Holocausto: a memória das vítimas
- Opinión
A Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou, no dia 1 de novembro de
A data é significativa. Foi em 27 de janeiro de 1945 que os soviéticos liberaram o campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, na Polônia. Em Auschwitz morreram na câmara de gás muitos seres humanos notáveis como Edith Stein, Etty Hillesum, Maximilian Kolbe, assim como muitos, muitos outros. O grande pensador e escritor Elie Wiesel nos descreve em seu livro “Noite” os horrores dos trens que conduziam as vítimas da solução final de Hitler a Auschwitz. As mães enlouqueciam quando, das janelas dos trens, divisavam a fumaça que saía dos fornos crematórios. Algumas abandonavam os filhos à própria sorte, deixando de alimentá-los. Auschwitz foi e é até hoje sinônimo de horror e de morte.
Recentemente, o Papa Bento XVI visitou o campo e seu museu. Ali, rezou e perguntou a Deus o porquê de seu silêncio diante dos horrores que ali se cometiam. Em sua fé curvou-se diante do mistério do mal, da crueldade e do sofrimento humanos, sem deixar de enfatizar o mundo de perguntas sem respostas que geram no interior dos corações e mentes de todos os que, perplexos, se perguntam por que ao recordar a “shoa”, o holocausto nazista.
O texto da Resolução das Nações Unidas, ao instituir essa comemoração, rejeita qualquer questionamento de que o Holocausto tenha sido um evento histórico, e enfatiza o dever dos Estados-membros de educar futuras gerações sobre os horrores do genocídio, condenando todas as manifestações de intolerância ou violência baseadas em origem étnica ou crença.
Para que esses objetivos se tornem realidade, no entanto, é preciso levar muito a sério o conceito de memória subversiva que essa comemoração encerra. É preciso que as vítimas possam, elas mesmas, falar desde o silêncio que lhes foi imposto pela violência, pela tortura e pela morte. É preciso que a memória da dor não nos evoque ou invoque termos abstratos e despersonalizados, como o “sujeito” ou a “humanidade”. É necessário, e mesmo indispensável, que deixe claro tratar-se da alteridade de carne e osso, do outro concreto.
Trata-se de pessoas com nome e rosto; podia ser eu, mas não fui. E como eu continuo viva, sobrevivente e responsável, sou obrigada a não deixar que seja varrida pela implacável e alienada vassoura do esquecimento a memória dessas vítimas. É preciso que eu me empenhe e faça o que devo fazer, a fim de que estes e estas que pereceram vítimas do horror perpetrado por seus semelhantes possam continuar a falar e subverter a história oficial através de minha boca, meu pensamento, minha indignação, minha pena.
Pensadores como M. Horkheimer e W. Benjamin reivindicam a relação entre razão e memória quando disso se trata, de modo que o uso crítico do ato de recordar vá se perfilando como fundamento da razão prática, que se pode e deve desdobrar em atos concretos de solidariedade. Redescobrir o passado como modo de suscitar perspectivas desafiantes para um presente estabelecido sobre as despersonalizadas leis da troca e do mercado é fruto necessário e direto do exercício da memória subversiva.
A memória, nesse caso como em outros genocídios que mancham até hoje a história humana, tem valor de medação social, pois impede que aconteça aquilo que Adorno denuncia: “quando toda tradição se extingue, começa a marcha para a inumanidade”. A memória subversiva, no entanto, não quer ser simples expressão de um tradicionalismo, mas sim um modo de fazer frente a esse fruto envenenado do Iluminismo que é a razão abstrata, a-histórica e dessubjetivada. A memória, portanto, reclama e reivindica uma razão anamnética, que não reduza o ser humano a uma abstração conceitual sem referência aos processos sociais e históricos. Para que isso se dê, é preciso, é urgente que a narrativa retome seu lugar no proscênio da vida social. Somente a narrativa é o lugar onde a memória vive e pode viver.
Na narrativa, as vítimas são nomeadas, suas histórias de perigo e dor são narradas de novo e sempre de novo. A narrativa, então, se converte em expressão crítica e instrumento de união solidária com a dor do outro. Trata-se de manter acesa a chama de quem, vivo ou morto, reclama por justiça. A memória subversiva, portanto, não é um mero amor às tradições como se fossem peças de museu. É sim, amor, mas vivo e solidário para com as vítimas, formando com elas uma grande comunidade, que rompe a lógica do mercado e do interesse. Os eventos re-memorados e narrados são instigantes para o presente e têm urgência de futuro.
Celebremos neste final de janeiro de
- Maria Clara Bingemer, teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio, é autora de "A Argila e o espírito - ensaios sobre ética, mística e poética" (Ed. Garamond), entre outros livros. (wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape)
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