Reciprocidade?

16/03/2008
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Para mim, reprocidade sempre foi uma palavra bela e positiva. Tem a ver com comunicação, relação, interlocução, troca, permuta. Em suma, é daquelas palavras que nos lembram que somos humanos, relacionais, feitos para o encontro com a alteridade do outro, única fonte de crescimento e realização.

No entanto, nos últimos dias, ao ler o noticiário de medidas truculentas tomadas pelas autoridades espanholas contra estudantes que iam à Europa apresentar trabalhos acadêmicos e passavam pela Espanha em conexão, a conotação positiva esfumou-se no ar. Mais ainda quando do lado de cá do Equador as mesmas medidas truculentas foram tomadas em patente desejo de vingança.

Longe de mim minimizar a razão de quem foi humilhado, maltratado injustamente e deseja ver seus direitos respeitados. Mais longe ainda desfazer da importância de respeitar os acordos que prevêem a reciprocidade como um instrumento apto a fazer com que nações se tratem mutuamente com consideração e se mantenham dentro dos limites nos países estrangeiros que concedem hospitalidade aos imigrantes de todas as latitudes.

É triste, no entanto, ver esse episódio evoluindo para um quadro de retaliação e não de diálogo. É triste ver o hospitaleiro povo espanhol protagonizando ações violentas e injustas para com inocentes cidadãos brasileiros que ali vão estudar ou mesmo trabalhar e experimentar melhores oportunidades. É tristíssimo ver o povo brasileiro, com sua fama de cordial, devolver na mesma moeda a ofensa recebida, esmerando-se em ser ainda mais duro com os visitantes, os turistas e todos os espanhóis que pisam a Terra de Santa Cruz.

Não cabe aqui uma leitura ingênua do que se passa entre os dois países. É fato que muitos brasileiros entram na Espanha ilegalmente e permanecem ilegais, sem pagar impostos ou taxas devidas, burlando a lei e, às vezes, até mesmo cometendo ações condenáveis e vergonhosas. É fato também que muitos espanhóis igualmente aportam no Brasil em busca do turismo sexual, do dinheiro fácil e da exploração alheia. Se dúvida houvesse, bastaria relembrar o tristíssimo episódio do Bateau Mouche no Rio de Janeiro, na noite de Ano Novo de 1989. As pessoas choravam seus entes queridos, enquanto os donos, espanhóis, tentavam de todas as maneiras evadir-se da Justiça. As medidas de restrição ao ingresso de tais pessoas é perfeitamente compreensível e legítima.

Impressiona-me, no entanto, como o mundo hoje parte para soluções intolerantes e violentas com extrema e primária rapidez antes, muito antes de esgotar as possibilidades do diálogo e da negociação diplomática. Em nosso caso, com a tradição que temos de ganhar as batalhas sobre a mesa, com figuras como o Barão do Rio Branco povoando nosso imaginário, é realmente espantoso que tão rapidamente devolvamos o golpe com destreza e ferocidade, antes de procurar saídas mais pacíficas.

Por outro lado, é aterrador ver o mundo desenvolvido expulsando para fora de suas fronteiras, sem contemplação nem clemência, os imigrantes que aportam em seu solo em busca de uma vida menos desumana para si e suas famílias. Parece ter se esvaído a memória de quando acontecia o inverso e os europeus, fugindo de uma Europa arrasada por duas guerras mundiais, vinham para o hemisfério sul em busca de paz e chances de trabalho.

Neta de imigrantes, com avó catalã e avô italiano, o que acontece hoje entre Brasil e Espanha me dói no coração. Sinto que é feita a mim a ofensa feita a meu povo. Mas quando olho o agressor, não consigo não sentir que aquele povo também é meu, de fato e de sangue, mas sobretudo e antes de tudo por partilharmos a mesma condição humana.

Por isso, falar de reciprocidade no sentido em que hoje se fala me parece inadequado. O verdadeiro sentido da reciprocidade está no mandato bíblico do capítulo 22 do Livro do Deuteronômio quando Deus ordena ao seu povo não prejudicar o assalariado pobre e necessitado, não violar os direitos do estrangeiro, do órfão e da viúva. Mas, ao contrário, dar-lhes generosamente o que sobra da colheita da oliveira e da vindima. E esta ordem é dada pelo Senhor a fim de que o povo se recorde que foi escravo no Egito e que, portanto, não tem direito a escravizar ou oprimir os outros, seja por que motivo for.

Maria Clara Bingemer é autora de "A Argila e o espírito - ensaios sobre ética, mística e poética" (Ed. Garamond), entre outros livros. (www.users.rdc.puc-rio.br/agape)

Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio.
https://www.alainet.org/pt/articulo/126325
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