Deus grita com os excluídos
18/08/2004
- Opinión
Mais uma vez no Brasil, o dia da independência não será marcado
só por desfiles militares ou de Colégios. Em mais de duas mil
cidades e distritos brasileiros, o povo irá às praças e ruas
para viver o 10o Grito dos Excluídos. Esta iniciativa apoiada
pelas pastorais sociais da CNBB e por diversos organismos da
sociedade civil ocorre desde 1995. Atualmente, acontece em 22
países latino-americanos e, cada vez mais, se constitui como
ampla manifestação popular para denunciar as situações que
provocam a exclusão social e apontar possíveis alternativas e
propostas de saída para o Brasil e o continente. No Brasil, este
10o Grito dos Excluídos terá como bandeira a partir da qual se
reflete e se propõe caminhos um tema muito sugestivo: "Mudanças
pra valer, o povo faz acontecer".
Apesar de reunir de forma ordeira e pacífica milhares de pessoas
nas praças e ruas das cidades brasileiras e ser um fato novo que
dá voz e vez aos excluídos da sociedade, os órgãos de
comunicação ainda se interessam pouco em divulgar o evento.
Entretanto, mesmo sem apoio da imprensa, há exatamente um mês,
400 chefes indígenas, representantes de 20 países das três
Américas, reuniram-se em Quito, no Equador, na 1a Cúpula dos
Povos Indígenas das Américas. Conforme Djénane Kareh Taget,
jornalista do jornal parisiense Le Monde, este foi um dos
acontecimentos sociais mais marcantes e de conseqüências
importantes para as Américas.
O cardeal Martini, ex-arcebispo de Milão, dizia que uma das
piores enfermidades do nosso tempo é a indiferença social e a
apatia política que tornam as pessoas menos cidadãs e a
sociedade menos democrática. É, então, quase um milagre que, em
tantas cidades, os pobres e excluídos consigam se organizar e
expressar sua insatisfação e suas justas exigências para a
transformação da sociedade. Há dez anos, no México, os
governantes ainda achavam que as manifestações dos indígenas de
Chiapas não tinham importância e não mereciam atenção. Hoje,
lidam com um fenômeno que mudou a história do país. O Grito dos
Excluídos não pretende organizar nenhum levante social. Quer
unir pacificamente todos os gritos presos em milhões de
gargantas e mostrar à sociedade dos ditos incluídos que os
empobrecidos e explorados, até hoje, sem vez e sem voz, estão se
organizando em um movimento unificado e consciente: o Grito dos
Excluídos, como espaço ecumênico das mais diversas lutas sociais
e movimentos populares.
Há pouco menos de dois anos, a maioria dos brasileiros votou em
um novo governo que prometia fazer todos os esforços para
vencer a exclusão social através de uma justa reforma agrária, a
promoção de um salário digno para os trabalhadores e a criação
de milhões de novos empregos. Apesar de que há poucos dias, o
presidente Lula comunicou aos brasileiros novas conquistas
econômicas e melhoria nas taxas de emprego, a prioridade do
governo parece continuar sendo a relação com os banqueiros
internacionais e a manutenção da mesma política econômica que o
PT condenou durante tantos anos. Até agora, o governo prossegue
com uma ação de mão dupla. De um lado, segue a política que
aprofunda a exclusão social e as injustiças e, do outro, reserva
algumas sobras dos juros da gigantesca dívida externa para
políticas sociais de emergência.
Diante disso, cada vez, mais numerosos setores da sociedade
percebem que não basta eleger representantes honestos e dignos
para o governo e para o parlamento. Por mais que sejam
importantes termos partidos políticos coerentes e votarmos em
programas ou propostas e não apenas em candidatos avulsos,
dificilmente destes que ocupam o poder e dele se beneficiam
virão mudanças estruturais para a sociedade. É doloroso
constatar que, mesmo pessoas das mais conscientes e iluminadas
cedem à tentação de agarrar-se ao poder, custe o que custar,
como se isso automaticamente beneficiasse o povo. Sem
deslegitimar a representação política institucional, nem
pretender caminhos paralelos, os movimentos sociais se convencem
sempre mais de que mudanças verdadeiramente profundas só se
realizarão a partir de ampla mobilização social e
conscientização da sociedade civil. Por isso, é fundamental
reforçar o 10º Grito dos Excluídos porque, "mudanças pra valer,
só o povo faz acontecer".
Tanto no Brasil, como em toda a América Latina, os níveis de
desenvolvimento humano se deterioram e a realidade social não
melhora porque a minoria que detêm o poder e a riqueza não quer
por nada perder seus privilégios nem aceita partilhar seus
lucros, obtidos com a exploração de seus irmãos. Dom Hélder
Câmara sempre dizia seu espanto ao pensar que a maioria desta
elite se diz cristã e foi formada em nossas Igrejas. Os países
nos quais a cada dia se funda uma Igreja nova e,
quotidianamente, aparecem novos grupos religiosos são os mais
injustos e menos preocupados com a solidariedade.
Contra espiritualismos intimistas e religiosidade sem
conseqüências na vida concreta, os profetas da Bíblia e o
próprio Jesus usaram palavras duras e radicais. Por isso, foram
perseguidos e mortos. A Bíblia diz que Deus é amor. Só quem vive
o amor-solidariedade pode encontrá-lo. O simples fato de existir
pessoas vítimas de injustiças sociais impossibilita a Igreja
viver a fé do modo como Deus mandou. Organizar a sociedade como
se fosse normal ter pessoas passando fome e vivendo uma vida
sub-humana ofende de tal forma a Deus que, conforme os profetas
bíblicos, fazer qualquer culto é zombar de Deus e orar se torna
inútil. Cada pessoa empobrecida ou carente se constitui como um
grito de que Deus está ausente ou indiferente. Se não assumimos
para valer a causa do que sofre, testemunhamos que Deus não
existe ou é insensível como, no mais profundo de nossas opções,
nós mesmos estaríamos nos revelando. Devemos participar do grito
dos excluídos, não porque temos certeza de que a causa deles
vencerá ou porque eles sejam mais fortes ou numerosos e sim
porque sua causa é justa. Optamos pela justiça e pela
solidariedade porque devemos ser justos, mas também porque se
não fizermos isso, nos distanciamos de Deus. Para quem crê, o
grito dos excluídos é também o grito impotente e amoroso de
Deus. Deus geme quando o excluído grita. No dia 07 de setembro,
ressoará para todo o Brasil a palavra de Jesus: "Quem acolhe aos
pequeninos em meu nome é a mim que acolhe. Quem os rejeita,
rejeita a mim e ao Pai que me enviou".
* Marcelo Barros, monge beneditino e autor de 26 livros, dos
quais o mais recente é "O Espírito vem pelas Águas". Ed. Rede-
Loyola, 2003.
https://www.alainet.org/pt/articulo/110387
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