De racismo e de novas territorialidades no sistema mundo

24/04/2009
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Em 2001, a ONU realizou em Durban, África do Sul, a Conferência Mundial Contra Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata. O local não podia ser mais apropriado, pois aquele país acabava de por fim ao nefando regime de apartheid que lhe havia sido imposto pelos colonizadores. A conferência, infelizmente, terminou com cadeiras voando e sem que os participantes tenham conseguido dar cabo da sua agenda de trabalho. À época, preocupava aos delegados europeus a possibilidade de que fosse aprovada uma resolução que reconhecia a escravidão como crime de lesa-humanidade e, ainda, que pudesse haver alguma condenação a Israel por crime de racismo contra o povo palestino. Em 2009, nos vemos em Bruxelas novamente diante do triste espetáculo de uma reunião da ONU sobre racismo não conseguir dar cabo da sua agenda de debates. Embora a mídia empresarial tenha enfatizado o discurso do Presidente do Irã como tendo sido o responsável pelos desentendimentos, é bom registrar que mesmo antes de qualquer pronunciamento já estava em curso um boicote à conferência protagonizado pelos Estados Unidos, Itália, Alemanha, Holanda, Polônia, Austrália e Nova Zelândia que não enviaram sequer seus embaixadores a Bruxelas.

Independentemente das razões imediatas alegadas por esses representantes de que recusariam o reconhecimento do sionismo como racismo, o que estaria sendo proposto pelo Presidente do Irã, é significativo que seja exatamente sobre o tema do racismo que os embaixadores, especialistas em evitar a guerra, não consigam sequer conversar quando não evitar a pancadaria aberta, como aconteceu em Durban.

O racismo é um dos temas mais entranhados na sociedade moderna e, por isso, um dos mais difíceis de serem tratados com um mínimo de civilidade. As reuniões da ONU comprovam. O racismo está na constituição do sistema mundo desde seus primórdios e continua a constituí-lo ainda hoje. Na América Latina/Abya Yala, no Caribe e na África, não há como deixar de reconhecer o recobrimento entre o processo de formação das classes sociais e a questão étnico-racial. Dois dos mais importantes sociólogos latino-americanos, o peruano Aníbal Quijano e o brasileiro Florestan Fernandes, insistiram nessa sobreposição. Faz parte da colonialidade que constitui a modernidade sendo seu lado até recentemente silenciado. Desde 1492 que a colonização do novo (para os europeus) continente se fez contra os povos originários de Abya Yala, nome com que o movimento desses povos vem designando o continente afirmado como América pela elite criolla, e por meio da escravização de povos africanos nas monoculturas com fins mercantis. Foi nesse momento que os europeus se descobriram como brancos e instauraram um dos mais perversos regimes sociais que a humanidade conheceu, promovendo a morte generalizada de milhões de autóctones tanto na África, como no Caribe e na América/Abya Yala para concentrar riqueza nas mãos de poucos, sobretudo na Europa. A Europa só passou a ter a centralidade geopolítica, geocultural e geoeconômica que hoje possui a partir desse regime social colonial-escravista. Não esqueçamos que até 1492 tomar o rumo certo era se orientar, enfim, ir para o Oriente. Condenar o passado mantendo intactas as posições atuais que por meio dele foram edificadas é contribuir para a manutenção do problema e não para sua solução. È fato que não podemos mudar o passado, como se costuma dizer, mas o que não podemos olvidar é que as desiguais posições de poder atuais foram construídas por essa história que, assim, nos habita na sua contradição.

Foram os próprios europeus que conformaram o holocausto cometendo com requintes técnicos e científicos a morte de milhões de judeus e de ciganos, entre outros povos, nos seus campos de concentração. O horror vivido pelos povos originários de Abya Yala/América e dos negros obrigados a trabalhar sob o látego do feitor depois de viajar nos navios do horror enriqueceram uma burguesia que só quer olhar prá frente porque não pode olhar o passado que lhe constituiu e que se reproduz enquanto pilhagem dos recursos naturais ainda hoje pagando salários de fome, sobretudo aos não-brancos.

O último período da globalização iniciada em 1492, o técnico-científico-informacional (Milton Santos) e neoliberal, ao contrário da homogeneização que de certa forma era seu ideal-tipo tem que aceitar a diversidade de culturas de fato como resultado da resistência dos diferentes à nova colonização, agora em nome do desenvolvimento e do mercado. As migrações acabaram colorindo as periferias de Londres, de Paris, Amsterdã e de Berlin e, assim, aproximaram os diferentes lá mesmo no centro do poder mundial, fenômeno nada novo para quem viveu no lado colonial do sistema mundo moderno-colonial. Há uma resistência xenófoba à transculturalidade e à transterritorialidade em curso no mundo que explicita uma questão de fundo do sistema mundo moderno-colonial e que as reuniões da ONU expressam esse mal-estar. Não será com muros que se vai impedir a invenção de novas territorialidades de que o mundo está grávido. Os equatorianos acusados de indocumentados na Espanha brandiram a carta de Cristóvão Colombo como seu documento de identidade para que pudessem continuar vivendo de seu trabalho na Espanha e, ao mesmo tempo, contribuir para o sustento de suas famílias no Equador. Essa Espanha, que hoje quer expulsá-los, é a mesma que se enriqueceu com exploração das minas de ouro submetendo os quéchuas e os aymaras no seu próprio Tawantinsuyu.

Ainda recentemente, em 16 de Março de 2003, houve uma reunião de cúpula nas Ilhas Açores onde participaram os Estados Unidos, a Inglaterra, a Espanha e Portugal quando se decidiu, à revelia da ONU, pela invasão do Iraque. Tanto o local como seus participantes são emblemáticos para entendermos o significado do que está implicado no sistema mundo moderno-colonial: os Açores são o arquipélago que se tomou como referência para demarcar o Meridiano de Tordesilhas justo no momento em que o Atlântico Norte passava a se constituir no centro geopolítico do sistema mundo moderno-colonial e, ali estavam na reunião de 2003 os que hegemonizaram a primeira moderno-colonialidade – Portugal e Espanha – e, ainda, os que passaram a comandar a segunda moderno-colonialidade – a Inglaterra – e seu desdobramento hegemônico atual, os Estados Unidos. Nunca a geografia e a história foram tão emblemáticas do padrão de poder mundial como nesse encontro dos Açores.

Enfim, vivemos um momento de bifurcação histórica, diria Yllia Prigogine. Há um processo de transformação em que a longa duração, de que tanto nos alertara Fernand Braudel, está se condensando na curta duração pela ação de velhos/atuais protagonistas agora visibilizados no novo quadro histórico que demanda por radicalização democrática. Que a dor dos povos originários de Abya Yala/América, dos negros desterritorializados e escravizados, dos judeus e ciganos confinados em campos de concentração e dos palestinos, hoje massacrados por Israel, nos inspirem na conformação de novas instituições, onde a igualdade e a diferença se combinem no sentido da emancipação das condições de exploração/opressão do sistema mundo moderno-colonial que ainda nos constitui.

 

- Carlos Walter Porto-Gonçalves é Doutor em Geografia pela UFRJ. Professor do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense. Pesquisador do CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Pesquisador do Grupo Hegemonia e Emancipações de Clacso. Ganhador do Prêmio Casa de las Américas 2008 de Literatura Brasileira. Ex-Presidente da Associação dos Geógrafos Brasileiros (1998-2000). Membro do Grupo de Assessores do Mestrado em Educação Ambiental da Universidade Autônoma da Cidade do México. Ganhador do Prêmio Chico Mendes em Ciência e Tecnologia em 2004 conferido pelo Ministério do meio Ambiente do Brasil. É colaborador do jornal Brasil de Fato e de diversos movimentos sociais na América Latina e no Brasil, entre eles a Comissão Pastoral da Terra.

https://www.alainet.org/pt/articulo/133453
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