(Questões sobre o 2º Fórum Mundial de Teologia e Libertação)

Uma espiritualidade para outro mundo possível

06/02/2007
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O 2º Fórum Mundial de Teologia e Libertação, ocorrido em Nairóbi, poucos dias antes do 7º Fórum Social Mundial, parece ter interessado mais a militantes e participantes de movimentos sociais e a organizações de solidariedade do que apenas ou propriamente a teólogos/as profissionais. Destes, veio um bom grupo da América Latina, Europa, África e Ásia. A coordenação do fórum, assegurada por Luis Carlos Susin, sempre eficiente secretário geral e Sérgio Torres, um dos inspiradores da idéia do fórum, representava várias entidades teológicas que apóiam esta iniciativa. Em 2005, o 1º Fórum Mundial de Teologia e Libertação, foi mais restrito a teólogos e mesmo estes, convidados especialmente para o fórum. Desta vez, no centro carmelitano de Langata, distrito de Nairóbi, o fórum foi aberto e contou com uma participação mais significativa de não teólogos profissionais. Alguns consideraram isso muito positivo. Outros lamentaram certo risco de esvaziamento da proposta inicial. Partilho com vocês o que me pareceu mais claro.

1. Como se desenvolveu este 2º Fórum de Teologia

O fórum começou por uma celebração de caráter ecumênico e africano com os ritmos e cânticos da Israeli African Inland Church Niniveh, uma das tantas Igrejas independentes que florescem na África. Através destes cânticos, a assembléia adorou a Deus como mãe vulnerávele invocou todos os antepassados para vir aqui caminhar conosco. Um pastor de Gana leu Isaías 65 Vou fazer um céu novo e uma terra novae o pastor M. Dandala, secretário geral da AACC (Conselho das Igrejas de toda a África), que tem sede em Nairóbi, comentou: Por que a África já tão provada e explorada ainda deve pagar a mais pelas mudanças climáticas provocadas pelos 20% do mundo rico?.
Fiel à metodologia que a Teologia da Libertação sempre procura seguir ver, julgar e agir, o primeiro dia foi marcado por uma brilhante apresentação de François Houtard sobre a realidade mundial e as conseqüências do atual modelo de globalização para os empobrecidos da terra. Houtard afirmou que o neo-liberalismo atual ataca em três frentes. No plano social, torna o trabalho cada dia mais precário e sem segurança social. Uma empresa lucrativa é a que terceiriza serviços, diminui o número de empregados e provoca desemprego. No plano político, procura diminuir o papel do Estado, privatizando todos os serviços públicos. No plano ecológico, destrói a natureza e agora faz planos mirabolantes para obter lucro com o aquecimento do planeta. Ele sublinhou ainda a função colonizadora da dívida externa dos países oprimidos, especialmente da África e as conseqüências dos subsídios dos EUA e da Europa para seus produtos agrícolas sobre a agricultura dos países pobres do mundo.

Teólogos, como Jon Sobriño, pela América Latina, Rohan Silva, pela Ásia e Tinylko Maluleke, pela África ajudaram a assembléia a aprofundar as conseqüências desta realidade para a teologia e a ação das Igrejas nos diversos continentes. A manhã do segundo dia foi dedicada à realidade e às teologias da África. John Mary Lukwata e Philomena Mwara conduziram esta reflexão. À tarde, os participantes se dividiram em grupos para mergulhar, ao menos por algumas horas, nos subterrâneos da humanidade. Um grupo visitou Kibera e outro, Korogocho, duas das maiores barracópolis (favelas) de Nairóbi. Um terceiro visitou um centro coordenado pelas irmãs de Madre Tereza, situado no coração de Huruma, outra imensa cidade de barracos. Em Korogocho, os visitantes foram recebidos por representantes de comunidades eclesiais católicas, mas também por representantes dos pastores de outras Igrejas cristãs. J. Oluoch, um jovem católico recepcionou os visitantes dizendo: Vocês não vieram aqui em Korogocho para ver um zoológico de sofrimento humano. Aqui, vocês encontrarão esperança, alegria de viver, capacidade de lutar e de dançar a vida[1][2]. Muitos consideraram esta tarde de comunhão com os mais pobres o ponto alto do Fórum.

No terceiro dia, se organizaram grupos de interesse que aprofundaram temas como as Teologias Negras, Indígenas, Eco-feministas, o confronto entre a teologia cristã e o Império global e diversos outros temas. Senti falta de um grupo mais específico sobre Teologia Africana da Libertação e também uma reflexão teológica mais profunda sobre o encontro do cristianismo com as religiões tradicionais dos diversos povos da África. Sobre a teologia asiática, o teólogo coreano Kim Yong Bock, que participou do grupo sobre o cristianismo e a globalização, afirmou: é preciso partir do Jesus asiático que desafiou o Império Romano. Hoje, a religião cristã se tornou religião do Império. É preciso libertar o Cristo deste jugo, através de um ecumenismo na solidariedade contra o Império.

No quarto e último dia, em dois painéis, tentou-se estabelecer uma síntese do tema geral. O primeiro tratou da Espiritualidade inter-religiosa para a libertação. Dele participaram um islamita (Dr. Abdala Ibrahim Farah), um estudioso das religiões africanas tradicionais (Dr. L. Magesa), um hinduísta (Purshottam Rao) e pelo cristianismo o professor Patrick Ryan (que chegou, de certa forma, a defender o presidente Bush e a justificar a invasão do Iraque, por causa do perigo do fundamentalismo islâmico). Vários da assembléia reagiram fortemente a este tipo de colocação. Um outro professor muçulmano da África do Sul lançou a pergunta que, certamente, mais inquietou a maioria dos presentes: O que há de errado com vocês, cristãos, que o Império não considera vocês uma ameaça, como está considerando a nós do Islã?.

O segundo painel, à tarde, com Juan José Tamayo (da Espanha), Tereza Okure (da Nigéria) e Vuyani Vellen (da Ásia) foi sobre Espiritualidade e Respeito à Diversidade. A sessão conclusiva do fórum foi coordenada por Sérgio Torres, pelo bispo M. Dandala, presidente do Conselho de Igrejas Cristãs da África e pelo bispo Desmond Tutu, prêmio Nobel da Paz. Ele encantou a todos com uma palavra simples, mas profundamente alegre e de compromisso com os oprimidos do mundo.

2 Constatações que queimam o coração

Em um fórum como este, mais importante do que chegar a consensos ou elaborar belos documentos de conclusão é que todos/as os/as participantes aceitem se colocar em discussão[2][3] e se fortaleça a articulação entre as diversas entidades e grupos nas bases. Sobre este ponto de vista, foi certamente bom para alguns/mas teólogos/as africanos/as, ainda presos a categorias européias, terem participado de um culto inspirado na espiritualidade dos índios maya e terem escutado como, na América Latina, as religiões tradicionais dos povos começam a ser valorizadas por setores mais abertos da Teologia. Do mesmo modo, foi importante para vários teólogos latino-americanos, talvez, mais inseridos nas universidades do que nos bairros populares, entrar em contato com a pobreza terrível de Korogocho e Kibera, barracópoles perante as quais as favelas mais pobres da América Latina parecem bairros de luxo. Ali, estes teólogos e teólogas encontraram missionários, religiosas e leigos, que, mesmo sem elaborar uma teologia sistemática, vivem o que os primeiros teólogos da libertação propunham. Habitam em meio à favela e dão suas vidas aos crucificados de hoje. São pobres no meio dos pobres.
Sobre os efeitos do atual modelo de globalização sobre o mundo dos pobres, o professor Malukele (da África do Sul) lançou a pergunta: Que tipo de religião é esta que aceita conviver com uma realidade como esta?. Conforme Jon Sobriño, a Igreja Católica continua tentada à heresia do docetismo, isto é, do desligamento da realidade. Principalmente na Europa, a Igreja continua mergulhada em um sono dogmático. Kim Yong Bock resumiu: O Império cooptou o cristianismo. O professor Maluleke insistia: O importante é passar para a ação concreta.

Assim como diante do nazismo e do apartheid, regimes responsáveis pelo assassinato de milhões de pessoas, as Igrejas cristãs foram chamadas a serem confessantese a denunciar a monstruosidade que estava ocorrendo, assim também neste início de século, as Igrejas devem advertir a humanidade de que o capitalismo neo-liberal está perpretando um verdadeiro genocídio. Já em 1989, para preparar a conferência do Conselho Mundial de Igrejas sobre Justiça, Paz e Defesa da Criação, Ulrich Duchrow escrevia: Quando vemos os mecanismos de um sistema econômico que, ano após ano, cria milhões de vítimas da fome e milhões de desempregados, quando vemos as florestas morrerem para permitir o lucro das empresas e vemos as superpotências continuarem a louca corrida armamentista, devemos admitir que estamos diante de um monstro demoníaco. De fato, os capítulos 13 a 18 do Apocalipse, com a sua descrição da Fera que sobe do abismo, são ainda a melhor descrição do atual sistema econômico, político e de seus meios de comunicação[3][4].

No início dos anos 60, o pastor Martin Luther King falava de uma parálisis da realidade. Na mesma época, o papa João XXIII afirmou que a Igreja deveria se tornar Igreja dos pobres. Ora, tantos anos depois, a maioria da hierarquia e o conjunto da estrutura pastoral das Igrejas ainda não parecem ter se dado conta deste apelo divino urgente. Ao não assumir claramente um compromisso de solidariedade com os povos que Jon Sobriño denomina de crucificados do mundo, as Igrejas mostram que ainda não se converteram ao chamado de Jesus de segui-lo no caminho da cruz. Não se trata de canonizar a pobreza como virtude, nem de idealizar os pobres como se fossem todos bons e justos e sim de denunciar a organização criminosa dos paises e empresas que continuam a colonizar e escravizar os povos do sul. Ao menos, as Igrejas devem testemunhar que não existe espiritualidade sem a solidariedade na defesa da vida e na comunhão com as vítimas deste mundo iníquo.

O papa João Paulo II reconheceu e pediu perdão ao mundo pela omissão e participação da Igreja Católica nos crimes da escravidão negra e indígena de séculos passados. Não é possível deixar que continuem morrendo, hoje, milhões de vítimas deste sistema que é tão ou mais cruel do que á escravidão dos séculos passados, para que só, no futuro, algum papa (se ainda houver papas) reconheça o pecado da Igreja e peça perdão.

É urgente que, ao menos, na América Latina, África e Ásia, as Igrejas saiam de sua letargia, para não ser, mais tarde, condenadas pela humanidade como cúmplices de omissão, frente ao terrível genocídio que o neoliberalismo conscientemente provoca e realiza neste mundo. Como não se preocupar com isso, ao se ler os documentos preparatórios para a 5ª conferência geral do episcopado latino-americano em Aparecida do Norte (maio 2007) e se deparar com uma Igreja Católica ainda, por demais, voltada sobre si mesma?

Uma questão que o 2º Fórum de Teologia não falou, mas certamente provocou no coração de muitos foi a pergunta se, ao menos, os/as teólogos/as da libertação se mantêm fiéis à inspiração original ou se muitos também abandonaram a inserção no meio dos pequeninos e se converteram a uma teologia liberal, capaz de dialogar com as escolas européias, mas desligada do compromisso social direto e libertador.

É claro que a luta contra a pobreza não pode repetir os métodos dos primeiros tempos da teologia da libertação. Neste fórum, se fizeram comunicações sobre o bom caminho percorrido pelas teologias afro, índias e ecofeministas. À medida que contribuem com a promoção humana dos grupos negros, índios e feministas, estes movimentos teológicos têm caráter libertador. O desafio é que estas teologias contextuais não se restrinjam a pesquisas de teses especializadas e não se isolem em guetos específicos. Elas são chamadas a se inserir na caminhada maior do povo mais pobre e a participar da grande caminhada por um novo mundo possível para todos. Por isso, a questão lançada por um dos participantes do fórum, o asiático Rowan Silva interpela a todos: Se não estivermos dispostos a pagar o preço de nos colocarmos do lado dos pobres, nossa teologia é inútil. Ele insistiu na importância de uma Teologia das Religiões e explicou que, ao menos na Ásia, o cristianismo precisa de um batismo de imersãonas águas das grandes religiões da Ásia, como também de ir ao Calvário com os mais pobres.

Talvez por isso, em diversos grupos e oficinas temáticas, muitos afirmaram que a espiritualidade para um novo mundo possívelnão só não pode ser restrita às instituições religiosas, como deve ser livre e independente dos dogmas e das estruturas religiosas. A European Network Church on the Move (Rede Européia de Igreja pela Liberdade) coordenou um dos workshops mais concorridos. Falou da atual crise da religião(não só das Igrejas) e como esta espiritualidade nova deve ser necessariamente aceitar ser pós-cristã (a realidade da sociedade moderna o é) e ecumenicamente laica ou secular.

3 Questões para o caminho a seguir

Este fórum se encerrou sem se dizer claramente se haverá um próximo fórum. Nos corredores, vários se perguntavam por que os mais famosos teólogos/as da libertação não vieram a um fórum como este. A resposta mais imediata é a questão econômica. Entretanto, existe também o fato de que, desde os anos 80, nos ambientes católicos, a discussão teológica tem sido posta sob suspeita e, muitas vezes, tem sido até perseguida pelo Vaticano e por setores da hierarquia. Só sabe o que significa isso quem sofreu na pele algum destes processos canônicos tão secretos que nem permitem defesa. Vários teólogos e teólogas têm sido marginalizados e obrigados a trabalhar a sós ou em grupos restritos. Como, agora, refazer um espírito de trabalho em comum e recriar o interesse de dialogar que um fórum como este supõe?

Evidentemente, este problema diz mais respeito aos católicos e o Fórum Mundial de Teologia é de natureza ecumênica. Entretanto, apesar disso, não só a maioria dos participantes deste fórum era católica, como a questão ecumênica ainda tem sido pouco tratada. Em diversos grupos, o fórum falou de teologia pluralista, mas este assunto não me pareceu ser ainda uma dimensão central para a maioria dos participantes. Por isso, o fórum deu a impressão de se concluir sem ter conseguido aprofundar suficientemente o tema. Mas, é possível aprofundar uma espiritualidade nova para uma organização alternativa do mundo, restritos a um ambiente e cultura das Igrejas cristãs?

No dia seguinte ao encerramento do fórum de teologia, começou o 7º Fórum Social Mundial, desta vez, em Nairóbi. Uma novidade deste fórum é que, mais do que os anteriores, possibilitou aos participantes um encontro pessoal com situações de pobreza, com as quais muitos norte-americanos, europeus e mesmo latino-americanos nunca antes haviam se defrontado de forma tão direta. No próprio FSM, não se falou de espiritualidade. Entretanto, um dos participantes que preferiu se manter anônimo declarou: Não participo de nenhuma religião, nem me ponho a questão de Deus, mas vi esta multidão de pobres que conseguiu entrar nas atividades do Fórum. Ao ver a alegria e a criatividade impressionante desta gente, me sinto interpelado em meu ser mais profundo. Não sei o que é espiritualidade, mas imagino que seja esta energia de solidariedade que nos desafia a mudar nossa forma de viver.


[1][2] - Cf. ALEX ZANOTELLI, Dal Social Fórum dei Teologi, nel sito Nigrizia.it, giorno 19/01/07.

[2][3] - Cf. CARTA DE PRINCÍPIOS DO FÓRUM SOCIAL MUNDIAL, (aprovada e assinada pelas entidades que constituem o Comitê de Organização do Fórum Social Mundial, aprovada com modificações pelo Conselho Internacional do Fórum Social Mundial, no dia 10 de junho de 2001. In Fórum, n. 46/ janeiro de 2007, p. 42.

[3][4] - citado por ALEX ZANOTELLI, Da Korogocho con passione, Lettere dai sotterranei della vita e della storia, Bologna, EMI, 2006, p. 10.


- Marcelo Barros, Monge beneditino, teólogo e escritor. É assessor das comunidades eclesiais de base e da Pastoral da Terra. Tem 30 livros publicados. O mais recente é Dom Helder Câmara, profeta para os nossos dias, Ed. Rede da Paz, Goiás, 2006.

Fonte: Informativo Ano 8 - 05 de FEVEREIRO – 2007
REDE de CRISTÃOS

https://www.alainet.org/pt/articulo/119124
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