A guerra e a alma de seus produtos
06/04/2003
- Opinión
No mundo inteiro, grupos e organizações da sociedade civil realizam o que se
chama de consumo crítico ou compra inteligente . A base deste tipo de ação é
compreender que os produtos têm alma e ideologia. O corpo de um produto é o
conjunto de suas características estéticas e utilitárias, como beleza, força e
capacidade de duração. Mas, quem procura pode descobrir também o modo como esses
objetos foram produzidos e qual a conduta social e humana de seus proprietários.
Um adorno de prata pode esconder o sofrimento de muitos indígenas dos Andes,
obrigados a trabalhar em minas insalubres, situadas a mais de 100 metros abaixo
da superfície.
Para que a classe média possa usar objetos de prata, milhares de índios
bolivianos e peruanos têm sido destinados à morte por silicose, ao envenenar
seus pulmões com o pó das rochas que respiram e engolem. Para que um broche de
diamante seja vendido, países europeus continuam a explorar minas e
trabalhadores do Congo. Extraem as riquezas da África e tornam aqueles povos
cada vez mais excluídos de uma vida humana digna.
Atualmente, a guerra contra o Iraque tem envolvida em seu bojo a ambição pelo
petróleo, interesse da família Bush, como de empresas americanas como a Esso e a
Texaco. Nesta guerra, os americanos exibem a última linha em armas de destruição
de vidas humanas e do meio ambiente. Estas armas são produzidas e vendidas por
indústrias que pertencem a grupos, por acaso, também proprietários de grandes
agências de comunicação, de redes de televisão e de produção de filmes de
Hollywood. Se não existissem estes interesses comerciais, não haveria armas e
não se faria a guerra. Se queremos dizer Não à guerra, precisamos dizer Não a
produtos, que têm aparência inocente, mas escondem em seu coração o sangue de
muitas vítimas.
Na década de 50, os negros de Estados americanos como Alabama, Mississipi e
Geórgia só podiam sentar nos bancos traseiros dos ônibus. O reverendo Martin
Luther King, cujo aniversário de martírio celebramos no início de abril, tomou
nas mãos o Evangelho e pregou na Igreja Batista, ligando o Evangelho e a vida
concreta. Coordenou um movimento de boicote dos meios de transporte público.
Nenhum negro deveria andar de ônibus, enquanto continuasse aquela lei
discriminatória. O movimento teve adesão total do povo negro. Onze meses depois,
os políticos americanos, pressionados pelos proprietários das empresas de
ônibus, votaram a Lei que proíbe a discriminação racial nos meios de transporte.
O boicote comercial conseguiu uma vitória que todas as campanhas sociais e
políticas não tinham obtido.
Quase meio século depois, no mundo inteiro, cresce esta consciência: quem
trabalha pela Paz e contra a guerra, ao comprar um produto, deve olhar não
apenas a sua aparência, mas sua procedência e condições de produção. É
importante não comprar tênis de empresas que os fabricam mediante o trabalho
escravo de adolescentes da Indonésia. Não comprar leite ou seus derivados de uma
multinacional que financia campanhas contra o leite materno na África para
vender mais, provocando a fome de muitos que não têm dinheiro para comprar.
Desde que se iniciou a guerra contra o Iraque, organizações civis e pessoas no
mundo inteiro começaram uma campanha de boicote contra produtos americanos e
ingleses.
Entre as iniciativas de boicote destaca-se a que foi lançada na internet por
cristãos e muçulmanos denominada boicote pela paz"
( www.boicote.net), aberta à participação de crentes de
outras tradições espirituais. Estes militantes da Paz pensam o contrário do ex-
ministro da economia brasileira que dizia: dinheiro não tem ideologia . Tem sim.
E seus produtos também: têm uma ideologia e uma ética humana ou, ao contrário,
assassina. Desde antigamente, as Igrejas cristãs costumam jejuar na Quaresma.
Não porque Deus fica contente em nos ver famintos, ou porque o corpo é mau e
merece castigo. As pessoas de diversas religiões jejuam para se auto-dominar e
privar-se de algo em benefício do outro. Na tradição bíblica, o jejum sempre é
ligado à partilha. O boicote é uma forma de jejum. Continua a ação simbólica dos
profetas da Bíblia e de Jesus Cristo em uma ação não violenta e espiritual de
solidariedade aos pequenos, vítimas da sociedade que lucra, explorando-os.
Nesta campanha ecumênica podemos parafrasear e adaptar ao contexto atual
espiritual as palavras que Paulo escreveu aos cristãos de Roma: A criação
inteira (nós diríamos: toda a natureza e até os objetos) foi submetida a um
vazio e falta de sentido por imposição de quem a domina. Mas, a humanidade tem a
esperança de ser emancipada deste cativeiro que é a corrupção para a liberdade
gloriosa da condição de filhos e filhas de Deus (Rm 8, 19- 21).
* Marcelo Barros, monge beneditino, autor de 26 livros, dos quais o mais recente
é "O Espírito vem pelas Águas" (A crise mundial da Água e a Espiritualidade
Ecumênica) Ed. CEBI- Rede.
https://www.alainet.org/pt/articulo/107294
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