A falta que faz um projeto nacional
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Entre final de outubro de 2014, quando a presidenta Dilma ganhou o segundo turno das eleições presidenciais, e a segunda quinzena de março de 2015, o País sofreu uma aguda crise depressiva. O governo reeleito é o principal responsável pelo drama, do qual participam os seus defensores, os supostos aliados no Congresso e uma nova oposição de direita de “massa”, ainda sem representação política definida.
Como chegamos a esse ponto? Uma resposta fácil seria destilar acusações à classe política, aos corruptos, ao “intervencionismo” do governo passado, aos “neoliberais”, à crise internacional, ao monopólio dos meios de comunicação, à personalidade da presidenta, e assim por diante.
Variando conforme o figurino e a inclinação ideológica, foi o que vimos nos cartazes das passeatas e nos comentários dos nossos especialistas televisivos. Trata-se do velho vício cultural brasileiro de que nos falava Rômulo Almeida, grande pensador praxista do desenvolvimento brasileiro, de ver tudo sob o prisma dos problemas únicos. Falta uma compreensão dos desafios estruturais que perpassam as várias dimensões da vida coletiva e uma sadia dialética capaz de orientar as forças sociais progressistas no sentido de uma perspectiva política de futuro.
Os fatos políticos recentes são os sintomas tardios da falta que faz um projeto nacional. Isso porque a euforia triunfou sobre o planejamento de longo prazo e sobre a participação social. Depois do delírio de grandeza, o paciente – o País, é bom que se diga – fez o movimento no sentido contrário, perdeu o chão, liberou seus traumas ancestrais e deixou que cada detalhe assumisse uma proporção exagerada. Apenas o distanciamento histórico e o reconhecimento da sua condição lhe permitem sair da letargia.
Tivemos ao menos embriões de projeto nacional durante o segundo governo Vargas, o governo JK, a ditatura militar, cada qual com as suas particularidades. Esses projetos emergiram em determinadas conjunturas históricas, provocando rupturas para além da aparente continuidade.
O projeto nacional vai além de mero discurso, pois a retórica – quando revestida de conteúdo propositivo – é a forma como seus arquitetos se colocam frente às contradições do momento, tentando encaminhá-las num determinado sentido.
Tomando um exemplo recente, o governo FHC caracterizou-se pela defesa da desnecessidade de um projeto nacional, justificada pela inevitabilidade da “globalização”. A crise internacional comprometeu o projeto adesista. A nova institucionalidade mercadista estava, por sua vez, descolada da dinâmica do desenvolvimento econômico e da complexidade das forças sociais.
Já o ciclo expansivo do governo Lula tinha tudo para lançar um projeto nacional de fôlego. Por que não o fez?
O período 2004-2008 foi um dos mais auspiciosos da história republicana recente. A economia mudava de marcha, os programas sociais expandiam-se junto com o emprego, e o governo, sem se descuidar da situação fiscal, lançava um novo pacote de investimentos.
Esboçou-se inclusive uma visão sobre o mundo e sobre o papel do Brasil no teatro das nações. Chegada a crise financeira dos países ricos, o governo agiu prontamente, abrandando os efeitos negativos sobre a economia brasileira. Era o momento do grande salto adiante.
No pós-2008, processou-se uma reorganização da economia mundial capitalista, alterando a posição das economias dinâmicas da periferia com base industrial e mercado interno robusto. Era então o momento de enfrentar a crise de curto prazo, não apenas com medidas anticíclicas, mas com um verdadeiro projeto de desenvolvimento para os novos setores dinâmicos na indústria e nos serviços, com políticas na área de infraestrutura social, energética e urbana, agindo na superação de gargalos que agora aparecem de todos os lados.
Era também o momento certo para a correção cambial. E para elevar temporariamente a meta de inflação. Era a hora de acionar um salto de produtividade sistêmica no Brasil, sem abrir mão do combate à desigualdade, mas inclusive para aprofundá-lo. Era a hora, se…, tivéssemos estruturado um projeto nacional, com base social, enraizamento regional, reforma do Estado e ações concretas nos planos da política interna e externa, tendo por objetivo o desenvolvimento com ampliação da cidadania.
É fácil agora condenar a “má gestão” da política econômica do governo Dilma. O buraco é mais embaixo e revela a ausência de reflexão por parte do governo (especialmente o de Lula) e do PT sobre os dilemas estruturais da economia brasileira.
Não fazia muito tempo, no final dos anos 2000, entoávamos os bordões do nosso líder operário-estadista aplaudido pelo mercado e pelo sistema político. Boa parte da esquerda – à qual se somavam alguns liberais recém-convertidos – repetia acriticamente: “pagamos a dívida com o FMI”; “conseguimos o investment grade”; “viramos um país de classe média”; “estamos no pleno emprego”.
Se, no atual momento, o governo e o PT não sabem o que fazer, cabe à intelectualidade progressista brasileira assumir a sua parcela de culpa, reconhecer que entrou no clima de oba-oba e perdeu uma grande oportunidade histórica. Pois na história, os erros são sempre coletivos e irremediáveis.
A intelectualidade que pulou fora do barco e assumiu uma atitude denuncista contra o governo e o PT, e hoje repete o verbete “eu não disse”, também é parte do problema. Talvez tenha uma postura mais confortável, que pouco contribui para o enfrentamento dos desafios estruturais da nação. Parte de um país idílico, repetindo a fórmula conservadora de que “o país precisa ser passado a limpo”. Apenas os culpados, ou os problemas únicos, são diferentes.
Nos próximos meses, o governo procurará encontrar o seu eixo, à base de ansiolíticos e fórmulas paliativas para a “coordenação política” e as políticas públicas devem assumir cada vez mais um caráter de gestão de problemas de curto prazo, vez por outra avançando em iniciativas de alguma envergadura, a depender da temperatura da base aliada. Este parece ser o melhor cenário dentre os possíveis, ao menos no curto prazo.
Será então mais importante do que nunca pensar e atuar a partir da tríade planejamento-democracia-projeto nacional, rompendo a lógica imediatista do calendário político-eleitoral. Com utopia e pragmatismo, apostando na transversalidade dos projetos de desenvolvimento e na forma como eles se enraízam nos vários espaços do território por meio de interações criativas entre os entes federativos e a sociedade civil.
Enquanto a macroeconomia estiver na maré baixa, será a hora de praticar novamente ações voltadas para a ampliação da cidadania. E de estruturar uma pauta viável para a superação dos desafios convergentes, de maneira planejada, inventariando os recursos disponíveis e arregimentando uma nova geração de militantes do desenvolvimento social e sustentável.
Hora de amassar barro, como foi durante a luta contra a ditadura, a criação do PT, ou durante os anos 1990, quando os movimentos sociais estavam na defensiva, mas eram muito mais assertivos e propositivos do que são hoje.
Nem tudo está perdido, companheiro!
- Alexandre de Freitas Barbosa é professor de História Econômica e Economia Brasileira do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP)
01/04/2015
http://brasildebate.com.br/a-falta-que-faz-um-projeto-nacional/
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