Carnaval & cinzas
26/02/2003
- Opinión
Carnaval significa "festa da carne" e era, em seus primórdios, uma
festa religiosa. Às vésperas da Quaresma, diante da perspectiva de
passar quarenta dias em abstinência de carne, os cristãos fartavam-se
de assados e frituras entre o domingo e a "terça-feira gorda". Na
quarta, revestiam-se de cinzas, evocando que do pó viemos e para o pó
retornaremos, e ingressavam no período em que a Igreja celebra a
paixão, a morte e a ressurreição de Jesus Cristo.
A modernidade secularizou a cultura e, de certo modo, esvaziou o
significado das festas religiosas, hoje apreendido apenas por
cristãos vinculados à comunidade eclesial. Com certeza ganhou a
autonomia da razão e perdeu a consistência da subjetividade. Trocou-
se São Nicolau, que no século V distribuiu sua herança aos pobres,
pela figura consumista de Papai Noel; transformou-se o carnaval em
festa da carne em outro sentido; e fez-se da Semana Santa um período
extra de férias.
Essa reificação dos ritos de passagem torna-se mais evidente nesse
momento em que a humanidade enfrenta a crise de paradigmas.
Destituído o leninismo da condição de ciência da história, e
constatado o fracasso crônico do neoliberalismo nos países da América
Latina, da África e da Ásia, ocorre uma emergência espiritual em todo
o mundo.
Parafraseando Rimbaud, há uma "gula de Deus", que favorece o
encontro da mística oriental com a doutrina cristã ocidental,
introduz a new age e a gnose de Princeton, mas também abre campo aos
mercenários da salvação, que pregam de olho na cobiça, convencidos de
que "no princípio era a verba" e, se Jesus é o Caminho, pague-se a
eles o pedágio...
A Quarta-Feira de Cinzas instiga-nos a refletir sobre esta
experiência inelutável: a morte. O processo reificador da modernidade
tende a tornar descartáveis também os ritos de passagem que se
sobrepõem às esferas religiosas, como o nascimento, o casamento e a
morte. Outrora, morria-se em casa e, contra a vontade do poeta, havia
choro, vela e fita amarela.
Criança em Minas, acorri a enterros que eram uma festa, com toda a
força paradoxal da expressão. Havia velório e carpideiras, cachaças e
empadas, coroas de flores e procissão fúnebre, missa de corpo
presente e encomendação no cemitério. Hoje, morre-se quase
clandestinamente, e o enterro se faz antes que os amigos possam ser
avisados, como se resistíssemos à idéia de que esta vida escapa ao
nosso absoluto controle.
A evocação da morte incomoda porque remete ao sentido da vida. Só
assume morrer quem imprime à vida um sentido altruísta, capaz de
transcender a existência individual. Fora disso, a morte é brutal
sonegação da vida. Porém, já não se enfatiza a questão do sentido da
vida. Na escola, aprende-se a competir, a ter sucesso, a dominar a
ciência, a técnica e o patrimônio cultural de que somos herdeiros.
Pois não há disciplina que prepare os alunos para as crises quase
inevitáveis da existência: o fracasso profissional, a ruptura
afetiva, a doença, a falência, a morte. Socializada a ambição, todas
as vezes que o desejo esbarra na frustração, privatiza-se o consolo:
o alcoolismo, as drogas, o ressentimento, o lobo que nos devora o
coração.
Na Quarta-Feira de Cinzas, a CNBB lança, em todo o Brasil, a Campanha
da Fraternidade, neste ano dedicada ao idoso. Alonga-se o período de
vida do brasileiro, mas nem sempre aprofunda-se a atenção que ele
merece. Idosos são marginalizados, abandonados pelos próprios
parentes, desconsiderados pelos equipamentos sociais, vistos como
incapazes ou inúteis. Ora, a fé cristã não faz o panegírio da morte,
mas proclama o seu fracasso ao centrar seu eixo na ressurreição da
carne. Isso significa a recusa de todas as situações de morte, do
pecado individual às estruturas sociais que exaltam o capital e
humilham a pessoa, incapazes de assegurar a tantos idosos uma vida
digna e feliz.
Proclamar que a vida tem a palavra final, inclusive sobre a morte,
implica também empenhar-se para que os nossos anciãos não sejam
precocemente condenados à morte cívica e moral.
* Frei Betto é escritor, autor de A Obra do Artista - uma visão
holística do Universo (Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/107042
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