Questão agrária no Brasil e Reforma Agrária Popular

09/05/2016
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Para entender a questão agrária hoje faz-se necessário um pouco de historicização, pois muitas das questões que estão colocadas na atualidade são decorrentes de processos históricos mais amplos, que ficam mais complexos à medida que envolvem aspectos políticos e econômicos mais recentes. Isso nos permite compreender que alguns desafios não são desafios que estão colocados apenas para o MST, mas para a classe trabalhadora e para toda a sociedade.

 

O primeiro aspecto a se destacar é o de que a reforma agrária é uma bandeira burguesa. Ela surge com a Revolução Francesa e é fruto do processo de mudança do modo de produção do feudalismo para o capitalismo, como forma de desenvolver o capitalismo na agricultura. E uma forma de incorporar os camponeses à plataforma revolucionária francesa, integrando os camponeses ao mercado, tanto para comprar produtos industriais, quanto para produzir matérias primas e alimentos que eram necessários aos trabalhadores da cidade. Evidentemente na história não há só a típica reforma agrária clássica, outros modelos de reforma agrária foram aplicados em outras situações históricas, mas esta foi a forma que se desenvolveu em alguns países da Europa. Mesmo os próprios Estados Unidos, em outro momento simulando a colonização do oeste dos Estados Unidos, realizou uma reforma agrária com uma brutalidade imensa contra a população indígena, por exemplo. E houveram também outros tipos; em Cuba se desenvolveu um ambiente em que a contradição com as desapropriações proporcionou uma revolução, assim como na China.

 

Um segundo aspecto que marca a nossa história que é importante destacar: no Brasil e em parte da América Latina não houve essa mesma interpretação, ou seja, a necessidade de desenvolvimento da reforma agrária. O processo de colonização da América Latina se dá num momento em que o mercantilismo, a fase inicial do capitalismo, está em pleno vapor, puxado por Espanha e Portugal. Nosso processo de colonização foi um processo brutal de destruição de populações, exploração humana e de recursos naturais que deu suporte ao desenvolvimento europeu, à industrialização europeia. Um processo extremamente violento também subjetivamente: os povos da América Latina foram subjugados, tanto assim que muitas culturas foram completamente dizimadas neste processo de colonização. Mais que destruir aquelas populações, foi impedido o acesso das futuras gerações àquelas culturas. Foram destruídas as construções, os conhecimentos, as artes, a simbologia, a escrita de povos inteiros e fomos resumidos - povos Guaranis, Aimarás, Maias, Quechuas, etc a “índios”. E toda a cultura africana também, com o processo de trabalho escravo desenvolvido, a “importação” de homens e mulheres escravizados dizimou civilizações inteiras de várias etnias, reduzidas ao termo “negro”. Portanto, criou-se um discurso de um povo que tem “índios” e “negros” em troca de uma diversidade cultural riquíssima, do mundo todo. Isso impacta a economia, mas impacta também do ponto de vista social, cultural, artístico, todo o processo de conformação de uma identidade ao nosso país.

 

Nós nos transformamos desde então em exportadores de recursos naturais, matérias primas. Esse processo histórico nos leva, a uma sociedade extremamente atrasada, arcaica, que vai até 1930 com o domínio de toda a oligarquia agrária no Brasil, iniciada com as capitanias hereditárias, a origem do nosso latifúndio. Mas mesmo na década de 30, quando há um processo de intensificação da industrialização com Getúlio Vargas, isso não se dá de forma em que rompa com esse modelo agrícola, embora haja o que se chama “Revolução de 30”. Nosso processo de industrialização se dá em aliança com os sistemas oligárquicos, e, portanto, a estrutura latifundiária continua intacta. Isso tem impactos profundos do ponto de vista da formação de nossa sociedade. Em 1939 o Brasil pouco mais de novecentas escolas, a maioria privadas. É com Getulio que surge a primeira Lei de Educação no Brasil, com um ministro chamado Gustavo Capanema, um dos mais progressistas para aquela época (tinha como assessor Oscar Niemeyer, e como secretário de educação ninguém menos que Carlos Drummond de Andrade). E nossa primeira lei que regulamenta a educação já traz em si os princípios da educação dual - para os trabalhadores, todo o ensino técnico, e para os filhos da elite, a formação propedêutica, mais ampla, mais cultural. A universidade no Brasil surge apenas com a vinda da Família Real, ou seja, a nossa universidade tem pouco mais de cem anos, enquanto por exemplo, em Santo Domingo, descoberto em 1432, desde 1515 já tinha uma universidade federal na Republicana Dominicana.

 

A questão agrária é um termo cunhado por Karl Kautsky no final do século dezenove. E a questão que se colocava para esse teórico, depois dos bolcheviques, era o desaparecimento do campesinato em função do desenvolvimento do capitalismo. Algumas teses defendidas por Marx apontam que o campesinato em geral tende a desaparecer com desenvolvimento do capitalismo, o processo de assalariamento e desenvolvimento da agricultura. E os bolcheviques tinham uma questão, um monte de camponeses na Rússia, como lidar com uma categoria se ela iria desaparecer? Kautsky politiza o debate, vai buscar encontrar primeiro uma reflexão analítica acerca da realidade e depois formas de como implementar a reforma agrária russa em aliança com a classe operária.

 

No caso brasileiro, o tema reforma agrária e o surgimento de uma questão agrária em termos de debate político surge na década de cinquenta do século passado, com as Ligas Camponesas. Até então, nós tínhamos no Brasil o que podemos chamar de “luta pela terra”, ou “resistência pela terra”, em processos como Contestado, Quilombo dos Palmares, Canudos, etc. Mas não eram lutas que trabalhavam o tema da reforma agrária, da questão agrária propriamente. O processo de mobilização das ligas durou praticamente uma década, em que os camponeses avançaram e surgiram questões importantes, como o lema “reforma agrária na lei ou na marra”.Ele foi praticamente abolido na década de sessenta com o golpe militar, que além de aniquilar com as organizações de esquerda ou colocá-las na clandestinidade, prendeu e matou centenas de militantes. Também em função da luta pela reforma agrária, o governo militar acaba com esse processo de mobilização e retoma a partir do Estado uma forma de programa agrário - o Estatuto da Terra criado durante a ditadura é teoricamente mais avançado que a Constituição brasileira atual, tratando do latifúndio não só por extensão, mas também por produção. Mas a Ditadura Militar fez uma lei interessante do ponto de vista teórico, ao mesmo tempo em que aniquilou com toda forma de organização social. Então, sem pressão social, o Estatuto da Terra foi por vinagre, em função que você acabou com todo o processo de mobilização em torno da reforma agrária, não deu em nada. É atribuído a, Delfim Neto e Alysson Paulinelli o processo de elaboração do que seria o desenvolvimento da agricultura brasileira, que a partir desse projeto deveria cumprir quatro funções: 1) continuar produzindo para exportação, 2) produzir matérias primas para o mercado, 3) produzir alimentos, 4) liberar a mão de obra do campo para a cidade. Porque a cidade precisava de mão de obra, e portanto, principalmente à partir da década de setenta até o final da década de oitenta, houve um dos maiores êxodos históricos do campo para a cidade. Muitos de nossos pais acabaram saindo nessa época. E a reforma agrária sai do cenário, é o tempo da revolução verde: nas década de sessenta e setenta há uma expressiva produção de maquinaria agrícola, agro-químicos; desenvolve-se a agricultura brasileira sem a necessidade também da reforma agrária. Com o processo de redemocratização, vem a Constituinte de 1988, mas também vem a crise econômica. Surge o MST em 1984, com muitas mobilizações e o tema da reforma agrária volta ao debate político brasileiro com alguma força; da década de 80 até o início dos anos 2000 o tema da reforma agrária teve uma relevância na política brasileira.

 

Após o desenvolvimento econômico dos anos da ditadura, a crise econômica brasileira leva ao governo Fernando Henrique Cardoso, que se depara com um problema. Fernando Henrique decreta a moratória técnica da dívida brasileira, e recorre ao FMI. O déficit brasileiro tanto comercial, e como nas contas e serviços, foi enorme, e o Brasil não conseguia pagar. Então durante os 8 anos de governo, FHC retoma o processo de investimentos na agricultura. Vários programas são retomados com financiamento, na tentativa de buscar superar na balança comercial brasileira para equilibrar as contas da macro economia, e a agricultura é reorganizada novamente para cumprir esse papel de exportadora de matérias primas. Exportando mais produtos para superar, através das vendas de recursos naturais e matérias primas, e com isso retomar o pagamento brasileiro das contas, principalmente em relação ao exterior. O governo Lula dá continuidade a isso, em um cenário internacional de elevação dos preços das Commodities. Commodities são produtos que nós chamamos de primários, padronizados internacionalmente. Então, por exemplo, o milho é comercializado internacionalmente porque é considerado uma Commodity, o feijão não. Há Commodities agrícolas, Commodities minerais... O ferro é uma Commodity, a soja é uma Commodity, a carne também, o etanol, e assim por diante.

 

A retomada e a continuidade do governo Lula acerca desse assunto, leva a que se priorizem os investimentos na agricultura voltados para a exportação. O governo Lula investe recursos modernizando a agricultura, estimulando a compra de tratores, etc, como forma de exportar mais, pois havia uma conjuntura internacional favorável à exportação de Commodities. É bom lembrar que a China estava crescendo 10% ao ano, a Índia estava crescendo, havia uma demanda muito grande por produtos agrícolas, minério de ferro, e assim por diante, e o preço das Commodities no mercado internacional subiu muito, criando na conjuntura favorável ao Brasil ter saldos positivos na balança comercial em relação aos demais países, equilibrando em geral as contas, inclusive a dívida externa. Principalmente a partir dos anos dois mil para cá, os investimentos na agricultura passaram a se dar de forma massiva. E a agricultura deixou de ser o espaço do fazendeiro, do produtor agrícola, do latifúndio só. A agricultura se transformou em mais um espaço de valorização do capital, como qualquer outro. Sobrando dinheiro no mercado internacional, com excesso de liquidez, o capital internacional passa a comprar terras, a investir na agricultura; particularmente no Brasil. Por isso hoje a agricultura é controlada por grandes grupos oligárquicos do capital financeiro internacional. Grupos nacionais, inclusive na área do etanol, foram cedendo lugar a empresas transnacionais, que além de comprarem terras hoje dominam toda a cadeia produtiva. Mais que isso: dominam o comércio internacional desses produtos como forma de valorização de capital.

 

Voltando ao histórico, na década de noventa houve uma grande greve em 1996, dos petroleiros. A greve dos petroleiros foi derrotada, e com isso colocou o movimento sindical em geral na defensiva, enquanto o Movimento Sem Terra vinha em um ascenso muito grande, com grandes mobilizações e ocupações de terra. De 1996 até 2002, o movimento sindical é colocado contra a parede com a lógica que FHC impõe - um cenário de desemprego muito alto, e uma das alternativas da classe trabalhadora como forma de sobrevivência era a busca da ocupação de terra. Nos grandes acampamentos, muitos trabalhadores das cidades nos ajudaram a arrecadar alimentos, como forma de mantê-los. Com acampamentos massivos, realizamos marchas enormes como de São Paulo à Brasília, depois do Rio de Janeiro à Brasília a pé, cursos massivos, etc. Nesse período nós aproveitamos para formar muita gente e para participar de lutas do conjunto da classe trabalhadora. A conjuntura favorecia esse processo.

 

Naquele tempo nós enfrentamos em grande medida o latifúndio com algum apoio da sociedade, até de setores burgueses, à nossa causa. É nesse período que surge a novela “O Rei do Gado” que colocou o tema da reforma agrária na rede Globo, e que de alguma forma deu vazão ao um debate político. Mas nós enfrentávamos o latifúndio. E o que ocorre a partir de 2000 para cá? Há um processo de crescimento econômico sustentado em três aspectos fundamentais. Primeiro, um aumento da demanda externa por Commodities e a elevação dos preços. Segundo, investimento público; o Estado passa a investir na economia, financiar empréstimos, desde grupos empresariais até habitações populares. Grandes fusões, como a fusão Sadia/Perdigão, se dão nesse período. E o terceiro aspecto desse crescimento econômico é a criação de um mercado de massas, no estilo Casas Bahia, aplicado à população em geral. Ter acesso a TV com noventa parcelas, carros, tudo. Mesmo com muito endividamento, o mercado de massas estimulou o crescimento, e com isso garantiu o crescimento econômico e uma situação de pleno emprego, muitas vezes precarizado, mas com elevação dos salários inclusive.

 

Esse particular diminuiu a demanda da luta pela reforma agrária, porque muitas pessoas que vinham para as ocupações Sem Terra como alternativa, em busca da reforma agrária, passaram a trabalhar, principalmente na construção civil. Essa conjuntura permitiu as condições de algum ganho econômico, inclusive com trabalho garantido, para boa parte da classe trabalhadora. O que não é ruim, nós não queremos que isso retroceda. Mas nós vemos que a situação de desemprego começa a crescer no Brasil, por isso muita gente vai voltar a procurar de novo o MST na luta pela reforma agrária. Há um cenário político-econômico que foi se desenhando e nós temos que levar em consideração todos os ingredientes de uma análise, e não só analisar o aspecto subjetivo. É preciso interpretar toda a análise objetiva; o movimento sindical vive situação similar no mundo todo, com a reestrutura produtiva, com impactos graves da organização da classe trabalhadora e nós vamos enfrentar isso na próxima década, porque o capital em escala planetária vai tentar impor derrotas ao movimento sindical que é a forma de fazer com que se eleve o lucro das empresas, o que de certa forma vem acontecendo na Europa, no Japão, e assim por diante. O tema da terceirização. Isso interessa a ordem do capital. Mas este é um outro capítulo. Com isso o debate político do MST sobre a questão agrária e a reforma agrária à partir do novo milênio é alterado, porque até aí o MST dentro de suas fileiras defendia-se uma reforma agrária mais ou menos ao estilo distributivo-produtivista. Até no debate político em relação à sociedade. Competindo com o grande pela lógica produtivista, e a reforma agrária um pouco ao estilo clássico: bastaria distribuir terra para todo mundo, democratizar a terra, que haveria produção, inclusive ajudando a desenvolver o capitalismo na agricultura. Essa fase se foi.

 

A reforma agrária nesse novo cenário em que o desenvolvimento do capitalismo na agricultura está plenamente consolidado, tem que lidar com o fato de que em nome do lucro mercantiliza-se tudo e todos. O que não é mercadoria hoje, vai ser amanhã, não tem como não ser, o capitalismo funciona assim: a água é mercadoria, o feijão e o arroz, daqui uns dias o oxigênio e outras coisas vão virar mercadoria também, porque é assim que funciona a ordem do capital. Então, a reforma agrária passa a ser não só uma questão do Sem Terra. Em um primeiro momento era uma preocupação do MST e dos movimentos camponeses, mas hoje a reforma agrária passa a ser uma questão que precisa ser discutida com toda a sociedade. E para isso, nós precisamos discutir pelo menos três questões fundamentais.

 

A primeira delas é: que tipo de uso nós queremos dar ao solo, a água, aos recursos naturais, a biodiversidade, e assim por diante? Se é o uso que nós estamos dando hoje, não precisa mais de reforma agrária, o capitalismo dá o uso e resolve esse problema. No entanto, se é isso, nós precisamos ter a clareza de que esse uso evidentemente é um uso que expulsa o campesinato, que concentra riqueza, que concentra a terra do ponto de vista econômico, portanto injusto socialmente, e é um uso extremamente degradador do meio ambiente e de todos os recursos naturais, que o avanço do capital vai destruir. O processo que nós estamos vivendo de aquecimento global, falta de água em São Paulo, tem se intensificado em grande medida, tanto pela indústria automotiva e petrolífera, quanto por gente produzindo agricultura. Ao exportar soja e carne, na verdade nós estamos exportando a água, luminosidade, nós estamos exportando coisas que não tem como recuperar. Ou seja, nós estamos gastando os nossos recursos naturais ao exportar esses produtos. À medida que a nossa economia se torna mais dependente disso, evidente nós vamos desgastando e destruindo os nossos recursos naturais. O que isso tem a ver com nossa colonização? O processo de colonização também foi a utilização desenfreada de recursos naturais, de destruição disso. Quer dizer que mesmo após um desenvolvimento industrial, nós voltamos a depender fundamentalmente da exportação de produtos primários. E não é um problema conjuntural, para equilibrar o balanço, isso se transformou em um problema estrutural. A economia esta calcada na exportação dos Commodities agrícolas. Portanto o impacto ambiental está sendo sentido já hoje, além do envenenamento e daquilo tudo que a gente conhece. Se nós vamos discutir com a sociedade o modelo agrícola, é discutir o modelo de sociedade, a economia, o modo de produção, a lógica e ordem do capital.

 

A segunda questão que nós precisamos debater com a sociedade é: que tipo de comida que nós queremos comer? Porque se é esse o tipo de comida que está por aí, evidentemente não precisa de reforma agrária. Tem-se a pequena agricultura que cumpre um papel, submetida à lógica e ordem do capital. O pequeno agricultor tem a impressão de ter autonomia, mas produz o que o mercado quer, submetido a lógica da grande produção; é como um produtor assalariado, muitas vezes com mais precariedade do que um assalariado direto. Ao mesmo tempo, temos de questionar a forma como a grande produção resolve o problema da alimentação. Porque a padronização do tipo de alimentação consumida pela humanidade restringe cada vez mais a variedade. Ou seja, se na Idade Média a sociedade consumia mais de mil tipos de produtos diferentes, hoje 80% da alimentação mundial se resume a quatro ou cinco produtos. Arroz, carne, soja, milho e trigo. Esse é o padrão mundial de comida, isso a ordem do capital consegue resolver sem necessidade de reforma agrária. Agora se é isso, nós temos que ter clareza que o processo de contaminação pelos agrotóxicos não é só um processo de contaminação para aquele que produz, que é evidentemente grande. É um processo de contaminação do solo, da água, dos os recursos naturais. É um processo de contaminação para o ser humano. Além do câncer, há estudos efetivos que apontam que a dislexia e o autismo, entre outros problemas de saúde, estão relacionados ao consumo de veneno, que atinge o sistema nervoso central. Em muitos lugares, em que produtores usam altas quantidades de veneno, o índice de suicídio é bastante elevado, em função da depressão provocada por isso. Mas veja, para o capitalismo não é o problema, pois a lógica do capital é o lucro, ponto. Se der dinheiro produzir orgânico, talvez vá produzir orgânicos. Mas a preços elevados, retringindo o consumo a setores da classe média. É toda uma indústria que se trabalha a ideia do consumo. Isso é um debate que nós temos que fazer com a sociedade, que tipo de comida se quer comer.

 

E o terceiro debate é que tipo de paradigma tecnológico nós queremos desenvolver. Isso envolve Embrapa, a Universidade, envolve camponeses e assim por diante. Porque a nossa perspectiva é o desenvolvimento de uma agricultura agroecológica, e quando a gente fala em agroecologia tem gente achando que queremos a volta ao passado. Nós queremos tecnologia que diminua a penosidade do trabalho em geral, e em particular a penosidade do trabalho agrícola para que o nosso povo tenha tempo de estudar, ampliar os seus horizontes culturais. Não dá para avançar se nós não avançarmos também na construção de novos paradigmas tecnológicos. Porque a fabricação, por exemplo, de adubos orgânicos é de difícil manuseio. A Embrapa e toda pesquisa tecnológica é voltada para a grande produção de indústria pesada, tratores pesados, e etc. Nós precisamos desenvolver pesquisa tecnológica que crie as condições para que os trabalhadores e camponeses tenham acesso a insumos agroecológicos e também tecnologia que nos ajude a garantir produtividade sem impactar tão gravemente o meio ambiente.

 

Estamos dentro de uma Universidade, é um debate de todos nós. É uma mudança de modelo agrícola, mas é uma mudança de modelo econômico também, porque sob a lógica e a ordem do capital que mercantiliza tudo, dificilmente se consegue. Podemos construir ilhas de resistência, mas nós incorporamos a ideologia do capitalismo nas relações sociais, é uma batalha cotidiana. Ainda mais com os meios de comunicação hoje tendo esse papel de produzir consensos na sociedade, que justifiquem processos coercitivos ou aprovação de projetos como o da diminuição da idade penal, por exemplo. Historicamente a ideologia sempre cumpriu um papel importante. Mesmo no Estado escravagista, praticamente regido pela coerção de maior medida, havia ideologia que justificava a submissão do servo ao vassalo, do escravo ao senhor, e assim por diante. A igreja também cumpriu esse papel de difusão da inferioridade de raça. O capitalismo muito mais, principalmente com o ideal de fraternidade, liberdade, etc, da Revolução Francesa. É preciso destinar à ideologia um papel fundamental que é cumprido pelos grandes meios de comunicação, mas também pela igreja, a universidade, a escola, a educação. O maior partido de massas na verdade é a televisão. Um partido no estilo bolchevique, porque tem um comando político unificado, muito centralizado, uma militância bem remunerada e a propaganda. Ninguém discute com a sociedade toda a ideologia e todo o debate político. Um bom exemplo foi a ocupação de uma fazenda produtora de laranjas em São Paulo que deu enorme repercussão. Aquela fazenda foi desapropriada em 1907 para assentar colonos imigrantes europeus e nunca foi feito assentamento, consta como terra pública, da União. As empresas invadiram, tomaram conta, grilaram. (É importante que se diga que o termo “grilagem” está relacionado à utilização de grilos nas gavetas para forjar o envelhecimento de papel com contratos fraudados). E a Cutrale comprou a área que pertencia à União, e onde já havia um acampamento. As famílias despejadas tentaram várias vezes reaver a terra, sem sucesso. Um dia, decidiram pegar o trator e destruir meio hectare de laranja. A repercussão foi enorme, o mundo caiu. As redes de televisão jogaram toda a população contra o movimento. Quem saísse vestindo o boné do MST na região, naqueles dias corria o risco de ser apedrejado. Historicamente isso sempre se produziu no capitalismo, mas evidentemente é muito mais intenso neste momento.

 

Apesar de todas as dificuldades, o MST vai continuar ocupando terra. Por quê? Porque uma organização que não responde às necessidades de sua categoria perde o sentido de ser. Enquanto houver demanda, enquanto houver uma pessoa Sem Terra nós vamos continuar ocupando a terra, como forma de luta e de pressão. A reforma agrária não vai ser mais resolvida só com a ocupação, ela vai ter que ganhar um outro espaço de debate político na sociedade. Ela vai ter que ganhar outros setores da classe trabalhadora, e vai ter que contar com o apoio de muita gente para que isso ocorra. Por isso é tão importante fazer essa reflexão dentro da universidade. A universidade é um instrumento de disputa, e às vezes, mesmo obtendo algum espaço a relação com o movimento social às vezes se dá de uma forma um pouco torta.

 

Há quem vá da universidade para os acampamentos e assentamentos com grande dose de idealismo, e os espaços de luta e de vida são construídos por gente, e não por anjos. As contradições da sociedade estão presentes. Também há quem vá conhecer o movimento com uma visão arrogante, pensando levar a sabedoria e o conhecimento científico para um bando de ignorantes. Também é uma relação equivocada, pois há muitos conhecimentos produzidos na nossa realidade, ao mesmo tempo que há tanto conhecimento produzido na universidade cuja finalidade é questionável… Precisamos construir uma relação de interação, ou seja, aproximar o Campus do campo e o campo do Campus, numa relação dialética, em que tanto se leve conhecimento, como se busque conhecimento, como se produza saberes e tecnologias coletivamente, se busque formas de entender isso. Essa é a relação necessária em uma perspectiva de fazer enfrentamento a esse tempo histórico.

 

Quanto ao MST, vai ter que cumprir o seu papel de ocupar a terra, e cada vez mais, terá que conjugar várias coisas. Primeiro, conjugar a luta econômica com a luta política, não dá só para fazer a luta econômica, que por si só é uma luta que leva ao economicismo. E o economicismo dificilmente desenvolve consciência política, e muito da esquerda se equivocou em função de separar essas duas coisas - a luta econômica para o movimento social e para o movimento sindical, a luta política para o partido. Se os movimentos sindical e social se restringem a uma condição de luta economicista, O partido político, distante da realidade social, cai em um processo de burocratização. E nós estamos assistindo isso, partidos extremamente burocráticos, sem referência nenhuma para discutir a problemática social ou movimentos sociais extremamente economicistas caindo num reformismo do ponto de vista ideológico inclusive e negociando absolutamente tudo em troca de pequenas coisas. Então é preciso fazer um casamento da luta econômica com a luta política. A luta pela terra com a luta política. Não vai haver reforma agrária se não houver uma alteração na estrutura de poder, e para alterar a estrutura de poder é preciso muito mais do que a categoria Sem Terra, é preciso construir alianças com o conjunto da classe trabalhadora.

 

A segunda questão que precisa conjugar: a relação entre teoria e prática. É um erro alguém que pratica, alguém que elabora. A ideia de práxis do próprio Marx é de desenvolver a prática e fazer a reflexão de forma permanente dessa prática, de teorizar. Embora aqui tenha um elemento, o lugar da teoria e o debate teórico é fundamental, mas a teoria não tem um prazo para ser discutida; a política exige análise de correlações de força com um tempo útil em que se precisa agir, fazer. A realidade é muito mais dinâmica, ela se modifica cotidianamente, por isso a ideia de práxis, de praticar e refletir permanentemente, e não separá-las.

 

A terceira reflexão é de que não se pode separar o momento da luta do momento de formação. O momento da luta é um momento rico do processo formativo. E na luta as pessoas muitas vezes aprendem em um momento, em um dia, o que não aprenderam na vida toda. Um exemplo: ocupando a terra, organizamos trabalhadores e trabalhadoras que nunca participaram de uma luta. No dia seguinte, quem se manifesta? O fazendeiro, o capital que domina a terra, enviando pistoleiros ou acionando o Poder Judiciário. E o Poder Judiciário se manifesta normalmente pela reintegração de posse, pela manutenção da propriedade privada que é intocável, inclusive na Constituição. Ora, para fazer o despejo é preciso chamar a polícia. Portanto envolve o governo do Estado, mas se envolvem também os meios de comunicação. Que normalmente, já sabemos qual será a postura. Em uma ação, vejam: de um lado o protagonista Sem Terra, do outro lado o fazendeiro, o Poder Judiciário, a polícia, portanto o Estado, através do governo, meios de comunicação, e inclusive aliados que são favoráveis àquela ocupação. Para um sujeito que entrou hoje na luta, fazer uma análise nesse momento de como é que funciona a sociedade torna-se algo muito simples de se fazer. Ele vai entender de forma simples, mas vai entender qual a lógica do capital, qual a lógica do Poder Judiciário, como são os meios de comunicação. Então é fundamental que os dirigentes e os militantes estejam no meio da luta, e o processo da luta se desenvolva concomitantemente ao processo de formação. Evidentemente que essa formação é elementar, comparando-se com o processo de especialização em Arte no interior da universidade - embora ao discutir arte pode-se discutir a luta, pode-se discutir cultura, e deve-se. Porque um dia vai acabar a universidade, e o conhecimento vai ser tão democrático que não precisará estar preso em nenhum lugar, vai ser acessível para todo mundo. A humanidade um dia vai caminhar para isso; por ora, ainda temos esses limites, então temos que desenvolver em todos os espaços, luta e formação.

 

E a quarta questão é que não dá para separar o presente do futuro. Isso também levou a esquerda à cometer inúmeros erros, ao separar aquilo que se faz agora daquilo que se quer. Vivemos em nosso tempo! Temos que combater o capitalismo, mas ao mesmo tempo precisamos viver, namorar. Sabemos que a transição para outra sociedade também traz marcas muito grandes não só da realidade objetiva, mas principalmente subjetivamente são tempos que precisam se construídos, e a gente vê muitas marcas, e machismos em sociedades que avançaram inclusive para a distribuição mais justa do ponto de vista econômico, portanto é um processo. Mas se nós quisermos uma sociedade mais justa, nós temos que plantar aqui e agora a justiça, onde a gente está. Se a gente quiser homens e mulheres participando livremente e defendendo tudo isso, é aqui e agora que isso precisa ser plantado. Inclusive na nossa casa - como dirigentes, como militantes, seres humanos. Nós estamos agindo semeando a ideia de igualdade de gênero; temos que atentar para as formas como nos relacionamos. Se a gente quiser a juventude sendo protagonista do processo é preciso aqui e agora abrir espaço para a participação da juventude. Se queremos solidariedade no futuro... Que solidariedade nós estamos praticando no aqui e agora? Aqui que se planta com os filhos. Podemos dar o discurso que quisermos, mas eles vão se mirar bastante é nas nossas práticas, muito mais do que no discurso.

 

A agricultura nos ensina uma coisa muito básica: se quiser colher abacate, tem que plantar abacateiro. Simples assim. Se queremos outra sociedade é aqui teremos que semear... Evidentemente estamos em um momento de dificuldades. A esquerda no mundo todo passa por dificuldades, não é uma particularidade brasileira, e provavelmente vamos enfrentar muito mais. Vem uma crise estrutural do capital, de tempos em tempos, e o desenvolvimento do capitalismo não cria condições para o desenvolvimento humano, cria o problema exatamente contrário, cria a destruição da humanidade à medida que o capitalismo evolui. O prazo determinado dos produtos, a obsolescência programada, consome, consome, consome... E para o capital continuar ganhando precisa imprimir derrotas à classe trabalhadora, e derrotas estão em curso pelo mundo todo. É preciso destruir a organização social, é preciso destruir a resistência para implementar um processo que leve a um novo período de acumulação. Esse é o processo que nós vamos enfrentar. Ajuste fiscal, perda de direitos, a pressão internacional do capital para o preço da força do trabalho cair. Sistema competitivo, portanto envolvendo todos os países. Será um período que vai exigir de nós muita resistência, novas formas organizativas, novas formas de luta, novas estratégias, novas táticas. Mas não adianta apenas idealizarmos coisas novas. Nós produzimos historicamente essas organizações; esses instrumentos podem ter as deficiências que tem, mas é o melhor que a classe produziu. E teremos que construir outras, a partir do que a gente produziu. Nada surge do nada. E é sempre bom lembrar, embora estejamos em um momento que as pessoas dão muito valor ao discurso, que em política o que vale é a força organizada. Não adianta ter a língua vermelha, falar o que quiser de revolução. Por isso que tem tanta gente que fala, fala, fala. Morre alguém? Não. Não tem força política, não tem força social organizada. Nesse momento de crise a tendência de cairmos no reformismo ideológico ou no sectarismo e no esquerdismo é muito grande. Discurso, discurso, mas sem uma prática social organizada que enfrente esse momento. Estamos em um momento difícil, ninguém está bem, mas é um momento que a gente precisa reinventar fazer a resistência, fazer a luta, construir novas formas, novas táticas para enfrentar não só reativamente aquilo que vem do governo, que vem do capital, mas buscar uma ofensividade para discutir com o conjunto da classe trabalhadora a ordem do capital, e de forma massiva. Se não discutirmos a lógica do capital, como é que funciona, por que combate-lo, como é que o povo vai lutar junto com a gente? Se as pessoas não sabem contra quem e por que lutam, se lutarem sem saber viram massa de manobra. Mas no mais das vezes, elas não lutam se não sabem o porquê lutam. É preciso desenvolver um processo amplo de debate político, porque não acredito em mudanças de cima para baixo. As mudanças são construídas de baixo para cima, e por isso temos que estimular a participação popular, e disso não há nenhuma dúvida. É melhor errar com o coletivo do que acertar sozinho. Isso é da Rosa Luxemburgo. Ela dizia que é melhor, muito melhor o erro cometido coletivamente, do que o acerto do melhor comitê central, do melhor indivíduo. Porque o erro cometido coletivamente permite fazer uma autocrítica e a elevação coletiva da compreensão inclusive do que está errado. Estamos em um tempo que às vezes as pessoas se separam dos processos organizativos e se colocam em uma posição isolada dentro da escola.

 

A vocês que estão terminando este curso, se eu puder dar um conselho, tenham muita humildade. Tem gente que lê três livrinhos, empina o nariz e se acha intelectual, se acha o sabido por aí afora. Eu digo com a maior tranquilidade, eu devo à minha organização pobre e lascada a condição que eu tenho hoje; se eu superei um pouquinho da minha ignorância foram os Sem Terra que me deram essa condição, e não ao contrario. Os Sem Terra não devem nada para o dirigente, nada para o militante, foram eles organizadamente quem permitiram as condições para que a gente tivesse hoje um pouquinho de melhores condições de enfrentar esse momento, algum ingrediente analítico que nos permita compreender e evoluir.

 

Esse é o momento que a gente vive, que é difícil, mas ao mesmo tempo é nos momentos de crise que se abrem janelas, a história nos mostrou isso. Também pode ser o momento de ir para trás, também já surgiu o fascismo em tempos de crise. Mas em tempo de crise há uma porta imensa de politização e debate político e nós temos que aproveitar fazendo luta, resistência e criando novas possibilidades.

 

- Gilmar Mauro é Dirigente Nacional do MST.

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/177315

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