Ibsen às avessas

01/12/2008
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Saindo de um belo evento sobre gênero e libertação da mulher, a partir da famosa peça de teatro do norueguês Henrik Ibsen, "Casa de bonecas", deparo-me com chocante notícia no jornal. Uma mulher revela ter sido violentada repetidas vezes por um estranho que entrava cada noite em sua casa, aproveitando-se do fato de morar sozinha com os filhos. Com medo de ser morta, com medo de que os filhos acordassem e sofressem violência, ela nada dizia e suportava a tortura até que o agressor cansou-se e partiu.

A peça de Ibsen representa um marco na história da emancipação da mulher. Nora é casada com Torvald, um bem- sucedido advogado. Dona de casa e mãe de família, Nora é a típica mulher burguesa mimada pelo marido como boneca e posta à margem de todo e qualquer envolvimento com a realidade da vida e do mundo. Figura emblemática, enfeite bonito feito para divertir o dono, um dia Nora se dá conta de sua situação e rebela-se. Deixa a casa e a família, e sai para o mundo. Ibsen não nos conta o que foi feito dela.

Nora cansou-se de ser figura emblemática, enfeite e objeto de deleite visual e sexual. Cansou-se de ser mantida à margem da vida. Cansou-se de perceber que o marido não a respeitava, não a tratava como companheira. Cansou-se de viver com alguém que até então não havia percebido ser um estranho.

A irmã de Nora, anônima que não ousa revelar seu nome ao jornal que a entrevista, morava sozinha com os filhos. Não existia marido, não havia homem em seu universo. E por isso, avalia ela, o agressor sentiu-se à vontade para entrar em sua casa e abusar de seu corpo, submetendo-a à violência do estupro. Mais: por não haver homem para defendê-la, o agressor voltou uma noite após a outra, ao longo de vários dias, só indo embora e deixando-a em paz quando se cansou de usá-la.

Após o tempo de Nora, muita coisa mudou. A mulher foi fazendo lentamente sua passagem do espaço privado para o público. Abriu brechas no mercado de trabalho, disputou e entrou. E foi bem-sucedida. Hoje, muitas profissões outrora consideradas masculinas têm maioria de mulheres. A mulher conquistou o espaço público, sem deixar o doméstico.

Como conseqüência, a família mudou de configuração. Começaram a aparecer cada vez mais as famílias incompletas, famílias com núcleo em desagregação e, bem numerosas, famílias onde a mulher é cabeça de casal. Nestas, muitas vezes, o homem está ausente. Foi embora ou foi mandado embora e é a mulher que arca sozinha com o sustento da casa e a guarda dos filhos. Outras vezes, porém, o homem está presente. Mas como figura emblemática. Como enfeite e objeto identificador.

Emblema de que será esse homem, destruído pelo alcoolismo, humilhado pelo desemprego, que em nada ajuda e é apenas um peso a mais nos ombros dessa mulher que já tem que arcar com tão pesado cotidiano? Emblema da força que representa o masculino em um universo ainda machista e patriarcal. Se naquela casa morasse um homem, mesmo fraco, pusilânime, inexpressivo, a mulher não seria molestada pelos vizinhos ou por algum estranho que lhe invadisse a casa na calada da noite para satisfazer violentamente sua sexualidade frustrada.

Trata-se do universo de Ibsen invertido e pervertido. O homem é figura decorativa para proteger a mulher da agressão de outros homens. Enquanto Nora é a boneca com que o marido brinca e se distrai, o homem muitas vezes é o artificial escudo da mulher contra a violência que a ameaça constantemente.

Triste sociedade esta em que vivemos, onde o processo de emancipação da mulher cresce constantemente agredido pela violência masculina que não diminui. Triste sociedade onde homem e mulher, criados para o amor e a fecundidade, são tantas vezes inimigos que devem defender-se um do outro a fim de sobreviver. Mais de um século depois, Nora continua sendo um símbolo motivador para as mulheres que desejam encontrar-se como pessoas. Porém, muitas irmãs de Nora ainda sofrem caladas as conseqüências de ser quem são, sem encontrar a saída que as introduzirá no mundo encantado da liberdade.

 Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio.

Autora de "Simone Weil - A força e a fraqueza do amor" (Ed. Rocco).

http://wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape


 

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/131206?language=es
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