Comprar, gastar, consumir: prazeres pós-modernos

21/09/2010
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Talvez nunca como agora o tema do corpo tenha estado no centro das atenções humanas.  A sociedade ocidental, durante longo tempo identificada com uma mentalidade dualista, que separa corpo de espírito, material de espiritual, terra de céu, manteve a questão do corpo algo exilada e silenciada. Recentemente, no entanto, o corpo voltou a ocupar o lugar que lhe corresponde: no vértice do que seja a compreensão do que significa ser humano.  Somos um corpo, o corpo e nossa identidade.  Quanto mais reprimirmos aquilo que se refere ao corpo, mais veremos isso que tentamos banir da perspectiva da atenção pessoal e comunitária reaparecer com vigor, reclamando seus direitos.  

“Nosso corpo: nós mesmos” é o título de um livro coletivo publicado nos Estados Unidos, na década de 1970. Embora refira-se especificamente às mutações no corpo da mulher nas diversas etapas da vida, o título pode bem apontar para todo o gênero humano.  Nosso corpo diz quem somos e não dar atenção a ele significa perder o rumo de nossa identidade humana mais profunda.

No entanto, a cultura em que vivemos é cheia de complexidades e, mais ainda, de ambiguidades.  Em plena libertação sexual, vemos que a mesma talvez não nos tenha levado a sermos realmente mais autênticos e felizes, como seria de se esperar.  A pós-modernidade em boa parte “liquefez “ os ideais e utopias que davam força aos projetos históricos individuais e coletivos.  Além disso, contribuiu para uma  exacerbação exponencial do consumo,  instilando-o sorrateiramente dentro dos indivíduos.  Assim, colocou ao alcance dos corpos, mentes e sensibilidades de hoje prazeres “outros” que não se aproximam sequer longinquamente da satisfação dos desejos e das pulsões corpóreas que compõem a rica sexualidade humana.

Os anos 1960 proclamaram sua ânsia de liberdade em todos os sentidos.  Fazer amor e não a guerra era o lema dos hippies floridos que enchiam Woodstock com músicas que a nossa geração tanto cantou e parece não encantar tanto nossos filhos e netos.  Na verdade, a desaparição dos modelos denunciados na revolução hippie não gerou mais liberdade e plenitude para as gerações seguintes.  Pelo contrário, o legado do século XX é mais de angústia, vazio existencial e encurtamento de horizontes.  

Nos dias de hoje,  sentimos a sociedade  doente e carente de verdadeira plenitude e satisfação.  A avidez do consumo congela e paralisa nossos melhores desejos: de amor, de gratuidade, de plenitude, de contemplação.  A atitude predatória da humanidade ameaça extinguir e baixar a níveis alarmantes os recursos do planeta.  Toda  essa situação ameaça conduzir-nos a uma autêntica “frigidez dos sentidos”, que se desvia daquilo para que foram feitos: o trabalho, o amor, o louvor.  E passam a voltar-se para objetos outros, verdadeiros fetiches e ídolos menores que lhes roubam a energia e a finalidade. Comprar, gastar e consumir: esses são os verdadeiros prazeres pós-modernos.

Recente pesquisa realizada por cientistas ingleses demonstrou que comprar pode ser tão excitante e prazeroso para as mulheres quanto a atividade sexual.  A pesquisa mediu a atividade de áreas do cérebro que controlam a emoção. As pessoas pesquisadas faziam uma série de atividades enquanto monitoradas. E o resultado  mostrou que adquirir bens de consumo em liquidação provoca tanta excitação e prazer quanto ver imagens eróticas.

A pesquisa apresenta como uma de suas conclusões uma correlação entre picos emocionais e manifestações corpóreas de prazer e compras feitas em liquidações.  O fato de o consumo provocar tais sensações catárticas quando são adquiridos objetos com desconto não atenua, e sim agrava, a nosso ver, o diagnóstico de que estamos caminhando para ser uma sociedade frígida no pior sentido da palavra.  

O sexo como manifestação de amor e plenificação dos sentidos, canal por onde correm os movimentos da vida, está se tornando barato.  Tão barato que pode ser equiparado à compra de um eletrônico ou um sapato ou... qualquer objeto que nos apresentem como a febre do momento.  Desde que com desconto, é claro!  
O corpo humano está em sério perigo.  Está sendo liquidado ou vendido em suaves prestações mensais.

Para frear esse processo, seria urgente retomar a narrativa do Gênesis, primeiro livro da Bíblia, que nos diz que o que diferencia nós, humanos, dos outros seres criados, é o fato de o Criador, após nos criar do barro ter soprado em nossas narinas seu espírito vital. Somos um corpo, sim.  Mas um corpo animado pelo espírito divino. Esta é nossa identidade, que jamais pode estar à venda nem ser posta em liquidação.  

- Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio é autora de "Simone Weil - A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco). wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape

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Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)
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