Literatura, mística e gênero: Adélia Prado
07/12/2012
- Opinión
Em poucos poetas e escritores — brasileiros ou não — pode-se notar uma intimidade e uma proximidade explícitas com o mistério divino como em Adélia Prado, essa mineira de Divinópolis, esposa de José e mãe de cinco filhos, professora e formada em filosofia, catequista e católica praticante, vivente e vibradora da espiritualidade franciscana.
A poesia de Adélia é crente. Mas de uma crença que não pretende nem “consegue” ser convencionalmente litúrgica ou teológica ou catequética ou religiosa no sentido mais tradicional do termo. Pelo contrário. A fé e a crença que perpassam o discurso poético em Adélia Prado atravessam igualmente todas as correntes mais puramente humanas da vida cotidiana e ali descobrem e dizem o Transcendente, presente em epifania e diafania.
O modo como Adélia concebe sua poesia a constrói enquanto derivada e nascida da fonte mesma de todo Poema que é a Palavra de Deus. A poesia adeliana é, pois, exercício espiritual, estando permanentemente em contato estreito e tangibilidade concreta e incessante com a corporeidade humana. O corpo é o território onde o espírito é experimentado e o sagrado experienciado. E disso é feita a poesia. E no caso de Adélia é seu corpo feminino, de mulher, com todas as conseqüências e características biológicas que isso implica, o lugar onde a epifania divina acontece e se dá.
Sendo Adélia poeta e mística, nela o Eros e o Mysterion não são terrenos separados e antagônicos, mas, pelo contrário, se tocam em harmoniosa síntese. Adélia, como todos os místicos autenticamente cristãos, não tem pudor em usar expressões eróticas e sexuais para expressar sua experiência de Deus e traduzi-la em poesia.A poesia adeliana é igualmente pascal. A síntese entre dor e alegria, entre sofrimento e gozo é nela uma constante. E assim sendo, encontra feliz analogia com todo o mistério cristão expresso através dos tempos, na teologia, na mística, na oração, na liturgia, por ter em seu centro o mistério que se depreende da Encarnação, vida, morte e ressurreição de Jesus de Nazaré, Verbo de Deus encarnado, vivo, morto e ressuscitado.
O texto poético, materno-teologal de Adélia Prado é, portanto, texto revelado e aderido na fé que, feito poesia, traduz em linguagem artística e estética, literária, os mistérios escondidos e revelados desde a fundação do mundo.
Ler Adélia Prado é como adentrar-se nas origens misteriosas da experiência de Deus do povo da Bíblia, que experimentou a presença do Eterno como Palavra. Palavra que desde o silêncio eterno foi livremente pronunciada no tempo e na história, penetrou os ouvidos humanos e fez cair os véus que velavam aos olhos interiores o dinamismo existencial sobrenatural que os habitava.
Nos primórdios da Revelação ao povo de Israel, os homens e mulheres que captaram e falaram sobre essa revelação identificaram Deus como Palavra. Palavra que rompe o silêncio e fala. Mas se sabe e se declara que fala porque existe um ouvinte, ser humano ou mulher, que ouviu, ouve e fala daquilo que ouviu.
A linguagem humana, na medida em que toma consciência de si mesma, perceberá que fala do que lhe foi dado, fala do que ouviu, do que recebeu, do que acolheu do dom primordial, do mistério indecifrável e inefável que é fonte de tudo e de todos e está na origem sem origem que foi caos e agora é cosmos.
Se físicos e cientistas se debatem com a pergunta sobre o porquê de existir algo em vez de nada, o poeta, pelo contrário, em sua inspiração, “sabe” o porquê, porque o apalpa em sua povoada ignorância que o faz dizer o que não diria por que não sabia, mas que sabe o que lhe é ensinado gratuita e amorosamente.
No poema “Antes do nome” está, pois, parece-nos, uma chave primordial para começar a percorrer a trajetória de Deus na poesia adeliana.
Antes do nome
Não me importa a palavra, esta corriqueira.
Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,
os sítios escuros onde nasce o “de”, o “aliás”, o “o”, o “porém” e o “que”, esta incompreensível
muleta que me apoia.
Quem entender a linguagem entende Deus
cujo Filho é Verbo. Morre quem entender.
A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,
foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infrequentíssimos,
se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
Puro susto e terror
Para Adélia, Deus é mistério santo reservado e revelado. Que se entrega na mesma medida em que se esconde. Que, inapreensível pela indústria humana, pronuncia sobre o “esplêndido caos” primigênio a palavra assistida pelo sopro do Espírito, fazendo emergir as coisas que não são para que sejam.
Adélia “sabe” porque lhe foi dado saber. E este saber doado é a fonte de sua poesia, da palavra que chama com nomes menores, “corriqueira”, “muleta”, pois na verdade é derivada da única e fundamental substantiva Palavra divina que cria e gera vida ali onde antes só havia o nada.
A inspiração poética adeliana é, consciente e assumidamente, inspiração divina. Antes do nome, portanto, está o Nome que a tudo nomeia e por nada nem ninguém pode ser nomeado. “Coisa grave e surda, inventada para ser calada.” Nome existente no silêncio e nele eloqüente como dom amoroso que se experimenta indizível e inexprimivelmente. Nome impronunciável pelos lábios humanos, mas que misericordiosamente se faz acessível à carne perecível e mortal capaz de Deus, destinada à morte e transpassada de finitude.
- Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio. Autora de "Simone Weil - A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco).
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