Religião: a ligação com a transcendência
24/01/2006
- Opinión
Dia 21 de janeiro é data de curiosa celebração. Celebra-se em todo o mundo o Dia Mundial da Religião. Data ainda pouco conhecida e divulgada na mídia, merece, no entanto, uma atenta reflexão. Porque sem dúvida traz à tona e à baila um tema que contrariamente às expectativas dos tempos modernos e seculares vai adquirindo cada vez mais importância, à medida que a humanidade avança novo milênio afora. Certamente na velha Idade Média não precisaria haver um Dia Mundial da Religião. O mundo medieval era essencialmente religioso. A concepção de mundo, de ser humano, de arte, de saber era teocêntrica, ou seja, tinha a Deus por centro. E Deus é o centro irradiador e convergente em torno do qual gira e se forma a religião. É da experiência de Deus, do contato com o Ser Transcendente, que nenhuma categoria humana explica que nasce a religião, feita de símbolos, ritos e doutrina. A modernidade retirou Deus do centro da visão de mundo e da organização do saber, colocando aí o ser humano. O mundo moderno, à diferença do medieval, passou a ser antropocêntrico e não mais teocêntrico. O homem é a medida de todas as coisas e o saber, o pensar, o sentir desejam ser autônomos e não mais tutelados por uma religião. A religião passou, então, a ser um setor da vida e da organização social e científica, não sendo mais o centro a partir do qual se explica a vida. Alguns mesmo como Marx, Freud e Nietzche, chamados com razão de "mestres da suspeita" profetizaram seu fim. No entanto, essas profecias parece que não se cumprem. Ao invés de desaparecer e acabar, a religião re-aparece sob novas formas e configurações, mostrando que na verdade nunca se retirou e sempre esteve presente na vida humana. O fato de haver um Dia Mundial da Religião parece demonstrar essa presença não carente de importância da transcendência e do divino no meio de uma realidade que parecia prescindir dela. Primeiro que tudo é preciso entender o que está no fundo desta celebração. É preciso entender o que é religião. Religião é a crença na existência de uma força ou forças sobrenaturais, considerada (s) criadora (s) do Universo, e que como tal deve(m) ser adorada(s) e obedecida(s). É a manifestação de tal crença por meio de doutrina e ritual próprios, que envolvem, em geral, preceitos éticos. A palavra religião vem de re-ligar, quer dizer, daquilo que liga, que faz a conexão, a relação do ser humano com aquilo ou Aquele que não é humano, que é transcendente, que é sobrenatural. Portanto, é a ligação misteriosa do ser humano com algo ou alguém maior do que ele, que ele não controla nem domina e que, no entanto, se mostra, se manifesta, se revela. Há muitas pessoas que não têm ou pretendem não ter nenhuma religião. Não acreditam que haja nada além daquilo que nós, humanos, podemos ver com nossos olhos, ouvir com os ouvidos e tocar com nossas mãos. Há muito mais gente, no entanto, que faz a experiência da fé e a expressa em determinada religião. Acredita que tudo não termina ali onde os sentidos humanos podem ver, ouvir e tocar. Acredita que há algo, alguém, uma força, uma pessoa, que está acima dos limites humanos, em sua origem e fim como Criador. Algo ou alguém que anda a seu lado como proximidade salvadora e redentora. Algo ou alguém que habita em seu interior como força propulsora e santificadora. Quem crê e vive isso, sob qualquer denominação que seja, é uma pessoa religiosa. Durante muitos séculos, a experiência religiosa no mundo ocidental era quase que exclusivamente configurada pela tradição judaico-cristã. Ser religioso era sinônimo de ser cristão e em muitos casos, católico. Hoje, com o processo intenso de migrações e o advento da globalização, o mundo é plurireligioso. Em todas as latitudes convivem lado a lado pessoas de diferentes tradições religiosas, vivendo o grande desafio de acolher as diferenças uns dos outros e dialogar com essas diferenças, tornando-as potencialidade de vida e harmonia. No Dia Mundial da Religião celebra-se, é verdade, o equívoco das profecias daqueles que pretendiam estar o mundo presenciando o fim da religião. Porém, mais ainda, comemora-se a grande chance que a religião, qualquer que ela seja, dá ao ser humano de empenhar sua vida por valores mais altos do que os imediatismos que a sociedade consumista propõe. Celebra-se e comemora-se a potencialidade do humano de desejar e acolher o divino e, a partir da relação e do diálogo com os outros e com o Outro, procurar construir um mundo onde o amor vença o ódio e a vida seja mais forte que a morte. - Maria Clara Bingemer, Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio é autora de "Violência e Religião" (Editora PUC-Rio/Edições Loyola), entre outros livros. (wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape).
https://www.alainet.org/pt/articulo/114169?language=es
Del mismo autor
- Neto 114 14/08/2014
- Igreja profética em memória sombria 27/03/2014
- Sem sepultura 16/10/2013
- Papa Francisco: um pecador perdoado 26/09/2013
- Francisco e Gustavo: nova aurora para a teologia 22/09/2013
- La Moneda e as Torres Gêmeas: aniversário re-cordado 12/09/2013
- Gato e rato 08/09/2013
- Médicos cubanos: por que tanta gritaria? 29/08/2013
- A homilia do Papa em Aparecida e as três virtudes teologais 25/07/2013
- Realidade das ruas e euforia enganosa 26/06/2013