Os grandes e os pequenos da integração energética
22/09/2008
- Opinión
Em toda a América do Sul se registra um crescimento das economias associado a um aumento da demanda externa de matérias primas e commodities, impulsionado por sua vez pelo crescimento das economias emergentes, particularmente as asiáticas. Isso levou a um aumento na demanda de energia da região. Porém, tal incremento se deparou com alguns problemas regionais antigos e com dificuldades derivadas do crescimento do consumo energético global. Neste contexto, o fantasma – e em alguns casos, a realidade – da crise energética sobrevoou as preocupações dos governos e da opinião pública sul-americana nos últimos anos.
Como reação a esta situação, foram vistos grandes anúncios, formulados nas sucessivas cúpulas dos presidentes e ministros da energia, nos quais se apresentam projetos conjuntos, acordos de complementação energética, programas comuns e uma larga lista de declarações de cooperação e compromisso.
Assim foram feitos os anúncios da construção do "Gasoduto do Sul", que uniria Puerto Ordaz (Venezuela) a Buenos Aires (Argentina), alimentando de passagem várias das cidades mais importantes do Brasil (Manaus, Fortaleza, São Paulo, Rio de Janeiro). Também o "Anel Energético do Sul", que uniria os poços de Camisea, no Peru, e de Tarija, na Bolívia, a uma rede de gasodutos que alimentaria todos os países do Cone Sul. Foi lançada a Petroamerica (depois Petrosur e Petrocaribe), foi criado o Conselho Energético da América do Sul e até houve uma cúpula especial para acertar compromissos para a eficiência energética. Agora parece ter chegado a hora do ‘acordo nuclear’ impulsionado por Brasil e Argentina
A outra face
Como contrapeso aos anúncios de projetos e compromissos de cooperação mútua, a batalha pela energia se mostrou com toda sua crueza em vários conflitos de interesses entre os países. Alguns são particularmente dolorosos, quando opõem nações pequenas a grandes. O último exemplo de tal tipo de controvérsia se deu (e ainda está latente) quando o atual presidente do Paraguai, Fernando Lugo, então em campanha eleitoral, anunciou sua intenção de rediscutir o Tratado de Itaipu, que estabelece as condições de exploração da represa compartilhada com o Brasil. A resposta mais expressiva foi dada pelo presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) do governo brasileiro, Mauricio Tolmasquin, que afirmou que, na construção de Itaipu, "o Paraguai participou apenas com a água, enquanto o Brasil aportou o financiamento e o ‘know-how’". Essa foi sua maneira de deixar claro que o ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, o diretor brasileiro da Itaipu Binacional, Jorge Samek, e até o próprio presidente Lula expressaram: o Tratado de Itaipu não se renegocia, ainda que as condições impostas ao Paraguai sejam leoninas.
Há muitos exemplos deste tipo: as disputas entre Chile e Argentina nos cortes de gás, as polêmicas entre Bolívia e Chile pelo envio de gás em troca da saída para o mar, as represas que o Brasil está construindo sem consultar a Bolívia no rio Madeira – um rio que ambos dividem -, a 40 km da fronteira, os conflitos com a Petrobras quando a Bolívia nacionalizou os hidrocarbonetos etc.
Integração gasífera
A Argentina tinha um projeto de construir o Gasoduto do Noroeste Argentino, obra que lhe custaria 5 bilhões de dólares e permitiria importar da Bolívia gás suficiente para alimentar várias províncias. Mesmo assim, as expectativas de um estancamento no aumento da produção gasífera boliviana, produto da desaceleração dos investimentos provocada pela nacionalização e acrescentada atualmente pelos conflitos internos, estão empurrando o governo argentino a reduzir para um terço a capacidade de transporte daquele gasoduto.
Da Bolívia, reclama-se a Argentina para que cumpra sua parte no compromisso que assumiram ambos os países de construir o gasoduto. A YPFB (a empresa estatal boliviana) exige de seu par argentino (ENARSA) uma "garantia de pagamento", pelo gás que iria lhe exportar no futuro, como forma de dar segurança aos investidores que poderiam ampliar a capacidade de produção do gás a ser exportado. Entretanto, autoridades das províncias gasíferas reclamaram por um aumento nos preços, pois entendem que estão "subsidiando" o desenvolvimento argentino ao cobrar 7 dólares o milhão de BTU enquanto pagam 17 dólares pelo gás liquefeito que chega a elas por meio de barcos vindos de Trinidad e Tobago.
A Argentina e o Brasil (que também possui contratos com a Bolívia de longo prazo e de grandes volumes) estão pensando em fazer instalações ou navios de regasificação de gás natural liquefeito para importar esta energia de outras costas mais longínquas. No entanto, outros países da região trabalham essa idéia. Portanto, a decisão do governo argentino de reduzir o tamanho do gasoduto poderia ser um golpe definitivo para as aspirações bolivianas de lhe exportar gás.
Um novo anúncio
Esses breves exemplos dão conta de uma profunda disparidade entre as eloqüentes declarações das cúpulas energéticas sul-americanas e a realidade. Nem a Argentina nem o Brasil parecem dispostos a ceder alguma coisa em suas posições na hora de comprar energia da Bolívia e do Paraguai.
Dentro de tal contexto, anuncia-se um ‘acordo nuclear’ entre as maiores economias do Cone Sul. A Argentina reiniciou as obras de sua terceira central nuclear (Atucha II), paralisada há mais de 20 anos, e o Brasil se prepara para iniciar sua também terceira plataforma atômica (Angra III). É preciso ver qual será o alcance final desse acordo. A cooperação nuclear sempre foi um assunto difícil entre ambos os países, dada sua relação com a indústria armamentista e os segredos militares.
Este pode ser mais um dos tantos anúncios vazios a que os governos nos acostumaram. Porém, caso se concretize, estaria sendo dado um impulso muito forte à tecnologia nuclear na região, deixando sem resolução os problemas de integração com os seus demais vizinhos.
- Gerardo Honty é pesquisador de assuntos de energia e mudança climática no CLAES (Centro Latino-Americano de Ecologia Social) e no D3E (Desenvolvimento, economia, ecologia e eqüidade), em Montevidéu, Uruguai.
Traduzido por Gabriel Brito.
Reproduzido en Correio da Cidadania, Sao Paulo. 22-Set-2008 -
Como reação a esta situação, foram vistos grandes anúncios, formulados nas sucessivas cúpulas dos presidentes e ministros da energia, nos quais se apresentam projetos conjuntos, acordos de complementação energética, programas comuns e uma larga lista de declarações de cooperação e compromisso.
Assim foram feitos os anúncios da construção do "Gasoduto do Sul", que uniria Puerto Ordaz (Venezuela) a Buenos Aires (Argentina), alimentando de passagem várias das cidades mais importantes do Brasil (Manaus, Fortaleza, São Paulo, Rio de Janeiro). Também o "Anel Energético do Sul", que uniria os poços de Camisea, no Peru, e de Tarija, na Bolívia, a uma rede de gasodutos que alimentaria todos os países do Cone Sul. Foi lançada a Petroamerica (depois Petrosur e Petrocaribe), foi criado o Conselho Energético da América do Sul e até houve uma cúpula especial para acertar compromissos para a eficiência energética. Agora parece ter chegado a hora do ‘acordo nuclear’ impulsionado por Brasil e Argentina
A outra face
Como contrapeso aos anúncios de projetos e compromissos de cooperação mútua, a batalha pela energia se mostrou com toda sua crueza em vários conflitos de interesses entre os países. Alguns são particularmente dolorosos, quando opõem nações pequenas a grandes. O último exemplo de tal tipo de controvérsia se deu (e ainda está latente) quando o atual presidente do Paraguai, Fernando Lugo, então em campanha eleitoral, anunciou sua intenção de rediscutir o Tratado de Itaipu, que estabelece as condições de exploração da represa compartilhada com o Brasil. A resposta mais expressiva foi dada pelo presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) do governo brasileiro, Mauricio Tolmasquin, que afirmou que, na construção de Itaipu, "o Paraguai participou apenas com a água, enquanto o Brasil aportou o financiamento e o ‘know-how’". Essa foi sua maneira de deixar claro que o ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, o diretor brasileiro da Itaipu Binacional, Jorge Samek, e até o próprio presidente Lula expressaram: o Tratado de Itaipu não se renegocia, ainda que as condições impostas ao Paraguai sejam leoninas.
Há muitos exemplos deste tipo: as disputas entre Chile e Argentina nos cortes de gás, as polêmicas entre Bolívia e Chile pelo envio de gás em troca da saída para o mar, as represas que o Brasil está construindo sem consultar a Bolívia no rio Madeira – um rio que ambos dividem -, a 40 km da fronteira, os conflitos com a Petrobras quando a Bolívia nacionalizou os hidrocarbonetos etc.
Integração gasífera
A Argentina tinha um projeto de construir o Gasoduto do Noroeste Argentino, obra que lhe custaria 5 bilhões de dólares e permitiria importar da Bolívia gás suficiente para alimentar várias províncias. Mesmo assim, as expectativas de um estancamento no aumento da produção gasífera boliviana, produto da desaceleração dos investimentos provocada pela nacionalização e acrescentada atualmente pelos conflitos internos, estão empurrando o governo argentino a reduzir para um terço a capacidade de transporte daquele gasoduto.
Da Bolívia, reclama-se a Argentina para que cumpra sua parte no compromisso que assumiram ambos os países de construir o gasoduto. A YPFB (a empresa estatal boliviana) exige de seu par argentino (ENARSA) uma "garantia de pagamento", pelo gás que iria lhe exportar no futuro, como forma de dar segurança aos investidores que poderiam ampliar a capacidade de produção do gás a ser exportado. Entretanto, autoridades das províncias gasíferas reclamaram por um aumento nos preços, pois entendem que estão "subsidiando" o desenvolvimento argentino ao cobrar 7 dólares o milhão de BTU enquanto pagam 17 dólares pelo gás liquefeito que chega a elas por meio de barcos vindos de Trinidad e Tobago.
A Argentina e o Brasil (que também possui contratos com a Bolívia de longo prazo e de grandes volumes) estão pensando em fazer instalações ou navios de regasificação de gás natural liquefeito para importar esta energia de outras costas mais longínquas. No entanto, outros países da região trabalham essa idéia. Portanto, a decisão do governo argentino de reduzir o tamanho do gasoduto poderia ser um golpe definitivo para as aspirações bolivianas de lhe exportar gás.
Um novo anúncio
Esses breves exemplos dão conta de uma profunda disparidade entre as eloqüentes declarações das cúpulas energéticas sul-americanas e a realidade. Nem a Argentina nem o Brasil parecem dispostos a ceder alguma coisa em suas posições na hora de comprar energia da Bolívia e do Paraguai.
Dentro de tal contexto, anuncia-se um ‘acordo nuclear’ entre as maiores economias do Cone Sul. A Argentina reiniciou as obras de sua terceira central nuclear (Atucha II), paralisada há mais de 20 anos, e o Brasil se prepara para iniciar sua também terceira plataforma atômica (Angra III). É preciso ver qual será o alcance final desse acordo. A cooperação nuclear sempre foi um assunto difícil entre ambos os países, dada sua relação com a indústria armamentista e os segredos militares.
Este pode ser mais um dos tantos anúncios vazios a que os governos nos acostumaram. Porém, caso se concretize, estaria sendo dado um impulso muito forte à tecnologia nuclear na região, deixando sem resolução os problemas de integração com os seus demais vizinhos.
- Gerardo Honty é pesquisador de assuntos de energia e mudança climática no CLAES (Centro Latino-Americano de Ecologia Social) e no D3E (Desenvolvimento, economia, ecologia e eqüidade), em Montevidéu, Uruguai.
Traduzido por Gabriel Brito.
Reproduzido en Correio da Cidadania, Sao Paulo. 22-Set-2008 -
https://www.alainet.org/pt/articulo/129918?language=en
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