Medo
21/10/2007
- Opinión
Pensador profundo e observador atento da realidade, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman diz que o medo é líquido. Pensando bem, creio ser mais apropriado afirmar que é pastoso, gelatinoso. Vai se esgueirando e colando nas paredes da garganta, fechando-a lentamente e paralisando corpo e coração como um todo. Sólido, líquido ou gasoso, o fato é que o medo reina triunfante e talvez mais poderoso do que nunca neste início de século XXI. Sob seu império, os seres humanos se encolhem e confinam, criando para si esconderijos e muralhas onde possam passar despercebidos ao olhar de seus semelhantes.
Medo da violência urbana. Nas cidades, a violência está de atalaia, esperando a cada um com seu bote mortal. Em cada esquina, em cada momento, em cada suspiro. Mesmo não participando do tiroteio, a bala perdida nos encontra e se aloja em nosso corpo. Mesmo não sendo de briga, estávamos passando no lugar errado no momento errado, na hora da briga. Mesmo não sendo ricos, nosso relógio chama a atenção do menino de rua que nunca teve um. Mesmo com cara limpa o traficante foge da polícia nos derrubando na passagem e nos fazendo vítimas inadvertidas de um fortuito acaso.
Medo do outro, do diferente. Qualquer um com aparência mais ou menos diferente que atravesse nosso caminho é olhado como bizarro e imediatamente excluído do convívio. É de outra raça, de outro sexo, de outra cor, de outra religião, de outra posição política, de outra classe social. Sua alteridade é incômoda e importuna. Remete-nos à nossa mesmidade, que se revolta furibunda diante da ousadia do outro que teima em ser outro e diferente. E atrevidamente nos interpela desde sua alteridade dizendo que o mundo não começa nem termina em nós mesmos.
Medo de amar. Talvez essa seja a mais funesta conseqüência de todos esses medos que crescem e vão formando um sombrio e tenebroso império que ameaça esmagar-nos nesse início de século. Assassinando nosso desejo de viver, nossa abertura confiante ao outro, nossa capacidade de abertura para as novas relações e oportunidades, o medo com suas unhas geladas escava dentro de nós um vácuo existencial que vai nos levar a ter medo de tudo. Inclusive e mesmo e sobretudo de amar.
Pois amor, como dizia Camões, é fogo que arde sem se ver, é ferida que dói e não se sente, é um descontentamento descontente, é dor que desatina sem doer. Perigoso porque nos arrebata, nos faz sair de nós mesmos, do próprio amor, querer e interesse, e iniciar um êxodo em direção ao outro, que passará a dispor do melhor de nós mesmos: capacidades, valores, energias, criatividade, tempo, dedicação.
Perigosa essa vida que teima em só encontrar sentido verdadeiro na saída de si em direção ao outro, enfrentando pelo caminho os perigos da violência, da diferença do outro, do futuro que não conhecemos. E, no entanto, em meio a esses perigos que são demais é quando parece que a vida vale a pena. Só nas infinitas formas que o amor inventa, desde a caridade mais oblativa à solidariedade mais planejada, o ser humano realiza plenamente sua vocação. O império do medo que hipertrofia os perigos para reinar soberano tem seus dias contados enquanto a humanidade ainda acreditar no amor.
- Maria Clara Lucchetti Bingemer é teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Autora de "Simone Weil - A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco).
Medo da violência urbana. Nas cidades, a violência está de atalaia, esperando a cada um com seu bote mortal. Em cada esquina, em cada momento, em cada suspiro. Mesmo não participando do tiroteio, a bala perdida nos encontra e se aloja em nosso corpo. Mesmo não sendo de briga, estávamos passando no lugar errado no momento errado, na hora da briga. Mesmo não sendo ricos, nosso relógio chama a atenção do menino de rua que nunca teve um. Mesmo com cara limpa o traficante foge da polícia nos derrubando na passagem e nos fazendo vítimas inadvertidas de um fortuito acaso.
Medo do outro, do diferente. Qualquer um com aparência mais ou menos diferente que atravesse nosso caminho é olhado como bizarro e imediatamente excluído do convívio. É de outra raça, de outro sexo, de outra cor, de outra religião, de outra posição política, de outra classe social. Sua alteridade é incômoda e importuna. Remete-nos à nossa mesmidade, que se revolta furibunda diante da ousadia do outro que teima em ser outro e diferente. E atrevidamente nos interpela desde sua alteridade dizendo que o mundo não começa nem termina em nós mesmos.
Medo de amar. Talvez essa seja a mais funesta conseqüência de todos esses medos que crescem e vão formando um sombrio e tenebroso império que ameaça esmagar-nos nesse início de século. Assassinando nosso desejo de viver, nossa abertura confiante ao outro, nossa capacidade de abertura para as novas relações e oportunidades, o medo com suas unhas geladas escava dentro de nós um vácuo existencial que vai nos levar a ter medo de tudo. Inclusive e mesmo e sobretudo de amar.
Pois amor, como dizia Camões, é fogo que arde sem se ver, é ferida que dói e não se sente, é um descontentamento descontente, é dor que desatina sem doer. Perigoso porque nos arrebata, nos faz sair de nós mesmos, do próprio amor, querer e interesse, e iniciar um êxodo em direção ao outro, que passará a dispor do melhor de nós mesmos: capacidades, valores, energias, criatividade, tempo, dedicação.
Perigosa essa vida que teima em só encontrar sentido verdadeiro na saída de si em direção ao outro, enfrentando pelo caminho os perigos da violência, da diferença do outro, do futuro que não conhecemos. E, no entanto, em meio a esses perigos que são demais é quando parece que a vida vale a pena. Só nas infinitas formas que o amor inventa, desde a caridade mais oblativa à solidariedade mais planejada, o ser humano realiza plenamente sua vocação. O império do medo que hipertrofia os perigos para reinar soberano tem seus dias contados enquanto a humanidade ainda acreditar no amor.
- Maria Clara Lucchetti Bingemer é teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Autora de "Simone Weil - A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco).
https://www.alainet.org/pt/articulo/123875
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