Meu irmão

02/07/2009
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Se  a vida é uma surpresa, a morte é surpreendente. Jogados nesta existência como  resultado de um encontro amoroso entre um homem e uma mulher, lamentamos  abandonar o cálido acolhimento do útero, o reino ignaro da consciência, a  fruição permanente, o aflorar dos tecidos, dos músculos, dos membros, dos  órgãos, do ser. Súbito, na sequência de poucos meses, eis-nos castrados do  vínculo placentário e atirados no fluxo planetário.  

Saímos sob protestos. Os pulmões  ardem em choro, a fome e o desamparo nos impelem à busca sôfrega do seio  materno. Rompido o laço orgânico, seja bem-vindo o abraço afetuoso. Eis a  vida, a espaçosa vida, o lento desabrochar para uma aventura a culminar na  morte.

Tonico, meu irmão caçula,  transvivenciou na manhã de 11 de junho de 2009, quinta, festa de Corpus  Christi. Sofria de pequena lesão cerebral causada por acidente de moto,  aos 16 anos. Ficou impedido de trabalhar e  estudar.

Tivesse eu imaginado, em  seu proveito, a mais delicada passagem desta vida para a outra, com certeza  não teria suficiente fantasia para alcançar o que sucedeu. Dormia quando o  coração cessou. Passou de um sono a outro, sem dor ou consciência do próprio  fim, tão silencioso e discreto como viveu seus 47 anos de vida. Trazia o  semblante quase  risonho.

Desembarquei naquela manhã  em São Paulo, ao retornar da Europa. Às 9h em ponto liguei para a casa de  minha mãe, em Belo Horizonte. Dei-lhe a notícia da boa viagem, mormente porque  viajara pela Air France que, havia menos de duas semanas, sofrera terrível  desastre no voo Rio-Paris, que ceifou a vida de 228 pessoas. Pedi em seguida  para falar com Tonico. Do corredor, onde fica o telefone fixo, minha mãe  chamou por ele. Não houve resposta. Nos feriados e fins de semanas tinha por  hábito despertar mais tarde. Minha mãe foi até o quarto dele, insistiu para  que me atendesse. Entregue ao sono profundo, seu braço direito caía ao lado da  cama. De volta à ligação, mamãe disse que ele dormia a sono solto. Pedi não  incomodá-lo, era feriado, deixasse que acordasse e, então, me  telefonaria.

Desligada a chamada, o  pressentimento tocou o coração de mãe. Retornou ao quarto e constatou que ele  já não respirava. O corpo, entretanto, mantinha a temperatura normal. O  semblante expressava  serenidade.

Nos dez dias  anteriores, a família percebeu mudanças de comportamento em Tonico. Deixara de  tomar banho, logo ele que primava pelo asseio. Todas as manhãs, numa rotina  quase mecânica, fechava-se por duas horas no banheiro, fazia uma tríplice  barba e, sob o chuveiro, gastava em excesso água, sabonete e xampu. Ao se  vestir, perfumava-se perdulariamente. Frente ao espelho, demorava ao se  pentear.

Súbito, decidiu não  cuidar-se. Por um dia, ocasionalmente ocorria: a pressa de sair, a ansiedade  por um passeio, a preguiça, o estado de ânimo. Mas no terceiro dia foi alvo de  pressões da família. Quando muito, entrava no banheiro, molhava os cabelos e,  sem fazer a barba, dava por terminado. Nem de roupa trocava. Exceção foi na  véspera de partir. Ao sair do banheiro tinha o rosto lisamente escanhoado.  

Aos sintomas manifestados nos dias  que antecederam a sua morte acresceu-se a inapetência. Glutão, pesava mais do  que convinha. Mais que a quantidade, tinha por hábito digerir sem mastigar.  Temperava os alimentos com a ansiedade. E não costumava ingerir saladas. A  única folha aceitável ao seu paladar era a couve. Como não fazia exercícios  físicos e pouco caminhava, ficou obeso. Porém, nos últimos dias não se  interessava pela comida. Apenas tomava água e leite, café para acompanhar o  cigarro, e beliscava. Em poucos dias, perdeu oito  quilos.

O olhar entrou em  vacuidade. Fitava, catatônico, a paisagem, os objetos da casa, parentes e  amigos, sem proferir palavra. Apenas sorria. Como se fotografasse com a mente  cada detalhe observado. E se recolhia a um canto da casa para orar. Deus deve  ter lhe prevenido que aqueles eram seus últimos dias. Levasse na memória e no  coração as lembranças do que pudesse captar pelo olhar. E, como as aves do céu  e os lírios do campo, já não se preocupasse com o que haveria de comer ou  vestir. Despegava-se de tudo que não era a sua essência. Assim, o espírito  ficou livre para transcender essa  existência.

Tonico viveu  despojadamente. Deixasse-o à solta, tudo distribuía: sorrisos, cigarros,  presentes que recebia. E, sobretudo, ensinou-nos a amar, pois todo ele era  afeto.

É um consolo saber que não  conheceu o sofrimento que costuma anteceder à morte: a decrepitude da velhice,  a corrosão da enfermidade, a demência, o acidente fatal, a agressão do  homicida... Transcendeu adormecido. Saiu do casulo, virou  borboleta...

Epifania.

- Frei  Betto é escritor, autor de “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura  militar brasileira” (Rocco), entre outros livros.

Copyright 2009 – FREI BETTO - É proibida a reprodução deste artigo em qualquer  meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)

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