Ética, mera questão de estética?

13/07/2006
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Será que numa sociedade tão quantificada pelo mercado existe espaço para valores qualitativos da ética? Diante da impunidade de políticos comprovadamente anti-éticos, há esperança de que bens infinitos, como acentuava o professor Milton Santos, tenham prevalência sobre bens finitos? Ou seria a ética uma mera questão de estética, emoldurando a mulher de César, ainda que ela não seja honesta? Ética deriva do grego ethos, usos e costumes adotados numa sociedade para se evitar a barbárie de a vontade de um violar os direitos de todos. Valor universal, deve estar enraizado no coração humano. Difere do pecado. Este deriva de algo que vem de fora da pessoa - a vontade de Deus, os mandamentos, a culpa originada da transgressão da lei divina. A ética vem de dentro, iluminada pela razão e fomentada pela prática das virtudes. A mitologia, religião dos gregos repleta de exemplos nada edificantes, obrigou-os a buscar na razão os princípios normativos de nossa boa convivência social. A promiscuidade reinante no Olimpo podia ser objeto de crença, mas não convinha traduzir-se em atitudes; assim, a razão conquistou autonomia frente à religião, como nos ensinam as obras de Platão e Aristóteles e, por tabela, a sabedoria de Sócrates. Se a nossa moral não decorre dos deuses, então somos nós, seres racionais, que devemos erigi-la. Em Antígona, peça de Sófocles, em nome de razões de Estado Creonte proíbe Antígona de sepultar seu irmão Polinice. Ela se recusa a obedecer ³leis não escritas, imutáveis, que não datam de hoje nem de ontem, que ninguém sabe quando apareceram². É a afirmação da consciência sobre a lei, da cidadania sobre o Estado, do direito natural sobre o divino. Mas será que temos todos consciência ética? E essa consciência individual converge para os interesses coletivos? Sócrates defendia que a ética exige normas constantes e imutáveis. Não pode ficar na dependência da diversidade de opiniões. Em República, Platão lembra que para Trasímaco a ética de uma sociedade reflete os interesses de quem ali detém o poder. Conceito que será retomado por Marx e aplicado à ideologia. O que é o poder? É o direito concedido a um indivíduo ou conquistado por um partido ou classe social de impor a sua vontade à vontade dos demais. Na versão de Paulo Freire, numa sociedade desigual a cabeça do oprimido tende a hospedar a cabeça do opressor. Isso significa que a classe política, por deter o poder, normatiza (ou não) os princípios éticos que regem uma sociedade. Ou relativiza-os ao adotar o ³jeitinho², o nepotismo, o corporativismo. Ou nega-os pela prática da corrupção, da malversação, da locupletação com dinheiro público. Aristóteles rejeita a Teoria do Bem e põe a bola no chão: o que as pessoas mais desejam? A felicidade, responde acertadamente; inclusive quando praticam o mal, lembra Tomás de Aquino. Santo Agostinho, influenciado por Platão, dirá que o ser humano vive na permanente tensão entre a lei e o amor, a cidade dos homens e a cidade de Deus. A primeira exige coerção e repressão a fim de combater o mal, e essa função só pode ser exercida por quem governa em prol da comunidade. Na cidade de Deus predominam o amor, o perdão, a persuasão. Essa dialética introduz-se definitivamente na política e aparece, na Idade Média, sob a teoria das ³duas espadas²; em Lutero, a luta entre os ³dois reinos²; na teologia atual, a não-violência e a violência revolucionária; na filosofia política, a distinção entre ética na política e ética da política. Santo Tomás de Aquino sublinha a irredutível precedência da consciência individual, buscando entretanto o equilíbrio que evite os riscos de relativismo e juridicismo. O primeiro instaura a anarquia quando cada um, a partir da própria consciência, considera-se juiz de si mesmo; o segundo nega a liberdade humana ao identificar o legal com o justo, e erigir a lei em princípio supostamente imutável. Os iluministas, como Kant e Hume, fundam a ética na natureza humana; imprimem-lhe autonomia frente à ética cristã, centrada na fé. ³Mesmo o Santo do Evangelho ­ diz Kant ­ deve ser comparado com o nosso ideal de perfeição moral antes de ser reconhecido como tal² (Fundamentos da metafísica dos costumes). Há em nós um senso inato do dever e não deixo de fazer algo por ser pecado, e sim por ser injusto. E nossa ética individual deve se complementar pela ética social, já que não somos um rebanho de indivíduos, mas uma sociedade que exige, à sua boa convivência, normas e leis e, sobretudo, a cooperação de uns com os outros. Ética universal A filosofia moderna fará uma distinção aparentemente avançada e que, de fato, abre novo campo de tensão ao frisar que, respeitada a lei, cada um é dono de seu nariz. A privacidade como reino da liberdade total. O problema desse enunciado é que desloca a ética da responsabilidade social (cada um deve preocupar-se com todos) para os direitos individuais (cada um que cuide de si). Essa distinção ameaça a ética de ceder ao subjetivismo egocêntrico. Tenho direitos, prescritos numa Declaração Universal, mas e os deveres? Que obrigações tenho para com a sociedade em que vivo? O que tenho a ver com o faminto, o oprimido e o excluído? Daí a importância do conceito de cidadania. As pessoas são diferentes e, numa sociedade desigual, tratadas segundo sua importância na escala social. Já o cidadão, pobre ou rico, é um ser dotado de direitos invioláveis, e está sujeito à lei como todos os demais. O caso Francelino, com a derrubada do ministro Palocci, acusado de violar o sigilo bancário do caseiro, é um bom exemplo de como a cidadania inibe o arbítrio. Uma ética que se pretenda universal não pode restringir-se a uma ótica negativa que proíba a violação de direitos fundamentais. Há que coroá-la com seu aspecto positivo, acentuando virtudes, valores, costumes e responsabilidades sociais, sem olvidar que a felicidade ­ o bem supremo ­ exige condições subjetivas e objetivas, articula o pessoal ao social, e inclui a preservação do meio ambiente. Na atual conjuntura, parece não haver justiça no reino da política para quem viola a ética, nem reconhecimento para quem a pratica. Quando muito, fica-se na ética do mínimo: faço o que a lei não proíbe. Quem detém uma função política serve, queira ou não, de parâmetro para a sociedade. Não é suficiente que respeite as leis. Deve agir com justiça e generosidade, e suas atitudes pautarem-se pelo rigor ético. Caso contrário, será contado entre os hipócritas, aqueles que, no teatro grego, falavam uma coisa enquanto os autores faziam outra. É o que hoje se chama estética do marketing eleitoral; ornamenta-se o embuste para que ambições pessoais sejam coroadas pela aura do dever cívico em prol do bem comum. Não basta, entretanto, supor que a ética depende exclusivamente das virtudes pessoais. Como dizia Ortega y Gasset, ³eu sou eu e minhas circunstâncias.² Há que fundar a ética no modo de organizar a sociedade. Se as instituições são verdadeiramente democráticas, transparentes; se há liberdade de imprensa; se os movimentos sociais dispõem de força e mecanismos para pressionar o poder público; então as atitudes anti-éticas tornam-se mais difíceis. Por isso os políticos sem caráter não se empenham na reforma política, na democracia participativa, no acesso da ação popular ao poder público. Ao votar, o eleitor deve avaliar a conduta ética do candidato, sua vida pregressa, os princípios que o regem e os objetivos a que visa. É o caminho para aperfeiçoarmos as instituições e a democracia. Contudo, a ética da política não pode depender de virtudes pessoais dos políticos. Como adverte o Gênesis, todo ser humano tem prazo de validade e defeito de fabricação, o que o autor bíblico chama de Œpecado original¹. Mais do que os indivíduos, são as instituições sociais que devem estar impregnadas de ética. Assim, ainda que o indivíduo queira corromper ou deixar-se corromper, fica na vontade e na tentação, impedido pela argamassa jurídica que sustenta as instituições vedadas às brechas que favorecem a impunidade. Parecer ético é uma questão de estética, típica do oportunismo. Ser ético é uma questão de caráter. - Frei Betto é escritor, autor, em parceria com L.F. Veríssimo e outros, de “O desafio ético” (Garamond), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/116018
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