A nova estética

30/06/2002
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O caos No início é o caos. A perdição. Não se sabe o que, nem para quê. A estética é morta – torturada pelos dias, pela ditadura do mercado. Jornais, rádio e televisão – o Cão está solto. No escuro. E aí ninguém sabe o que é bom, o que é ruim. O que se come, o que se digere é a miséria cultural – o que nos deram, a caridade da comunicação. Aqui a lama mercadológica impõe a ignorância total. Eles fazem a estética da fragmentação, da pasteurização, que gera sem-terra, sem-teto, sem água, sem- energia, sem-cultura, sem-sonhos,... Rebentos da incomunicação dos dias de hoje. Eles, os pretensos donos do Brasil: uma elite sórdida que invadiu os dias; invadiu o espaço eletromagnético; saqueou a cultura e as artes; tomou posse do nosso destino. Os latifundiários da comunicação fizeram o brasil assim, minúsculo, excluído dele mesmo. Um brasil virtual. Para ele dizem o que deve comer e beber, o que usar quando fizer frio; quando deve rir e quando deve chorar; em quem votar e em quem não votar. Este grupo roubou a estética, substituindo-a por uma gôndola de supermercado. Arte se resumiu à embalagem, capa de revistas, caras e bocas, chiques e famosos. Engrenagens da indústria cultural, cujo produto mais concreto é sempre a incultura, a desinformação, a deseducação. Triste sina: o povo já não consegue mais saber se uma música é de qualidade ou é ruim. Para resolver a pendenga é preciso consultar um especialista! Sim, a estética morreu. A cultura foi substituída pelo entretenimento. E nada mais é real. O "reality show" da TV é um "virtual show", um “mentira show”. E as pessoas assistem esta anti-estética, ou estética da miséria, porque já não sabem mais distinguir o bom do ruim, a verdade da mentira. Aí vale a frase bizantina: uma mentira, de tanto repetida, acabando se tornando verdade. No entanto, se (um dia) houver estética na leitura da mídia, ela não dura o tempo de uma propaganda. O grotesco na mídia O cidadão escuta uma música e não sabe se ela é boa ou ruim. Ele só sabe se gosta ou não gosta. Não tem formação estética para diferenciar o que é bom do que é ruim. O gostar e o não gostar foi decidido pelo mercado, que faz rádios, jornais, TVs, mostrarem a mesma coisa. Na estética da pasteurização, todos gostam das mesmas coisas. É o prenúncio do apocalipse. Antropólogos, biólogos, matemáticos, artistas e alucinados, concordam: todo sistema sem diversidade tende a morte. Enfim, é o que eles, quais vírus alucinados, esfomeados, propõem, a morte do povo, da arte, da cultura. A mídia, enfim, feita de piratas da vida, propõe o suicídio coletivo, a morte da humanidade e retorno à barbárie. A estética da morte preconiza a violência. A violência - linguagem comum a todos os povos - é o herói da nova estética. É a forma mais barata de se fazer entretenimento. Bombas que explodem, heróis que matam sem piedade, tiros, mortos e feridos,... Morrer é banal. Matar é legal. A escola do crime está nas TVs, nos jornais, nas rádios, nos cinemas, nos pontocom. O sensacional dá audiência. Se espremer o jornal o sangue espirra. A estética é a miséria: pobre e preto são presos, apanham, são torturados. É normal. A estética da fome é a maldade da mídia contra a miséria real. Não existe notícia, informação, comunicação, cultura. Existe somente o entretenimento. A festa. O comunicador faz o show sobre a miséria brasileira. Para ele, povo é bandido, marginal, covarde, ladrão, assassino, brigão,... Povo não presta. Então pratica a caridade, distribui cadeiras-de-roda, muletas, óculos, remédios, poços artesianos para o Nordeste. Não resolve nada, não muda nada. Não é para mudar. Oferece a notícia incompleta, tendenciosa; a arte ruim e a cultura inútil; o entretenimento. É do grotesco, da estética do grotesco, numa indefinição entre o brega e o chique, que a mídia sobrevive. Eles são poucos, mas mandam nos olhos da gente. São eles, infelizmente, que nos fazem ver o que vemos, e sonhar como sonhamos. E sempre do mesmo jeito. A beleza e o horror da vida, das coisas, do mundo, depende deles. Nossos atos e omissões dependem dessa deseducação estética, dessa cultura imposta. Por isso nos querem ignorantes, alienados do mundo. Por isso o brasil sabe tudo sobre los angeles e miami, mas não sabe nada sobre Quixeramobim ou Teresina. Por isso, o americanês - esta caricatura de língua que o povo dominado adotou está pregada em tudo que é canto chique. Usam esta língua os que migraram de uma vez do Brasil para o brasil. Acham que fazendo isso vão ser grandes, iguais a eles, os norte-americanos, os donos do brasil. A educação pela pedra Em contrapartida, quando o povo tomar posse dos meios de comunicação, uma nova estética será impressa no tempo. Uma estética comprometida com o Brasil. Ela começa nos espaços alternativos de mídia. Naqueles em que o povo manda, e não mais os latifundiários da comunicação. O primeiro – aqui e agora - é a rádio comunitária Então, a estética começa pela voz. Depois de 500 anos de silêncio, o povo vai conhecer o som de sua voz. E será a primeira revolução. Porque irá perder o medo de se ouvir, de ouvir os iguais e os diferentes; de ser diferente. E todo mundo vai ouvir a voz rouca de Seu Amaro, que vende rapadura na feira, e de Dona Rosa, que ensina na escola da Prefeitura, e da velha Dona Maria, que entende tudo de doces caseiros, e de Toinho, que é borracheiro e tem opiniões sobre a cidade. Aqui não fala só doutor ou prefeito. Numa RC todos falam. Por isso a atividade é educativa. Sempre. A voz é o começo. Oliver Sacks, que entende do assunto, já disse que a voz é mais importante que a visão para se conhecer o mundo, estar no mundo. Com a voz e a palavra, se entende as culturas, se entende as gentes, se entende a arte e se faz e se manifestam culturas. Rádio comunitária é uma educação pela pedra - no dizer de João Cabral de Melo Netto - feita com letrados e iletrados. Para quebrar a pedra e mostrar a riqueza do povo. Para que se descubra a beleza cristalina da gente local: o camponês, o servente, o lavador de carros, a enfermeira, o índio, o negro... Para que se descubra a beleza que há no povo, no lugar, no meio ambiente, nas muitas línguas faladas no Brasil. Uma estética de descoberta depois de 500 anos de encobrimento. Sem ela a beleza vai continuar oculta e o povo se condena à morte. Morte feia, por sinal. Daí um novo jeito de fazer rádio é preciso. Mas isto é problema. Porque depois de 80 anos escutando um só jeito o povo ainda está espantado com o que tem nas mãos. É fazer diferente ou não fazer. Mas como? Ora, o noticiário da RC pode ser não-linear, com intervenções populares. O vigia da obra vai opinar sobre transgênicos ou sobre as agressões de Israel ao Estado Palestino. Gente tem opinião. A cultura terá nova leitura. Uma leitura que valide a cultura popular, construída por esse mesmo povo ao longo de milhares de anos, misturando manhas e manias, jeitos, beiços e cheiros, pantins e chuleados, orações e pajelanças, sotaques e sustos. Com a descoberta da estética de raiz se construirá a estética do presente e do futuro. Em cada canto do Brasil há centenas de grandes artistas - músicos, cantores, poetas, dançarinos, atores, pintores... - que utilizarão o espaço da RC para mostrar que existe arte no Brasil apesar da Globo. O belo não é inacessível. Através das RCs é possível trazer à tona o que, no fundo, todos já trazem no peito varonil: a capacidade de distinguir o que é bom do que é ruim. E fazer disso um valor. Criar juízos de valor. Por exemplo, bela não é a violência. A arte pode até conter a violência, mas ela não é somente isto como faz crer os cinemas e as telas de TV. Porque a estética de uma nova sociedade está associada a novos valores. Hitler sabia disso. Por isso fez exposições itinerantes onde mostrava uma arte degenerada (na verdade mestres do dadaísmo, cubismo, surrealismo) e de gente degenerada (deficientes mentais, deficientes físicos de uma forma geral) contrárias à proposta de uma sociedade formada por pessoas sadias, como seria a raça ariana. Os Estados Unidos, que tem fundamentação nazista, adotaram uma estética similar. Na sociedade organizada esteticamente pelos norte-americanos não cabem degenerações características de alguns grupos étnicos ou políticos - caso dos negros, índios, muçulmanos, latinos, comunistas. A nova estética, portanto, vai abarcar a sociedade ou não será uma nova estética. Ele deve estar ciente de que irá estabelecer novos valores para comunidade e, portanto, uma transformação no modo dela estar e agir no mundo. Os novos valores dirão respeito a temas antes tornados tabus por aqueles que impuseram a deseducação. A questão de gênero, por exemplo. As relações entre homem e mulher, sexo, casamento, filhos, família, deverão ser repensadas e retraduzidas conforme a nova estética. Hoje, graças à mídia, muitas meninas só acham que têm futuro profissional como modelo ou se requebrando numa banda de música bunda. Com a revolução da estética através das RCs, muitas podem até querer mostrar o corpo, não é crime, mas não será a única alternativa. Não se trata de adequar a estética à moral e aos bons costumes. Pelo contrário. A moral de hoje diz que famílias de bem devem ter uma filha modelo e um filho cantor de pagode. Ainda um dia desses a moral declarou ser contra a minissaia. Em suma, a moral não é confiável. Ainda se se considerar que ela foi construída pela mesma turma que está no poder a 500 anos. A estética, porém, não se submete à moral. Ou não é estética. As rádios comunitárias devem se submeter a uma ética, a uma nova ordem preconizada por valores humanos e não estes que a mídia prega hoje. Quando se rever a estética estará se revendo a religião, a política, a economia, a arte e a cultura. No fundo, o que se busca é uma identidade cultural. Um existir no mundo. Algo que é orgânico e, por isso mesmo, sujeito a mudanças constantes. Começando do zero. Não o nada, mas, o zero, o caos, a lama. Todo mundo tem algo a apresentar na reunião. No quadro alguém escreve uma das profecias de Chico Science: é me organizando que vou desorganizar; é desorganizando que vou me organizar. A rádio está no ar.
https://www.alainet.org/pt/articulo/106033?language=en

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