Como será a ALCA
05/03/2003
- Opinión
1. Está cada dia mais difícil defender a ALCA. Artigos recentes parecem não
ter mais ânimo para defendê-la abertamente, tais os riscos que a ALCA
representa, percebidos cada vez mais claramente pela sociedade brasileira, e
tal a “dureza” da posição negociadora norte-americana, conforme refletida no
TPA, o fast track aprovado pela Câmara dos Deputados norte-americana. Os
Estados Unidos esclareceram a todos neste projeto de lei que pretendem
negociar somente os temas que interessam aos Estados Unidos, deixando
explicitamente fora da negociação temas que o Governo brasileiro vem
declarando reiteradamente considerar essenciais para que a ALCA seja
equilibrada e “aceitável para o Brasil”, tais como a revisão da arbitrária
legislação anti-dumping e anti-subsídios norte-americana, que vitima
subitamente produtos brasileiros competitivos, como o aço, e a eliminação dos
subsídios americanos à exportação de produtos agrícolas. Agora, a defesa da
ALCA parece ser feita de forma oblíqua e não em razão de seus supostos
méritos, o que se torna cada vez mais difícil de apresentar.
2. Um dos argumentos oblíquos agora utilizados enfatiza que não se pode ser
contra a ALCA porque não se pode saber hoje como será a sua forma final e,
portanto, os compromissos que o Brasil terá de assumir. Enfim, segundo esse
argumento, o debate sobre a ALCA seria prematuro e aqueles que tentam alertar
a sociedade brasileira para suas extraordinárias e negativas conseqüências
seriam açodados e preconceituosos.
3. A resposta a esse argumento é que a ALCA (2005?) terá de ser muito
semelhante ao NAFTA (1994), acordo de livre comércio que engloba os Estados
Unidos, o Canadá e o México, da mesma forma que o NAFTA foi muito semelhante
ao AFTA (1988), acordo de livre comércio entre o Canadá e os Estados Unidos.
Por outro lado, a ALCA terá de ser compatível com o disposto no Artigo XXIV do
GATT-94, acordo que faz parte da OMC e que estabelece as condições para o
reconhecimento da ALCA pela OMC e por seus membros, em especial a União
Européia e o Japão, cujo comércio e investimentos seriam fortemente atingidos
nos mercados da América Latina pelas preferências concedidas pela ALCA às
megaempresas norte-americanas na região.
4. Uma área de livre comércio simples é um acordo internacional em que os
Estados-parte eliminam, em um determinado prazo e de acordo com o cronograma
negociado entre si, todos os obstáculos tarifários e não-tarifários ao
comércio recíproco de todos os bens, enquanto mantêm em relação aos demais
Estados, que não fazem parte do acordo, as suas respectivas tarifas aduaneiras
nacionais.
5. O artigo XXIV do GATT-94 (que complementa o artigo XXIV do GATT –1947)
estabelece que um acordo de preferências comerciais para ser considerado como
uma área de livre comércio deve incluir a maioria do comércio entre os Estados
que dele participam e o prazo para sua implementação, i.e. para atingir a
eliminação de todas as barreiras ao comércio não deve ser superior a dez anos.
A expressão “maioria do comércio” tem sido interpretada como a total
desgravação de 85% do comércio, medido em termos de valor. Além disto, seria
correto entender que uma área de livre comércio deve incluir os produtos
agrícolas, e que assim o disposto no Acordo de Agricultura da OMC deve ser
respeitado, principalmente devido à importância do comércio de bens agrícolas
para determinados países. Limitar uma área de livre comércio a bens
industriais em casos de fortíssima assimetria na composição da pauta de
exportação dos diversos participantes, como ocorre nas Américas, seria
profundamente desigual e desfavorável aos países que dependem principalmente
ou de forma importante das suas exportações de bens agrícolas.
6. Uma área de livre comércio pode incluir, além do comércio de bens, o
livre comércio de serviços, de acordo com as regras previstas no GATS (General
Agreement on Trade in Services), que também faz parte do conjunto de acordos
da OMC. O setor de serviços, que engloba atividades em extremo distintas, tem
grande e crescente importância. O comércio mundial de serviços, apesar de ser
equivalente a cerca de 20% do comércio mundial de bens, vem se expandindo a
taxas muito superiores às que se verificam para o comércio de bens. É
necessário lembrar que as estatísticas sobre o comércio de serviços não
incluem o valor de serviços prestados por firmas estrangeiras sediadas nos
mercados locais. Assim, o valor dos serviços prestados e cobrados pela filial
de um banco estrangeiro em território brasileiro não é computado como parte da
exportação de serviços do Estado onde este banco tem sua sede e para onde
remete seus lucros. Apesar de as normas sobre serviços serem distintas das
normas sobre bens, devido à natureza muito peculiar do comércio internacional
de serviços, seus fundamentos são semelhantes, quais sejam a cláusula de nação
mais favorecida e o tratamento nacional. O artigo V do GATS prevê a
possibilidade da inclusão de serviços em áreas de livre comércio, isto é, a
concessão de tratamento preferencial para os Estados-parte, desde que
obedecidas certas disposições.
7. Desse modo, a ALCA terá de ser compatível com as regras previstas pelo
GATT-47, pelo GATT-94, pelo Acordo de Agricultura e pelo GATS (o Acordo Geral
sobre Serviços). Os Estados Unidos desejam que a ALCA, a exemplo do NAFTA,
inclua normas sobre investimentos e capital, sobre propriedade intelectual (o
que inclui patentes); sobre compras governamentais; sobre meio-ambiente e
sobre trabalho etc. Assim, o eventual acordo da ALCA terá de ser compatível
com as normas da OMC sobre estes temas. Essas normas se encontram consagradas
em acordos, a maioria dos quais o Brasil faz parte, tais como o de TRIMS
(investimentos) e o de propriedade intelectual (o acordo de TRIPS), e em
normas sobre anti-dumping e subsídios. Tal não ocorre com o acordo de compras
governamentais, tema sobre o qual o Mercosul vem legislando, prevendo
inclusive uma preferência interna. Já os assuntos relacionados com o meio-
ambiente (cláusula ambiental) e trabalho (cláusula social) que os Estados
Unidos desejam fazer incluir na ALCA não foram regulados até o momento no
âmbito da OMC. A inclusão desses temas pode ocorrer de forma a justificar
práticas de proteção a setores da economia norte-americana, país que, aliás,
não é signatário da maior parte das convenções da OIT e se recusa a assinar o
protocolo de Kyoto sobre o efeito estufa.
8. A ALCA, como visto, terá de ser compatível com as normas da OMC.
Todavia, as eventuais normas da ALCA poderão ir além das normas da OMC, desde
que sejam, como os negociadores americanos apreciam qualificar, OMC-plus i.e.
normas ainda mais favoráveis à liberalização geral do comércio de bens e
serviços e ao movimento de capitais, sem tratamento preferencial para as
empresas dos países em desenvolvimento e, portanto, ainda mais favoráveis aos
interesses das megaempresas multinacionais americanas em todos os setores e
aos megainvestidores internacionais americanos, cujas sedes e centros de
decisão se encontram fisicamente, assim como seus acionistas, nos Estados
Unidos.
9. Além disso, a eventual ALCA teria de ser muito semelhante ao NAFTA, ou
incluir normas que sejam consideradas NAFTA-plus. Em primeiro lugar, as normas
do NAFTA já se aplicam às relações econômicas entre os três países que
constituem em conjunto cerca de 88% do PIB das Américas (e, portanto, de uma
futura ALCA) sendo um deles, os Estados Unidos (e suas megaempresas), a maior
potência econômica, comercial, financeira, tecnológica, militar e política do
mundo. As dificuldades para a aprovação em 1994 do NAFTA pelo Congresso
americano; as críticas em certos setores da sociedade americana à sua
implementação e aos acordos de livre comércio em geral; a aprovação por apenas
1 (um) voto na Câmara dos Deputados da Trade Promotion Authority (TPA), que
corresponde ao antigo fast-track; a firme negativa americana em negociar o que
chamam de leis de defesa comercial (anti-dumping, anti-subsídios,
salvaguardas), a recente legislação norte-americana que concede amplos
subsídios de proteção à produção e à exportação agrícola; e a lista norte-
americana de 300 produtos “sensíveis”, são todos fatos que revelam com clareza
as dificuldades para os próprios Estados Unidos em negociar e aprovar qualquer
esquema que se afastasse significativamente das linhas gerais do NAFTA.
10. Por outro lado, seria difícil aos Estados Unidos, principal país membro
do NAFTA, e grande impulsionador da ALCA conceder ao Brasil em geral ou em
casos específicos tratamento mais favorável do que aquele que concedeu, nos
mesmos casos, ao Canadá e ao México, que naturalmente procurariam, caso os
Estados Unidos tentasse fazê-lo, obter tratamento semelhante. Assim, seria
ilusão pensar que seria possível obter tratamento mais favorável (que, aliás,
somente poderia ser em termos de prazos e exceções) para o Brasil do que
aquele concedido ao Canadá e ao México para acesso ao mercado americano ou
para exceções que permitissem defender setores sensíveis da economia
brasileira. Em terceiro lugar, o próprio acordo do NAFTA dispõe em seu artigo
2204, a possibilidade de adesão de terceiros países ou de grupos de países
(sic) ao sistema preferencial do NAFTA e o faz dizendo que será necessário que
os três países membros (Estados Unidos, Canadá e México) aceitem essa inclusão
no acordo. Assim, o processo de negociação da ALCA tende, por razões jurídicas
e políticas, a resultar em um acordo que viria a substituir o NAFTA, porém
muito semelhante a este último e compatível com a OMC e seus vários acordos
(GATT-94, Acordo de Agricultura, GATS, TRIMS, TRIPS etc)
11. É possível saber com razoável precisão como será a ALCA. A ALCA será
como o NAFTA. E naquilo que for diferente será diferente para ser mais
favorável aos Estados Unidos. O texto do eventual acordo da ALCA vem tomando
forma nas negociações que se realizam em nove grupos negociadores e, onde
devido à fragilidade e dependência dos países do Caribe e da América Central e
à desarticulação e fraqueza econômica de muitos Estados da América do Sul,
pode-se imaginar que as propostas norte-americanas apresentadas nesses grupos
terão grande possibilidade de êxito.
12. Os extraordinários desafios de reduzir as disparidades sociais, eliminar
as vulnerabilidades externas e realizar o potencial da sociedade brasileira
exigirão políticas ativas do Estado nessas áreas, como demonstra cada vez mais
a urgência em realizar um superávit comercial significativo. A sociedade
brasileira deve, portanto, se mobilizar desde já em defesa de preservar o
direito soberano de ter o Brasil uma política de desenvolvimento, que tem de
ser constituída por instrumentos de política comercial, industrial e
tecnológica que uma futura ALCA viria a impedir definitiva e legalmente.
https://www.alainet.org/pt/articulo/106103
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