unicamp Marcio Pochmann, aponta que os efeitos dessa opção são uma vigorosa transferência de renda para os mais ricos. Segundo ele, os 4% da população que têm investimentos financeiros atrelados à dívida recebem cerca de 40 bilhões de dólares todo os anos. “Ou seja, o governo pune o pobre na arrecadação e transfere o dinheiro arrecadado para os ricos”, avalia o economista. O principal programa social do governo, por sua vez, o Bolsa-Família, não recebe mais do que R$ 5 bilhões por ano.
Outro argumento utilizado pelo governo para justificar tantos recuos foi que havia, no país, uma correlação de forças desfavorável à implantação de um projeto transformador. Para Emir Sader, essa justificativa não basta. “Lula tinha força mais do que o suficiente para realizar as prioridades sociais prometidas na campanha eleitoral. Tinha condições de começar colocar em prática um modelo econômico diferente. Sem esse apoio, o presidente argentino tem adiantado elementos de um modelo distinto – reestruturação da dívida externa, veto ao aumento do preço da gasolina, agora decretou retenção de parte dos investimentos chegados ao país. O Brasil teria melhores condições para isso. Se tivesse feito isso, teria tido apoio mais do que suficiente, sem necessitar negociar apoios”, avalia o sociólogo.
Fato é que o governo Lula optou por outro caminho e as escolhas lhe bateram à porta. Encurralado, o novo amigo Roberto Jefferson (um advogado criminalista que já tinha acumulado um certo conhecimento em se safar de acusações de corrupção) conseguiu passar do papel de acusado para o de acusador. Em entrevista publicada pelo jornal paulista Folha de S. Paulo, Jefferson acusou o PT de organizar um esquema de compra de deputados, a partir do pagamento de uma mesada. Batizado de “mensalão”, esse esquema seria coordenado pelo Chefe da Casa Civil, José Dirceu, entre burocratas do PT.
Jefferson não apresentou nenhuma prova. E apesar de estar sendo acusado de coordenar um esquema de corrupção nos Correios, suas denúncias foram amplamente exploradas pela grande imprensa. Durante semanas, as manchetes dos jornais estamparam declarações de Jefferson que soltava, dia após dia, novas denúncias. “A mídia cria um clima de instabilidade, pregado pelo ex-presidente FHC, para tentar ferir de morte o governo e vencer as eleições de 2006”, analisa Emir Sader. Sintomático disso, por exemplo, foi que a imprensa ignorou um deslize de Jefferson, que revelou que o PSDB de FHC havia feito doações ilegais ao PTB. Tampouco os jornais e a televisão destacaram no noticiário o processo em curso contra o atual presidente do Banco Central (BC), Henrique Meirelles, acusado de fraude financeira. “A direita é a principal interessada na crise, pois pretende voltar ao governo. Veja-se, por exemplo, como o processo contra Meirelles, com todas as provas correspondentes, apresentado à Justiça pelo Procurador Geral da República, desapareceu do noticiário. E nem se fez tanta celeuma, porque interessa à oposição e aos setores de direita dentro do governo, poupá-lo, desviando os debates para outros temas”, explica Sader.
Mas se o governo agrada a elite, por que não estão satisfeitos? “Incomoda-os o PT, tanto porque lutam para ganhar as eleições no próximo ano, como porque enxergam no partido o núcleo das políticas que romperam - em maior ou menos grau - com suas políticas, como a política externa, a de educação, a da reforma agrária, a da cultura, a das cidades”, analisa o sociólogo.
Nova Guinada?
Em meio à crise, o presidente Lula afirmou que vai cortar na própria carne e aceitou a demissão negociada de José Dirceu, seu principal ministro até então, considerado o “capitão do time” (segundo o próprio Lula) e que dividia o centro das atenções com o ministro da Fazenda, Antonio Palocci. De quebra, o presidente ainda anunciou que fará mudanças em seu ministério, abrindo mais espaço para os partidos aliados, como o PP e o PMDB (legenda dominada por caciques tradicionais da política brasileira, como o ex-presidente José Sarney).
Esse cenário de desestabilização do governo e de ofensiva dos setores mais conservadores não está sendo acompanhado passivamente pelos movimentos sociais. As principais organizações populares brasileiras acreditam que essa crise pode abrir uma oportunidade de se pressionar o governo a cumprir com suas promessas de campanha, como a mudança da política econômica, a reforma agrária e uma política de redução das desigualdades sociais. “De olho nas eleições de 2006, as elites iniciaram, pelos meios de comunicação, uma campanha para desmoralizar o governo e o presidente Lula, visando enfraquecê-lo para derrubá-lo ou obrigá-lo a aprofundar a atual política econômica e as reformas neoliberais”, avaliam os movimentos, na Carta ao Povo Brasileiro.
As organizações exigem uma rigorosa apuração das denúncias de corrupção, mas cobram também que os escândalos da época do presidente FHC também sejam investigados (ilegalidades na privatização de estatais, compra de votos de parlamentares, favorecimento de bancos privados, etc).
No documento, a Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS) avisa que sairá às ruas para defender o governo da tentativa de desestabilização da direita, mas condiciona seu apoio à mudança da política econômica. João Pedro Stédile, da direção do MST, integrante da CMS, avalia que o momento é de uma crise profunda. “De caráter estrutural, pela continuidade de uma política econômica claramente neoliberal que apenas aprofunda os problemas do povo. Crise provocada pelas alianças do governo com setores conservadores e suas oportunidades. Crise provocada pela direita e suas ligações com o governo Bush”, afirma. Segundo ele, a intenção dessa ofensiva da elite é derrotar politicamente o governo Lula. “E se o presidente continuar com popularidade, terão que pelo menos repactuar com ele as condições de um segundo mandato ainda comprometido com a manutenção dos acordos neoliberais”, avalia.
Para o dirigente do MST, no entanto, ainda é possível reverter esse quadro. “Isso depende, agora, da possibilidade de realizamos mobilizações de massa exigindo mudanças na política econômica e uma reforma política ampla para o governo Lula não continuar refém de suas alianças conservadoras e seus compromissos com os neoliberais”, afirma, acrescentando a única certeza da possibilidade de mudanças, em qualquer parte do mundo, no Brasil, no Uruguai, na Argentina, na China, “é se os trabalhadores se organizarem de forma independente, se mobilizarem e lutarem por mudanças, pois nunca, nenhum governo deu nada de graça.”
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