Os Cristãos e a Solidariedade com os pobres

28/06/2004
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Não sei se há ou deve haver uma solidariedade comum a todos os religiosos ou todas as religiosas. Cada instituto tem sua inspiração específica e a sua maneira de se relacionar com os pobres: esta maneira tem o seu fundamento na vida, na prática e nas exortações dos fundadores ou das fundadoras. Porém, todos os que fazem profissão religiosa aceitam a orientação evangélica que é comum a todos os cristãos. Por isso, prefiro não buscar o que seria específico dos religiosos, mas antes o que é específico dos cristãos. Hoje em dia, estamos assistindo ao surgimento de uma nova classe: os novos pobres, que são o produto do modelo dito de globalização ou neoliberal que se está implantando no mundo inteiro pela pressão das grandes entidades financeiras que conseguiram dominar as nações, os Estados e até a opinião pública dos povos que, voluntária e cegamente se entregaram aos seus algozes. 1. Os novos pobres Até há poucos anos atrás, quando se fala em pobres na América Latina, refere-se à herança social e econômica do sistema colonial, que não foi superado e sim renovado nos primeiros 150 anos da independência. Os "antigos" pobres são os camponeses submissos ao latifúndio ou os camponeses que fugiram ou foram expulsos da terra e se refugiaram nas cidades. Esses pobres nunca foram ricos, nunca estiveram numa situação realmente humana. Os seus pais, avós e antepassados sempre foram pobres: são os subdesenvolvidos. Nos últimos 40 anos, a opinião comum pensava que, com o "desenvolvimento" se poderia vencer essa pobreza e dar acesso a uma condição humana a todos os "subdesenvolvidos". Os mais radicais achavam que tal desenvolvimento exigiria uma revolução prévia porque as classes dirigentes nunca promoveriam as reformas necessárias a um verdadeiro desenvolvimento. De todas as maneiras, achava-se que, com políticas adequadas, poderia-se superar o problema da pobreza. Bastaria definir e aplicar uma boa política social. A educação seria um dos grandes instrumentos da elevação social dos pobres. Políticos, trabalhadores sociais, sindicalistas, educadores, psicólogos, sociólogos, antropólogos pensavam que, com todos os recursos que estavam à sua disposição, eles ou elas poderiam libertar os pobres da sua miséria e dar-lhes a possibilidade de uma vida verdadeiramente humana. Passaram 40 anos. Não somente os antigos pobres ainda estão aí, mas a eles se juntaram os novos pobres. A própria existência dos novos pobres põe em discussão todas as teorias antigas sobre desenvolvimento, libertação dos pobres, eliminação da pobreza. As próprias doutrinas sociais da Igreja tinham adotado as teorias comuns do tempo: os pastores exortaram os cristãos a colaborarem com as obras ou as políticas de "desenvolvimento" econômico, social, cultural, integral, tudo com a convicção de que os agentes sociais poderiam resolver o problema da pobreza graças aos seus conhecimentos científicos e técnicos, graças aos recursos dos governos e da caridade cristã. Achavam que obras como Caritas, Misereor e outras poderiam realmente contribuir para superar o desafio da pobreza na América Latina. Hoje, em dia, tudo isso caiu por terra. Não somente a antiga pobreza não foi superada, mas uma nova pobreza surgiu ao lado dela, uma nova pobreza que se revela mais aguda, mais triste, mais profunda do que a antiga. Quais são os novos pobres? São as vítimas do novo sistema econômico e social que desde os Estados Unidos se está implantando no mundo inteiro. Este sistema entrou no Brasil em 1994. Ainda não está completo, mas tudo indica que será implantado completamente porque as forças financeiras dominantes o impõem. Os novos pobres são os desempregados: os que perderam o emprego e nunca mais o poderão recuperar. Terão que viver de biscates, de pequenos comércios legais ou ilegais. São também os jovens que não têm acesso a um emprego estável e sabem que para eles nunca haverá "futuro". Nasceram numa família que podia viver decentemente, mas estão condenados à queda sem fim. Todas as promessas dos políticos são puro blá-blá-blá: o número de desempregados vai aumentar e o número de jovens sem esperança de emprego vai aumentar também. Não se produz nenhuma inversão do processo que provoca o desemprego. Esta pobreza não é exclusiva do Brasil. Existe em primeiro lugar nos Estados Unidos onde vai crescendo a cada ano. Existe na Europa e ali também vai crescendo sem parar. Cresceu espantosamente nos países asiáticos que entraram no modelo neoliberal: Coréia do Sul, Tailândia, Malásia, Indonésia. Está em todos os países latino-americanos que adotaram o modelo: por exemplo no México que teve uma queda terrível em 1994. Vai crescendo no Brasil também: o Brasil não está fora do mundo, não vai escapar das conseqüências do modelo. O desemprego gera a "miséria". Ora, é diferente a miséria de quem nunca conheceu outra coisa e a miséria de quem já teve emprego, vida organizada, esperanças para o futuro, confiança na melhoria da condição no futuro. Os camponeses pobres do interior podem viver muito pobremente, ser materialmente miseráveis; mas nunca conheceram outra coisa: estão felizes, mais felizes do que o povo da cidade. Comem feijão e farinha, bebem a água que o carro-pipa vem trazer todos os dias e agradecem a Deus porque podem comer e beber. Na cidade é diferente. Os novos pobres já conheceram outra coisa. Por isso, a sua condição é pior. Um morador da rua em São Paulo pode até comer melhor do que um camponês sem terra no sertão da Paraíba. Porém, a miséria moral é muito maior. O pobre do campo não se sente degradado, excluído, rejeitado. O desempregado da cidade sente tudo isso. Os novos pobres caem numa degradação humana imensa. Perdem o sentimento da sua dignidade. Sofrem uma humilhação sem limite pelo fato de ter que depender de esmolas, depender dos pais e da aposentadoria tão fraca que o país lhes deixa. Perdem a esperança, o respeito de si próprios. Os pobres antigos eram alegres. Os novos pobres são tristes, ressentidos, violentos, destruidores de si próprios e de todo o seu ambiente. Recentemente a editora Vozes publicou uma tradução do livro publicado em francês sob a direção de Pierre Bourdieu: A miséria do mundo. Este livro é uma coleção de entrevistas com diversas pessoas que são os novos pobres na França. São milhões na França. Os brasileiros que visitam a França, não sabem nada. Mesmo os religiosos voltam com uma visão de turistas. Vêem o que mostram as agências de turismo e não sabem como é a vida de muitos milhões de franceses. O que se lê ali sobre os novos pobres na França, vale também para o Brasil. Os novos pobres assistem impotentes à desintegração da sua família. A família era o refúgio e o sustento dos antigos pobres. No seio da família, alimentavam a esperança, a confiança em si próprios, o respeito a si próprios. Entre os novos pobres, a família morre. Cresce a violência do homem contra a mulher e os filhos. O homem acaba saindo e abandonando mulher e filhos ou expulsa a mulher e introduz na casa outra mulher. Nenhum compromisso é possível. Os jovens não casam ou, se casam, o seu casamento desfaz-se depois de poucos meses. Uma vez desfeita a família, é a solidão completa, a falta de recurso moral, a ruína do sentimento de responsabilidade. Quem já viveu numa casinha decente, desespera-se quando deve se mudar para uma favela, ou pior, sente-se condenado a morar na rua. A população das favelas cresce. Não é somente pela chegada de camponeses que fogem do campo. Trata-se de pessoas que já tiveram emprego, já tiveram casa, já tiveram algum conforto material e viviam respeitados pela vizinhança. A miséria moral é um flagelo que não existia antes. Quantos sacerdotes, religiosas e religiosos descobriram a alegria, a calma, a paz, as virtudes cristãs no meio dos pobres! Entrar no meio dos pobres era tomar um banho de Evangelho. Eram os antigos pobres. Entre os novos pobres, o que se acha é angústia, raiva, sentimento de impotência diante de um destino implacável. Muitos entre os novos pobres tornam-se vítimas de males piores ainda do que a pobreza. Muitos caem numa depressão psicológica. Um dia um psicólogo social dizia-me que no Recife a terceira parte da população sofre de depressão. Bem pode ser que essa proporção não seja exagerada. Pessoas angustiadas, perseguidas pelas contas que não podem pagar, desmoralizadas pelas brigas entre marido e mulher, com os filhos adolescentes, com os vizinhos, com a polícia, perseguidos pelo medo aos narcotraficantes que governam o bairro ou a favela, ou pela polícia porque, muitas vezes, não se sabe a diferença entre o policial e o delinqüente. Os adolescentes tornam-se escravos das drogas. Entram nas bandas rivais, tornam-se escravos de chefes das quadrilhas. Desta maneira entram nas brigas, nos confrontos armados, aprendem a violência. Entre os jovens, o roubo é uma instituição. É parte do sistema e os comerciantes sabem qual é a porcentagem de mercadoria que devem considerar como perdida. Sempre houve roubos, sempre houve delinqüência. Mas hoje em dia o roubo nos supermercados, na rua, o assalto é uma instituição. Ninguém poderá extirpar esta instituição. É o meio de viver de um mundo extenso. Impossível colocar um policial ao lado de cada adolescente. A violência é para os rapazes, a prostituição para as moças. Para ambos, trata-se de sobreviver. O ponto final é a Aids que ameaça todo o mundo dos novos pobres. Antigamente, os trabalhadores sociais ofereciam os sindicatos, as associações de moradores, associações de mulheres, associações esportivas como forças para vencer a pobreza. Hoje em dia, tudo isso está em pleno recesso. Os sindicatos estão em desintegração no mundo inteiro, as associações morrem, a convivência e a participação tornam-se impossíveis dadas as condições morais em que vivem as pessoas. A sobrevivência no imediato é a única preocupação. Não há mais espaço nem liberdade mental para pensar em outra coisa. Suscitar associações populares supõe muitas etapas prévias de recuperação humana num povo que sofreu a humilhação de uma degradação total. A família já foi a salvação dos pobres. A associação já foi a esperança dos pobres. Já foi, já foi. Hoje em dia, não há salvação para os novos pobres. Todos os caminhos estão fechados porque a sociedade em que vivem é de um egoísmo total, ilimitado, sem piedade alguma. O sistema gera constantemente novas levas de novos pobres. Os que despedem trabalhadores, não sabem o desastre humano que provocam. Não querem saber e invocam as leis do sistema. Os que introduzem ou mantêm o sistema, não sabem o que fazem ou não querem saber. Criam ruínas irreparáveis. Destroem milhões de vidas humanas que nunca serão recuperadas e condenam as novas gerações a uma sobrevivência sem esperança. Pois quem não tem acesso a um trabalho, a uma função social, não existe, está excluído da existência humana, não tem dignidade nenhuma e sabe que não tem. Os antigos mendigos tinham a sua dignidade porque eram uma das funções sociais previstas no quadro social. Na sociedade cristã, os mendigos têm o seu lugar previsto. Os novos pobres não têm lugar nenhum. Não deveriam existir. A sua existência já incomoda a sociedade. Os dirigentes da sociedade ainda têm o atrevimento e a falta de vergonha de repetir que o desenvolvimento do sistema no fim vai salvar os pobres e que o crescimento seria para todos: o enriquecimento dos ricos seria o caminho de salvação para os pobres. Como o modelo neoliberal poderia reduzir a pobreza se todos os dias fabrica novos pobres? O próprio sistema gera pobreza. Como imaginar que um dia iria restituir trabalho e dignidade a esses homens e essas mulheres que excluiu? Nos Estados Unidos os defensores do sistema exaltam os novos empregos: 30 milhões de novos empregos! Mesmo assim, ainda há uma cifra grande de desempregados cujo número não se sabe porque as estatísticas são sistematicamente falsificadas. A maior parte dos desempregados não cabem na nomenclatura que define o desemprego oficial nos Estados Unidos. Ora, os novos empregos são precários, sem nenhuma garantia de continuidade. São a tempo parcial. Não conferem direitos sociais. A maioria consiste em vender comida ou bebida ou pequenos objetos de consumo. A categoria que mais cresce nos Estados Unidos são as polícias privadas. Os policiais particulares são muito mais numerosos do que os policiais públicos. A segurança é função privada nos Estados Unidos. Os ricos têm todos os seus guarda- costas. Por sinal, no Brasil também a categoria que mais cresce é a profissão de segurança particular. Já que o roubo e assalto se tornaram institucionais, também a segurança virou instituição indispensável. No futuro, de cada dois cidadãos, um será ladrão e o outro guarda policial. Este é o modelo de sociedade que se está preparando. Os dirigentes não se importam: nunca ganharam tanto dinheiro e, graças à especulação global, nunca foi possível ganhar tanto dinheiro sem fazer nada e tão depressa. No Brasil também existem os novos empregos: empregos de guardas, camelô, guardas de automóveis, carregadores, vigias e assaltantes. Tais empregos não resolvem o problema dos novos pobres: não libertam da pobreza. Mantêm a insegurança, a humilhação, a impotência. 2. Que solidariedade? O nó do problema é o emprego. Sem emprego todo o resto é paliativo. Ora, o emprego depende do modelo de sociedade escolhido. O Brasil escolheu outro modelo. Cada um sofre as conseqüências das decisões tomadas livremente. O Brasil não tinha obrigação de escolher o modelo que escolheu. Não tinha obrigação de modernizar as indústrias sacrificando o emprego para o lucro da empresa e, por conseguinte, o enriquecimento dos acionistas e, sobretudo, dos executivos. Nada disso é imposição de "leis" do mercado. Cada um escolhe as leis da sua preferência. O Brasil podia ter escolhido um modelo de indústria menos tecnicizada, um modelo de comércio mais atrasado, um sistema de comunicações menos custoso. Qual é a vantagem que tem a maioria dos brasileiros se podem ver a TV de 100 emissoras diferentes do mundo inteiro, se somente entendem português? Qual é a vantagem que têm se podem consultar por Internet a biblioteca do Congresso dos Estados Unidos? Quantos vão aproveitar? Ora, para fazer tudo isso é preciso sacrificar o emprego e levar milhões de pessoas a uma vida de desespero. Pois, quem perde emprego, quase sempre perde para sempre ou sempre encontra um emprego inferior ou se contenta com o "informal", isto é, a miséria. O sistema destrói milhões de vidas humanas. O que podemos fazer nós? Podemos mudar o sistema? Não podemos. Solidariedade seria mudar o sistema. Porém, não está ao nosso alcance. Os 30 milhões de brasileiros que têm tudo não querem mudar. O milhão de brasileiros que concentra todos os poderes, não sacrificará nenhum dos seus privilégios. Diante desse muro de resistência, nós não podemos nada. Os novos pobres estão perdidos. Essa nova juventude está perdida. Nunca terá acesso a uma vida digna. Então, a questão é: como nós seremos solidários de um povo condenado, prisioneiro de um sistema social fechado? Para a maioria desses excluídos, a única coisa que podemos fazer, é estar presente , estar com eles, manifestar compreensão, simpatia, ajuda às escondidas. Trata-se dos aidéticos, dos drogados, dos moradores de rua, as crianças de rua, as prostitutas, os favelados, os habitantes dos cortiços, os profissionais do assalto, os vendedores de drogas, os ilegais, os foragidos. Todos esses são vítimas do desemprego. Ou quase todos. O remédio seria emprego. Porém, não temos emprego para todos, somente para alguns poucos. Para a maioria, somente é possível o apostolado de Madre Teresa de Calcutá. Nunca se pensou que o Brasil chegaria a esse ponto. Sempre se disse: Madre Teresa não salva os pobres de sua miséria, não tem visão política, não oferece solução. Eis que chegamos a esse ponto: não temos solução para oferecer. Tudo o que se faz no país gera mais pobreza. O Brasil chegou ao nível da Índia. Não somente o Brasil, mas todos os países que escolheram o novo modelo de sociedade, que deram prioridade à tecnologia, ao desenvolvimento econômico. O pior da nova pobreza é a frieza: viver sem afeto, sem ternura, sem calor de relações humanas, sem intercâmbio, sem poder dar, sempre entrando em choque com um muro de resistência porque a sociedade inteira opõe um muro de incompreensão. Sempre a mesma resposta: não há nada para você! O que podemos oferecer é uma presença humana, o calor de um pouco de amor e muita paciência. São todos humanamente "doentes", "enfraquecidos", "carentes" de tudo e, sobretudo, de amor porque, com o desemprego, todos os laços sociais se desfazem. Qual será o último amigo, a última amiga? E a religião, pode ajudar? Pode ajudar, dependendo da religião. Todos conservam algumas lembranças da religião da sua infância, embora haja cada vez mais jovens que nunca ouviram nada de religião. Porém, os fragmentos de religião tradicional não ajudam muito. Quem mais ajuda, são os crentes. Pois, os crentes ajudam a lutar. Todos lutam para sobreviver, para melhorar a sua favela ou o seu rincão debaixo da ponte. Todos lutam, mas muitos lutam cada vez menos. Os crentes comunicam energia. Dão coragem até para lutar contra os vícios: o crente consegue vencer o álcool, a droga, a fornicação, a violência. A religião dos crentes mobiliza todas as energias para a pessoa se levantar, rejeitar as tentações. É uma religião de esperança para os excluídos. É muito simples. Não tem teorias complicadas. Não ensina dogmas incompreensíveis, não separa o clero do povo, pois os pastores são da mesma cultura, da mesma raça, da mesma cor. A luta dos pobres é simples: melhorar a casinha, melhorar o caminho, melhorar a comida, conquistar água, se possível em casa, aumentar o espaço para diminuir a violência. A religião ajuda: luta contra os vícios e, portanto, reduz a violência nas relações humanas. Torna o ambiente familiar mais acolhedor para as crianças. Claro que não resolve todos os problemas: ajuda, mas sobretudo dá mais esperança. Essa religião pode tornar-se opressora também, dominadora, exigente. É tão difícil ter uma religião que seja boa para os pobres. Algumas coisas são boas, mas os responsáveis sempre usam as coisas boas para impor coisas ruins que atrapalham a vida ou querem domina-la. Como os religiosos poderiam manifestar solidariedade? Descendo das suas alturas, fazendo como Jesus que podia ficar apegado à sua condição de Filho de Deus mas se tornou semelhante aos escravos, semelhante até na morte. Tornar-se semelhante aos pobres é muito difícil. Somente com uma vocação cristã é possível. Somente um cristão, uma cristã poderia fazer isso. Sucede que na evolução da sociedade moderna, a distância entre ricos e pobres aumenta sem cessar. Os ricos dispõem cada vez mais facilidades, cada vez mais objetos úteis. Têm um modo de viver cada vez mais sofisticado e tornam-se escravos do seu modo de viver. Descer da sua montanha para ir ao encontro dos pobres é cada vez mais difícil. Chegamos ao momento em que para muitos é coisa impossível: já não há mais contato possível, já não há mais comunicação. São dois mundos separados. Pois a cultura nova é cada vez mais seletiva, mais absorvente: transforma a personalidade de tal modo que é impossível a pessoa sair do invólucro cultural em que se tornou prisioneira. Os burgueses de hoje, inclusive as classes médias são de tal modo prisioneiros da sua cultura que não agüentam mais nem o contato físico com o mundo popular. Mas então, não é mais possível ajudar os pobres a sair da sua pobreza? Para que servem então todas as obras do desenvolvimento? Quanto às obras de desenvolvimento, por experiência sabemos que não foram muito eficientes. Quantos milhões foram doados pelas agências de ajuda ao desenvolvimento e se perderam? No Nordeste podemos dizer que praticamente houve milhares de projetos de desenvolvimento e todos fracassaram. Deram emprego a alguns técnicos, a alguns agentes de desenvolvimento ou assistentes sociais e mais nada. Duraram 2 ou 5 ou 10 anos e depois desapareceram. Deixam como lembranças velhos papéis, ferramentas enferrujadas, alguns móveis de escritórios estragados e provavelmente inscrições na contabilidade das agências de financiamento, como relatórios cheios de otimismo e entusiasmo nos seus arquivos. As obras católicas não foram mais eficazes do que as outras, e, às vezes, menos. No entanto, nos 30 anos que vão de 1960 a 1990, muitos pobres do campo conseguiram subir. Foram para a cidade, acharam emprego, trabalharam, construíram sua casa, fizeram com que os filhos estudassem. Naquele tempo um filho de camponês pobre podia montar uma empresa de pequeno porte em São Paulo ou qualquer outra cidade importante. Podia promover-se socialmente, tornar-se presidente do clube local de futebol. A sua mulher podia ser presidente da associação de moradores ou da associação de pais e mestres. Para os novos pobres, tudo isso é impossível. A distância é grande demais entre o abismo de impotência em que se acha o pobre e a altura cultural das organizações atuais. Dezoito por cento (18%) dos franceses não sabem ler nem escrever. Sabem desenhar algumas letras e decifrar algumas letras. Sabem reconhecer o roteiro do ônibus. Mas não sabem entender, nem responder a um formulário enviado pela prefeitura. Como poderiam entrar no mundo dos computadores? Certamente, a metade dos brasileiros está na mesma condição. Ora, a pertença à sociedade que está em marcha supõe cada vez mais condições. Uma criança que nasce na favela, já está condenada. Nunca sairá da pobreza, nunca será uma pessoa realizada como pessoa. O pecado da nossa sociedade é grande! E quem de nós não participa na manutenção desta sociedade? Quem está sem pecado? 3. Modernidade e pobreza O programa da modernidade era vencer a pobreza. Dizia por exemplo o conde de Saint-Simon, precursor do positivismo: graças à técnica e a ciência, a idade dos "engenheiros" vai resolver o problema que 18 séculos de cristianismo não puderam realizar: suprimir a pobreza. Os seus sucessores no FMI, no Banco Mundial e no governo brasileiro continuam prometendo a mesma coisa. Até agora, o resultado é negativo. Ao invés, a modernidade criou novas formas de pobreza e aumentou a distância entre ricos e pobres. Nunca, no entanto, chegamos ao extremo dos tempos presentes. Quem ainda pode acreditar nas promessas da ciência e da técnica? Ciência é poder. Tecnologia é poder. Os antigos já sabiam disso e todas as civilizações souberam disso e por isso sabiam conter e disciplinar os depositários dos conhecimentos superiores. Sabiam que a ciência pode ser útil, mas que é, em primeiro lugar, perigosa. A ilusão veio com a modernidade. Diante do progresso extraordinário, totalmente inédito, das ciências e das tecnologias, imaginaram que tinham descoberto a chave da salvação da humanidade. As capacidades da inteligência humana pareciam sem limites: logo mais descobririam os meios de responder a todas as necessidades humanas: no horizonte está o paraíso para todos. A ciência criaria abundância para todos. De fato criou abundância, mas não para todos. Poderiam criar duas vezes, dez vezes mais abundância, mas faltam consumidores. Essa abundância não é para todos. A indústria mundial trabalha a 60% da sua capacidade. Há capitais suficientes para multiplicar as indústrias. Mas os capitais não são para o benefício de todos. Lembremo-nos: a primeira finalidade do poder é o próprio poder, mais poder. O poder da ciência não anda nos ares, livre de donos. A ciência tem dono, a técnica tem dono. Sempre aparece alguém para comprá-la, sujeitá-la ao seu próprio poder. Ciência e tecnologia são meios para aumentar o poder dos que lhes fornecem meios e condições. A escola de Frankfurt já tinha explicado isso há 50 anos atrás. Todos os pós-modernos deram inúmeras explicações sobre os diversos aspectos desse destino da ciência e da tecnologia moderna. Ciência e tecnologia são cada vez mais financiadas por entidades econômicas poderosas, ou então não se desenvolvem por falta de recursos, o que é o caso muito freqüente na América Latina. Entram a serviço dos poderes econômicos que os financiam. Os pobres não podem financiar: a ciência não é feita para eles, nem a tecnologia. Os progressos da tecnologia tendem a aumentar a riqueza das grandes empresas a fim de aumentar os capitais disponíveis para a especulação. Além disso, ciência e tecnologia estão também a serviço do poder político. A metade da investigação científica e tecnológica está a serviço da indústria de armamentos dos Estados Unidos e também, ainda que com muito menos possibilidades, das potências secundárias. Os progressos nas tecnologias de comunicação servem ou às multinacionais ou ao poder militar. Como adaptar estas tecnologias à condição das massas pobres? Quem poderia financiar tal tipo de investigação? Ainda vale o que dizia naquele tempo Delfim Neto: um cruzeiro aplicado em São Paulo rende; um cruzeiro aplicado no Nordeste é um cruzeiro perdido. A década dos 90 assistiu a um imenso desenvolvimento científico e tecnológico. Também assistiu a um enriquecimento fabuloso de uma pequena minoria e a um empobrecimento das classes baixas nos Estados Unidos, na Europa, na América Latina. Todo o produto de enriquecimento enorme das economias foi para os privilegiados. Aí está a confirmação de que o progresso científico e tecnológico está essencialmente em função das satisfações dos privilegiados. Por isso, quem entra nessa área da ciência e da tecnologia, que se cuide, porque vai trabalhar a serviço de uma minoria pequena. Outrora, os engenheiros e construtores trabalhavam a serviço dos reis e dos príncipes, ou então do Papa e dos bispos ou dos abades. Hoje, em dia, trabalham a serviço do governo ou das multinacionais, o que é quase a mesma coisa. Cada um pode fazer um exame sério do seu trabalho: quem aproveita? Qual é o resultado final da sua pesquisa, da sua engenhosidade técnica? Qualquer progresso científico ou tecnológico aumenta a distância entre ricos e pobres, porque os ricos aproveitam esses progressos para melhorar mais ainda a sua condição e os pobres permanecem sempre no mesmo nível ou conhecem um crescimento muito mais lento. Desta forma, separam-se duas culturas, dois povos, dois mundos no mesmo território. Um mundo é praticamente analfabeto, outro mundo comunica por Internet. Um mundo come arroz com feijão; outro mundo come alimentos importados. Um mundo trabalha no computador; outro mundo vende roupas importadas do Paraguai ou da China na rua. Qual é a tecnologia que ajudará o vendedor de rua? As ciências humanas são também profundamente comprometidas com a estrutura da sociedade tal como ela é. As ciências humanas estão a serviço dos que mandam e a serviço da ordem tradicional. A psicologia está sendo usada intensivamente pela indústria para dissolver todas as raízes de descontentamento, para impedir de antemão as manifestações dos trabalhadores. As técnicas desenvolvem-se em função disso. A sociologia fornece ferramentas para controlar os movimentos sociais. A pedagogia pretende obrigar as crianças a se submeterem à disciplina da escola. Pois a escola existe fundamentalmente para ensinar às crianças a submissão a uma disciplina: trata-se de formar cidadãos tranqüilizados, acalmados, conformados, dispostos a aceitar tudo o que disserem os poderosos. O resto daquilo que se aprende na escola na escola, se esquece imediatamente: a disciplina fica. Quem não se submete, torna-se "excluído". Poucos são os psicólogos, sociólogos, pedagogos que remam contra a corrente: nunca terão lugar importante na sociedade. O que poderiam fazer ciências e tecnologias que fosse útil para os pobres? Precisa saber que a pesquisa científica, a invenção tecnológica útil aos pobres não rende. Quem vai dedicar-se a uma atividade que não rende? Quem sabe se aqui haveria lugar para alguns religiosos? Os pedagogos poderiam inventar uma pedagogia para os maus alunos, os que sempre fracassam, uma pedagogia que mudasse a disposição desses alunos em relação ao estudo. Poderiam inventar uma educação para jovens que nunca falarão inglês, nunca praticarão matemáticas, nunca farão experiências de física nem de química, uma educação que ajudasse a viver uma vida de vendedor no comércio informal, enfim, uma pedagogia que prepara os jovens para a vida que eles terão e não para uma vida que nunca alcançarão. Os psicólogos poderiam inventar técnicas de tratamento para mulheres de maridos alcoólatras, maridos desempregados, meninos de rua, favelados que vivem no barulho a vida toda, cortiços em que as brigas são incessantes. Poderiam ajudar as pessoas a assumirem uma vida vivida em condições terríveis. Estas são as pessoas que mais precisam de ajuda. Os sociólogos poderiam inventar métodos para facilitar a formação de grupos, associações, trabalhos comunitários entre pessoas socialmente desarticuladas. Poderiam buscar métodos para dar peso político a pessoas que a sociedade separa. No Chile, o "Hogar de Cristo" já construiu um milhão de casinhas de madeira que não custam quase nada e que eles inventaram como refúgio de emergência para famílias sem teto. Excelente tecnologia, modelo para os inventores. Há muito espaço para a criatividade com a condição de não querer ganhar dinheiro. Está claro que tudo isso é paliativo e não resolve o problema fundamental da pobreza. Porém, o problema fundamental é emprego. Nenhuma nação do mundo ocidental, muito menos o Brasil, está disposta a fazer os sacrifícios necessários para dar emprego a todos. Seria necessária uma redistribuição do produto nacional. Impossível! Jamais as classes privilegiadas vão aceitar sacrificar parte dos seus privilégios. Por conseguinte, o problema real são os paliativos. Ciência e tecnologia devem inventar paliativos para tomar a existência dos pobres mais suportável. A ajuda dos técnicos torna-se útil se vem para fortalecer o trabalho dos pobres. Pois, os pobres trabalham incessantemente para sobreviver e melhorar a sua sorte. Os favelados trabalham para melhorar a sua favela, para conquistar o direito de propriedade, para melhorar os serviços públicos. Os desempregados procuram biscates, os vendedores de rua procuram melhores espaços e melhor acesso à freguesia, os meninos de rua procuram melhores lugares para cuidar dos carros. Todos procuram entender o que significam as leis que se referem a eles. Todos procuram uma medicina alternativa, comidas, roupas mais baratas, um trabalho de formigueiro, pouco aparente, pouco visível. No passado freqüentemente foram os técnicos que vieram com planejamento feito para convencer os pobres de que as necessidades deles eram aquelas do planejamento. Vinham com idéias preconcebidas sobre os caminhos do desenvolvimento. De modo geral, as obras de desenvolvimento eram feitas sem consultar os interessados, como se a agência de desenvolvimento soubesse melhor do que eles o que lhes convém. Hoje em dia entramos numa época mais realista. Não adianta querer forçar os pobres a entrarem num caminho que não traçaram eles mesmos. É preciso acompanhar com paciência, caminhar mais devagar, pensando que eles sabem melhor do que nós o que é mais urgente para eles. Foi o que sempre ensinou Paulo Freire sem convencer sempre os seus ouvintes que se esqueciam dos seus ensinamentos na hora da prática. Paulo Freire contava a história do padre que vindo de fora chegou a uma paróquia do sertão pernambucano há uns tempos atrás. O padre logo descobriu tremendas necessidades e quis mobilizar o povo para dar-lhes remédio. Um domingo procurou convencer os paroquianos da necessidade de se ter uma escola porque os meninos não recebiam preparação para a vida adulta. Porém, ninguém aceitou a proposta do padre. No domingo seguinte, o padre propôs a construção de um dispensário porque as necessidades de saúde eram imensas. Ninguém reagiu. Então, um ancião, aproximou-se do padre e lhe disse: "Senhor padre, o sr. não vai conseguir nada se não der satisfação primeiros aos desejos deles. Padre, eles querem um cemitério! Porque o maior problema era o medo de que animais viessem desenterra-los de noite uma vez que eram enterrados em campo aberto. De fato, o padre sugeriu a construção do cemitério e todos aceitaram com entusiasmo. Depois do cemitério vieram a escola e o dispensário. Mas não adiantava querer impor uma ordem de necessidades que não correspondesse ao que estava na mente do povo. Podemos contribuir poderosamente dando a ajuda que eles mesmos desejam e não aquela que nós achamos mais urgente. Ora, é muito difícil realizar esta conversão. Antigamente dizia-se: a solução está no crescimento da economia. Quando a economia crescer será mais fácil distribuir entre os pobres o excedente produzido sem tocar no adquirido pelos ricos. Na prática, não funcionou. Todo o excedente produzido vai para os privilegiados. Se a economia crescer, todo o crescimento será confiscado pelos que já têm tudo. Por isso, somente soluções provisórias são possíveis. Nesta década dos 90 apagou-se o grito dos oprimidos. A própria Igreja deixou de gritar. Talvez um dia as multidões aprendam de novo a gritar. No momento, são prisioneiras de uma suposta democracia que é sistema feito para cortar-lhes a palavra. Sistema feito para enrolar os povos porque lhes dá a impressão de poder participar e na realidade é pura ilusão. Não participam em nada. Todos os jogos já foram feitos e as eleições são farsa. Um terço dos eleitores já percebeu isso, o que mostra pelo menos que muitos pobres são inteligentes e descobriram o truque. Os povos vão aprender a gritar de novo se houver bastante gente no meio deles para lhes restituir a esperança de que vale a pena. Sobre a opção pelos pobres no quadro da vida religiosa, não se poderia falar melhor do que o padre Geral da Companhia de Jesus, padre Peter-Hans Kolvenbach, na conferência pronunciada na semana social de Caracas, no dia 2 de fevereiro de 1998. A conferência foi publicada pela revista Páginas, de Lima, nº 151, junho de 1998. Cito as seguintes palavras: "A Opção pelos pobres não tem tampouco como objetivo direto, imediato, a superação da pobreza, senão a humanização dos pobres, sua personalização. Este resultado não é uma meta externa, senão o fim ao que tem a dinâmica da opção. Porque a opção pelos pobres é antes de tudo uma relação, uma aliança, um jogar-se com eles a sorte. E há que dizer que esta sorte, desde o ponto de vida da cultura dominante, será sempre má sorte, porque sempre haverá pobres na história. Assim, pois, a opção pelos pobres, como aliança com os perdedores da história (que são suas vítimas) é sempre um certo modo de perder a vida. Esse é seu preço tremendo. Por isso se tende a silenciar ou desnaturalizar, de modo que já não seja uma relação, senão somente uma contribuição econômica, mas que não comprometa a pessoa".
https://www.alainet.org/pt/articulo/110159
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