O fim das certezas

15/02/2011
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Nossa época é um tempo feito de incerteza, de insegurança: a respeito da própria identidade,  de uma posição estável e sólida na sociedade, da visão de mundo que realmente é a minha.  Segundo Zygmunt Bauman, isto é um passivo antes que um ativo, um peso que constrange o movimento.  E Bauman especifica aquilo que chama de líquido e aparece em todas as suas obras. Não é tanto o líquido da água pura e cristalina, que lava e desaltera, mas  um líquido pegajoso, viscoso, que gruda na pele e do qual não se consegue ficar livre.  

A “viscosidade” de que fala Bauman vai significar um novo” habitat” para aquilo que entendemos como verdade, certeza, crença, identidade.  A disputa sobre a veracidade ou falsidade de certas crenças é sempre simultaneamente a discussão sobre o direito de alguns de falar com autoridade o que alguns outros devem obedecer.  A disputa, na verdade, é sobre o estabelecimento ou reafirmação das relações de superioridade e inferioridade, de dominação e submissão entre os detentores das crenças.

Por isso o que é ou não certo, o que é ou não verdadeiro hoje se pluralizou... e os filósofos disputam isto, construindo não uma teoria da verdade, mas uma teoria das verdades, no plural.  E porque a pluralidade das verdades cessou de ser  instigante e contestável radicalmente, será cedo deixada para trás. E devido à possibilidade de diferentes crenças poderem ser não apenas consideradas e julgadas verdadeiras simultaneamente, mas serem de fato verdadeiras, a teoria da verdade situada no centro da atenção do pensar contemporâneo parece haver perdido muito de sua função de disputa com relação ao status de conhecimento não só filosófico mas transdisciplinar, relativo a várias áreas do saber.

Um dos grandes desafios da tardo modernidade em que vivemos, talvez sem precedentes, seja a diversidade e pluralidade em que estamos mergulhados, diversidade esta situada no interior de uma fraca, negligente e impotente institucionalização de diferenças, com suas resultantes de fugacidade, maleabilidade e curta sobrevida.

Se antes o desafio para a questão da identidade era como construí-la consistentemente e dar-lhe uma forma que recebesse reconhecimento universal, hoje o problema da identidade emerge sobretudo da dificuldade de sustentar qualquer identidade por um prazo mais longo, da virtual impossibilidade de encontrar uma forma de expressão da identidade que tenha uma boa chance de ser reconhecida por toda a vida, e a resultante necessidade de não abraçar nenhuma identidade muito estreitamente, a fim de poder abandoná-la da maneira mais rápida possível.

A medida do pensar e do conhecer não é mais o logos, mas a imagem fugaz e brilhante que cativa a vista e impacta sensorialmente o ser humano, impedindo uma interpretação e uma assimilação livre e profunda daquilo que vê e recebe como estímulo para poder realizar sua síntese própria.

Não é à toa que no universo bíblico o sentido humano privilegiado para viver plenamente é o ouvido, a escuta.  O ver está sempre sob suspeita, pelos grandes riscos que corre de ser idolátrico.  O deserto, lugar de conversão por excelência para o povo bíblico e, por isso mesmo, o lugar da escuta absoluta,  é o lugar onde a verdade pode manifestar-se, livre dos riscos de um ver banalizado e fechado, idolátrico.  O que está  circunscrito a meu campo de visão pode ficar confinado aos meus limites e ser, portanto, manipulado por mim.  A escuta é propiciada pelo Espírito que, sopro divino vivificante, se comunica livremente e não se deixa agarrar nem dizer de onde vem nem para onde vai.

A verdade que emerge dessa escuta se deixa, então, encontrar, em experiências profundas de sentido que a fé denomina experiência de Deus e que não seriam objeto de reflexão apenas da teologia, mas também de todas as ciências que se dizem humanas e se interessam pelo destino do ser humano neste mundo e neste momento histórico.

A religião reduzida a um mero ato humano, natural, sem transcendência não daria conta deste desafio.  Explica-se humanamente e aí se esgota.  Há que voltar às fontes, ou seja, à Palavra Reveladora cuja origem misteriosa ensina ao ser humano qual sua verdadeira origem, sua autêntica morada e se manifesta como verdade que emerge das entranhas da história para brilhar epifanicamente na alteridade do rosto do outro.

- Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio é autora de "Simone Weil - A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco). wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape

Copyright 2011 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)
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