Fermento na massa

06/01/2008
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Por que um homem que pregou a submissão à vontade de Deus, o amor aos inimigos, o poder como serviço, foi assassinado na cruz? O que havia de tão ameaçador na pregação de Jesus, a ponto de dois poderes políticos, o romano representado por Pilatos, e o judaico, representado pelo Sinédrio, se unirem para condená-lo?

Assim como soa ridículo culpar os atuais habitantes de Roma pela morte de Jesus, não é justo reforçar o anti-semitismo atribuindo aos judeus a culpa pela condenação do nazareno. Há que ler os textos dentro de seus contextos.

A terra dos palestinos, invadida, cerca do ano 1.000 a.C., pelos hebreus provenientes do Egito, foi ocupada, no século VI a.C., pelos babilônios e, em seguida, controlada pelos persas, pelos gregos, pelos ptolomeus greco-egípcios e pelos selêucidas greco-sírios. No tempo de Jesus, era uma colônia do Império Romano, assim como, hoje, Porto Rico, no Caribe, é uma colônia dos EUA.

Jesus nasceu sob o imperador Augusto. Segundo a Eneida, de Virgílio, ele descendia das relações da deusa Vênus (Afrodite) com o humano Anquise. Havia sido concebido divinamente por Apolo e Átia. E foi divinizado por um decreto do Senado romano por ocasião de sua morte, no ano 14 de nossa era.

Como seria possível, em tal contexto, distinguir entre religião e política? Tibério, que sucedeu Augusto, era chamado “filho de Deus”, e em sua homenagem Herodes Antipas, governador da Galiléia (e assassino de João Batista), construiu, à beira do lago onde Jesus pescava com seus discípulos, a cidade de Tiberíades. Portanto, só Roma detinha o reino, o poder e a glória.

Dentro desse contexto, anunciar o Reino de Deus, um outro reino que não o de César, era o mesmo que, hoje, propagar um outro sistema social que não o capitalismo. Esta a subversão de Jesus: desmerecer o reino de César em favor do reino de Javé, o Deus dos judeus. Os romanos respeitavam a crença judaica, desde que o povo se sujeitasse a ser vassalo de Roma. Porém, por que suplicar a Javé “venha a nós o vosso reino”?

Jesus nem sequer possuía uma moeda romana quando lhe perguntaram se era lícito pagar imposto a Roma. E ao responder “dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” os fariseus entenderam o recado: esta terra não é de César, como é esta moeda. Esta terra é de Deus e, portanto, não se justifica a sua dominação por estrangeiros.

“Seja feita a sua vontade assim na terra como no céu”. No céu predomina, todos sabemos, a vontade de Deus. Jesus propugna que o mesmo ocorra na Terra. E a vontade de Deus é que todos “tenham vida e vida em abundância” (João 10, 10). Portanto, ao contrário do reino de César, no de Deus não há lugar para a opressão, a discriminação, a exclusão.

Indignado com a pretensão de Jesus, Pilatos mandou afixar na cruz a inscrição: “Rei dos judeus”. Era a forma de desmoralizar a descabida proposta de contrapor ao todo poderoso reino de César um outro reino, o reino do Pai nosso que está no céu e que haverá de assegurar a todos o “pão nosso”, os bens necessários a uma vida digna e feliz.

Para Jesus, o Reino de Deus não se situava “lá em cima” e sim lá na frente, no horizonte histórico. Não na utopia, que significa “lugar nenhum”, e sim da eutopia, um “lugar muito bom”.

Hoje, o reino capitalista neoliberal, hegemonizado pelo governo dos EUA e idolatrado na onipresença do Mercado, se contrapõe ao Reino de Deus, cujas características estão descritas no Sermão da Montanha: viveremos sem ambições desmedidas, com espírito despojado; promoveremos a paz; teremos fome e sede de justiça; seremos misericordiosos; agiremos com mansidão; e encararemos como bênção, e não como maldição, a perseguição por causa da justiça.

Resta-nos transformar os valores de nossa espiritualidade em projetos políticos, de modo a fazer de nossa fé efetivo fermento na massa.

- Frei Betto é escritor, autor da biografia de Jesus “Entre todos os homens” (Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/124995
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