Um mundo carente de profetas

19/12/2003
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Em toda a história bíblica, os profetas sempre foram figuras de primeira importância. Homens possuídos por Deus, inovadores éticos e morais, suas visões configuraram decisivamente a vivência e a reflexão religiosa posterior, tanto judia quanto cristã. E não só na Bíblia. Em todos os tempos da história da humanidade, os profetas foram aqueles que fizeram a diferença nos comportamentos humanos, fazendo com que os homens e as mulheres aprendessem a sair de si, olhar para o outro e à sua volta, a fim de ir abrindo caminho para o projeto do novo que Deus quer para sua criação. A compreensão da profecia bíblica hoje tende a rejeitar o lugar- comum que considera o profeta um adivinho do futuro, para vinculá-lo bem fortemente ao presente. Assim foi com os profetas de Israel, assim é com os profetas atuais. O fenômeno da profecia é feito de uma experiência de Deus que impulsiona um ser humano a enfrentar todos os perigos, a fim de comunicar uma mensagem divina. É, portanto, inseparável da consciência que tal mensageiro tem das características de seu tempo e de seu espaço. Os profetas só podem ser entendidos quando a relação dinâmica entre eles e a sociedade onde vivem é plenamente compreendida e levada em conta. Assim, cada profeta é diferente, pois cada um responde a uma determinada situação na qual Deus o chama a abrir a boca e falar em Seu Nome. Por isso Gandhi não pode ser compreendido sem todo o contexto da dominação britânica sobre sua sofrida e amada Índia. Também Martin Luther King não pode ser conhecido fora do contexto da luta racial nos EUA e o apartheid criado pelo preconceito dos brancos. Ignácio Ellacuria e Pedro Casaldáliga não podem ser conhecidos em toda plenitude sem que se compreenda o contexto de pobreza e opressão em que vivem os povos latinoamericanos, que fizeram com que esses dois brilhantes sacerdotes – um filósofo e outro poeta – deixassem sua Espanha natal a fim de vir dar sua vida por estas latitudes. Neste tempo do Advento, a figura profética de João Batista é posta pela Igreja com destacado protagonismo diante de nossos olhos. Sua pessoa dá testemunho de um aspecto essencial na vida humana: o amor e a luta pela verdade acima de tudo. Luta de todos os profetas, em João essa busca faminta e incessante da verdade ganha conotação particularmente candente. Coerente e destemido, João não cessa de chamar os homens à conversão, advertindo: ''Arrependei-vos e convertei-vos, pois o reino de Deus está próximo''. Sua língua de fogo não permite que o povo se acomode na mediocridade de uma vida que tem secretos compromissos com a iniqüidade. Mas denuncia a condição pecadora de todos, inclusive a sua própria, e diz não haver outro caminho senão a total verdade e transparência na busca da vontade de Deus. Para isso é preciso converter-se: romper com o velho e abrir-se ao novo que vem e que é maior que Ele. Abrir-se ao Esperado das nações, Aquele que batizará com Espírito Santo e com fogo. Neste tempo do Advento, vamos vê-lo e ouvi-lo fazendo acontecer a profecia de outro profeta, Isaías, que já anunciava: preparai o caminho do Senhor, endireitai suas veredas. Toda ravina será aterrada, toda montanha e toda colina serão rebaixadas; as passagens tortuosas serão retificadas, os caminhos ásperos serão aplainados; e todos verão a salvação de Deus. Nada nem ninguém detinha João quando se tratava de aplainar caminhos ásperos e retificar passagens tortuosas. Nem mesmo o poder do rei Herodes. Olhando-o nos olhos, João gritou-lhe a verdade sem concessões: ''Não te é lícito ficar com Herodíades, pois é mulher de teu irmão''. A corrupção e a mentira não gostam da transparência. Não aceitam que seus torcidos desvios sejam trazidos à luz. E João perdeu a vida, aplainando com seu sangue a aspereza dos caminhos da maldade e os tortuosos descaminhos da mentira. Sua palavra e sua vida de profeta prepararam o caminho para que pudesse chegar e ser reconhecido Aquele que permitiria a todos ver a salvação de Deus. Neste Advento, o profeta João Batista pode dar-nos algo de sua coragem, para que, ao mesmo tempo em que celebramos com alegria o Novo que vem, não recuemos diante do compromisso de abrir a boca e dizer a verdade, aplainando os ásperos caminhos da mentira e da corrupção, da injustiça e da violência, do terror e da iniqüidade. Em suma, das velhas coisas que se recusam a deixar o campo livre para a celebração da verdade e da luz do Natal. Num mundo carente de profetas, o Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo nos chama a assumir a nossa profecia, que por Deus nos foi dada: aplainar caminhos ásperos, retificar vias tortuosas, a fim de que possa brilhar a Luz que ilumina todo homem e que vem com todo esplendor neste Natal. Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga
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