O Massacre do Compaj e o futuro do Brasil

04/01/2017
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Feliz 2020! Disse-me o amigo quando nos despedimos, na praia, na noite do dia 30. Otimista que sou, devolvi a brincadeira: feliz 2019! Mesmo com o abatimento, a fatura ainda sairá cara...

 

Estava escrito. Contra o anseio geral, 2017 anunciava-se um ano amargo. Mas ninguém podia imaginar que seria aberto por tragédia de tal monta.  

 

A notícia explodiu na TV na noite do primeiro dia útil do ano, em competição desleal com a cobertura sobre a posse dos novos prefeitos, subitamente ofuscados em gestos longamente planejados de pornográfica demagogia.  Rebelião de presos em Manaus deixa saldo de 60 mortos; a maior chacina em presídios brasileiros, desde o massacre do Carandiru. 

 

A imprensa internacional dedica manchetes ao fato. O encarregado do ministério a que está afeta a matéria viaja às pressas a Manaus. Seu chefe permanece mudo.

 

As duas reações -- da opinião pública internacional e dessa figura patética que ocupa a Presidência de nossa maltratada República – são compreensíveis. Não apenas pela monstruosidade do ocorrido, mas pelas circunstâncias que o cercam – e o explicam. 

 

Na verdade, nada de novo, nada que não fosse sobejamente conhecido. Superlotação – mais de 1500 detentos, em estabelecimento feito para comportar um terço dessa cifra --, condições subumanas, um contexto de miséria e violência inenarráveis, enquadrado pelo mando opressivo imposto pelo conluio entre administração carcerária e quadrilhas.  

 

Como sói acontecer, no momento de apurar as responsabilidades, o jogo de empurra. A Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (Seap) aponta o dedo na direção da empresa contratada para gerir o presídio, a Umanizzare, como proclama sarcasticamente o seu nome. Esta tira o corpo fora, alegando que a responsabilidade pela manutenção da ordem e da segurança no estabelecimento é do governo do estado, a ela cabendo apenas os “serviços de hotelaria” e de saúde, bem como o manejo dos detentos. Entre argumentos cruzados, a notícia de que a empresa – brindada, sem concorrência, com um contrato de centenas de milhões de reais -- teria feito uma contribuição polpuda para a campanha eleitoral de político dos mais prestigiados no ramo.

 

E fecha-se, assim, o círculo que liga miséria, violência, cobiça, e termina em tragédia.  

 

O pior, entretanto, ainda está por vir. O sistema prisional brasileiro foi sempre algo muito próximo ao inferno de Bruegel. Mas de alguns anos para cá, ele caminha rápida e seguramente para as regiões mais tenebrosas deste.  

 

Os números mostram isso de forma insofismável. Em 1990, havia cerca de 90 mil presos no Brasil; hoje, esse número gira em torno de 700 mil, vale dizer um crescimento acumulado de mais de 700%. Nos últimos anos, a população carcerária tem aumentado a taxas médias superiores a 6%, em movimento inverso às taxas de crescimento demográfico, que caem acentuadamente como sabemos. O Brasil segue os Estados Unidos nesse processo de encarceramento em massa, mas ganha terreno celeremente. Mantidas as tendências hoje observadas, em menos de duas décadas deve ultrapassar o seu modelo. 

 

É verdade, o gasto com a manutenção do sistema prisional cresceu também no período, mas em ritmo incomparavelmente menor, limitado que é pelas múltiplas demandas da sociedade e pela dificuldade em legitimar a expansão exponencial de despesas com a manutenção de um grupo social estigmatizado e improdutivo. Não por acaso, o crescimento vertiginoso da população carcerária foi acompanhado pelo debate acerca de como reduzir o seu custo. O que deu origem a um mercado de ideias próspero, onde pululam fórmulas milagrosas, como a da privatização dos presídios ou a do pagamento do custo de sua manutenção pelo próprio detento – como se coagir indivíduos rotulados de antissociais a trabalhar para a “sociedade” fosse algo passível de ser feito sem ônus.      

 

Diagnosticada há muito, a crise do sistema prisional brasileiro – uma de cujas faces mais revoltantes é a enorme proporção (cerca de 40%)  de presos provisórios, i. é, encarcerados sem julgamento  -- tende a se agravar como mero efeito do crescimento vegetativo do sistema. 

 

Mas a combinação de dois elementos nos assegura que o agravamento da crise se fará em ritmo muito mais acelerado.

 

O primeiro deles é sanha punitivista que domina amplos setores das classes médias brasileiras, com forte representação no ministério público, na magistratura e nos meios políticos. As mudanças legais (p. ex., a PEC que reduz a maioridade penal) e comportamentais induzidas por ela tendem a aprofundar a tendência ao encarceramento.   

 

O outro elemento é a formidável pressão da opinião conservadora pela redução do gasto público, cuja tradução mais acabada (por enquanto) é a aprovação pelo Senado da emenda constitucional que congela por vinte anos o gasto do governo federal, com seus desdobramentos: exigências draconianas formuladas pelo governo para mitigar a crise fiscal das unidades federativas.  

 

Fazer previsões é arriscado, sobretudo no que toca ao futuro. Nada garante que as tendências de longo prazo antes referidas continuarão a prevalecer indefinidamente. E o sucesso do programa abraçado pelo governo ilegítimo de Michel Temer é menos que provável. 

 

Mas se não conseguirmos vencer o projeto de refundação retrógada e liquidação nacional em andamento, será bom nos prepararmos para outras tragédias como as deste começo de ano sombrio. 

 

 

Créditos da foto: Divulgação / Graer-PM

 

04/01/2017

http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/O-Massacre-do-Compaj-e-o-futuro-do-Brasil/4/37525

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/182649
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