Consumir ou ser consumido: dilema cristão pós-moderno
25/07/2011
- Opinión
A diferença entre consumo e consumismo é que no primeiro as pessoas adquirem somente aquilo que lhes é necessário para sobrevivência. Já no consumismo a pessoa gasta tudo aquilo que tem em produtos supérfluos. Podem não ser de boa qualidade nem os mais indicados, porém ela tem curiosidade de experimentar devido à propaganda e ao apelo dos produtos de marca.
No entanto, a definição de necessidade e de supérfluo é algo relativo, já que um produto considerado supérfluo para alguém pode ser essencial para outra pessoa, de acordo com as camadas sociais a que a população pertence. Isso pode gerar violência, pois as pessoas que cometem crimes na maioria das vezes não roubam ou furtam por necessidade, e sim por vontade de ter aquele produto e não possuir condições de adquiri-lo. Nesses casos, a necessidade de consumo se torna uma doença, uma compulsão, que deve ser tratada para evitar maiores danos à pessoa. Muitas vezes, o consumismo chega a ser uma patologia comportamental. Pessoas compram compulsivamente coisas que não irão usar ou que não têm utilidade, apenas para atender à vontade de comprar.
A explicação da compulsão pelo consumo talvez possa se amparar em bases históricas. O mundo nunca mais foi o mesmo após a Revolução Industrial. A industrialização agilizou o processo de fabricação, o que não era possível durante o período artesanal. Trouxe o desenvolvimento num modelo de economia liberal, que hoje leva ao consumismo alienado de produtos industrializados. Trouxe também várias consequências negativas por não se ter preocupado com o meio ambiente.
A Revolução Industrial do século XVIII transformou de forma sistemática a capacidade humana de modificar a natureza, provocou o aumento vertiginoso da produção, resultando no barateamento dos produtos e dos processos de produção. Assim, milhares de pessoas puderam comprar produtos antes restritos às classes mais ricas.
A sociedade capitalista da atualidade é marcada por uma necessidade intensa de consumo, seja por meio dos mercados internos, seja pelos mercados externos. Com o aumento do consumo há maior necessidade de produção e o excesso de demanda leva à geração de mais empregos, o que aumenta a renda disponível na economia e esta acaba sendo revertida para o próprio consumo. Todo este processo leva a uma intensificação da produção e consequente aumento da extração de matérias-primas e do consumo de energia, muitas vezes de fontes não renováveis.
Às vezes, uma pessoa compra por influência de outras que também são influenciadas pelas propagandas, filmes, revistas etc. Ou seja, a sociedade cria um padrão, que tende a ser seguido pelas pessoas. Algumas mulheres, por exemplo, escolhem um corte de cabelo, roupas, sapatos e acessórios da moda porque se inspiram em alguma atriz famosa.
Em nossas sociedades houve uma tentativa trágica de reencantar o mundo pelo consumismo e a diversão. O consumismo promete preencher os desejos, necessidades e carências com diferentes produtos, mas o faz de tal maneira que nunca fiquemos satisfeitos e desperte em nós a necessidade, a compulsão de adquirir novos produtos que o mercado produz sem recesso. O que começa como uma necessidade converte-se em compulsão ou em vício. Qualquer privação inesperada, irrita e frustra.
A fé cristã e a Eucaristia contam outra história sobre a fome e o consumo. E essa não começa com a escassez, mas com um convite à vida, e vida em abundância. O corpo e o sangue de Cristo não são bens escassos, a hóstia e o cálice se multiplicam diariamente em milhares de celebrações eucarísticas em todo o mundo. O consumidor do corpo e sangue de Cristo, no entanto, não permanece alheio ao que consome, mas se torna parte do Corpo. O ato de consumo da Eucaristia não implica a apropriação de bens para uso privado, mas sim ser assimilado a um órgão público, o Corpo de Cristo. Ali se comunicam alegria e dor, abundância e falta, e se destaca a obrigação de os seguidores de Cristo para com os famintos. Na dinâmica eucarística, famintos e bem-aventurados se integram em Cristo e inauguram um novo modo de entender o mundo e viver a realidade.
- Maria Clara Bingemer é autora de "A Argila e o espírito - ensaios sobre ética, mística e poética" (Ed. Garamond), entre outros livros.
Copyright 2011 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER - É proibida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)
https://www.alainet.org/pt/articulo/151441
Del mismo autor
- Neto 114 14/08/2014
- Igreja profética em memória sombria 27/03/2014
- Sem sepultura 16/10/2013
- Papa Francisco: um pecador perdoado 26/09/2013
- Francisco e Gustavo: nova aurora para a teologia 22/09/2013
- La Moneda e as Torres Gêmeas: aniversário re-cordado 12/09/2013
- Gato e rato 08/09/2013
- Médicos cubanos: por que tanta gritaria? 29/08/2013
- A homilia do Papa em Aparecida e as três virtudes teologais 25/07/2013
- Realidade das ruas e euforia enganosa 26/06/2013