Golpes mortais contra o poder corporativo

 O tratado que está sendo discutido na ONU propõe que os direitos humanos sejam postos acima de qualquer outra norma do direito internacional.

13/01/2017
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campana derechs humanos y transnacionales
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Artigo publicado em espanhol na Revista América Latina en Movimiento No. 520: Transnacionales y Derechos Humanos 08/12/2016

Em 2016, os efeitos do capitalismo em sua fase contemporânea começaram a cobrar suas vítimas políticas. Infelizmente, essas vítimas optaram por beneficiar figuras ou posições políticas contrárias àquelas elaboradas e apregoadas há muito tempo pelo conjunto das esquerdas altermundistas. Em parte, isso se deve ao fato de que a primeira rodada de resposta ao neoliberalismo - chamado de “progressismo” em nossa região –, por fraqueza ou por decisão, foi derrotada na hora de desarmar os principais mecanismos que, em última análise, contribuíram para a consolidação deste “capitalismo extremo” triunfante no mundo, ou seja, um capitalismo que, além de suas contradições clássicas, apresenta uma “extrema concentração de riquezas e a tendência à extrema concentração da propriedade das empresas”.[1]

 

O interessante a respeito de 2016 é que as esquerdas altermundistas, ao mesmo tempo, não foram as derrotadas, pois suas melhores expressões foram transformadas em verdadeiras forças políticas em ascensão: Bernie Sanders, Jeremy Corbyn, Podemos, nos impelem ou trabalham como faróis de esperança. O verdadeiro derrotado é, certamente, o que podemos chamar de “neoliberalismo socialdemocrata”. Como disse Naomi Klein, “foi o abraço dos Democratas ao neoliberalismo que levou à vitória de Trump” (tradução minha)[2].

 

Essa nova conjuntura internacional deveria incentivar a recriação de uma nova onda de altermundismo, nutrida das lições aprendidas com as experiências de derrota do passado recente e das expectativas acesas pelas forças emergentes de oposição de esquerda às tendências fascistóides que surgiram em países tanto do Norte quanto  do Sul global. Como William Robinson advertiu no início de 2011 “[o] contrapeso ao fascismo do século XXI deve ser um contragolpe da classe trabalhadora global coordenada. A única solução real para a crise do capitalismo global é uma redistribuição maciça das riqueza e do poder - para a maioria pobre da humanidade. E a única maneira de fazer com que tal redistribuição aconteça é pela da luta internacional de massas a partir de baixo”.[3]

 

O debate no Conselho de Direitos Humanos da ONU para criar um tratado sobre direitos humanos e empresas oferece uma grande oportunidade para enfrentar o principal ator da economia capitalista mundial, que comumente chamamos de “poder corporativo”, e contribuir para o surgimento desta nova onda de ativismo anti-neoliberal. Essa oportunidade foi aberta em parte por causa da luta de que falamos, e que tem como um de seus atores centrais a “Campanha Global para desmantelar o poder corporativo e acabar com sua impunidade”, que reúne comunidades afetadas, movimentos e organizações sociais de todos os continentes que, em conjunto com a Aliança para o Tratado, promoveram mobilizações em seus países, e dentro e fora do Conselho, para que este aprovasse a abertura de um processo formal de discussão sobre o tema em junho de 2014.

 

Há cinco golpes mortais a serem desferidos contra o poder corporativo que, junto com o processo na ONU, são essenciais para uma mudança sistêmica em favor dos povos e contra a exploração global perpetrada pelo poder corporativo.

 

1- Acabar com a impunidade jurídica das corporações

O poder corporativo deu início, nos primórdios da década de 1980, a um processo de avanço contínuo sobre os direitos humanos. O desmantelamento gradual do Estado de bem-estar social, a privatização dos serviços públicos, a desregulamentação econômica, a abertura comercial dos Estados e a primazia dos direitos dos investidores sobre aqueles das pessoas são a face visível dessa ofensiva. No âmbito internacional, os acordos de livre comércio e investimento, em suas várias ondas (incluindo as políticas de instituições como a OMC, o FMI e o Banco Mundial), oferecem a garantia última ao capital, que passa, no marco desses acordos, a ter mais direitos até mesmo do que os Estados, por meio do que hoje se conhece por sua sigla em inglês ISDS (investor-state dispute settlement) e que nas Américas conhecemos desde o início dos anos 1990 por capítulo 11 do NAFTA. O resultado disso foi a construção de uma verdadeira arquitetura da impunidade, que colocou em primeiro lugar os direitos dos investidores, em detrimento dos direitos humanos, ou seja, do povo. Esta vantagem sem precedentes, a garantia de que seus direitos serão respeitados, não importa qual o resultado de suas operações, é um dos pilares sobre os quais se apoia o capitalismo extremo, o poder corporativo hipertrófico que hoje comanda o mundo. E é contra esse princípio de arbitrariedade empresarial que um tratado como o que está sendo discutido na ONU se opõe, pois, ao propor que os direitos humanos sejam postos em seu lugar, ou seja, acima de qualquer outra norma do direito internacional, as arbitrariedades que a trama de acordos internacionais permitem passarão a ser ilegais, ou seja, serão crimes internacionais.

 

2- Cortar o vínculo entre o poder econômico e a democracia

A crescente assimetria econômica entre empresas e Estados, e entre os empresários e o restante dos cidadãos, elevada como nunca antes na história recente, é uma das características centrais do capitalismo contemporâneo. Esta assimetria é causa e efeito de sua expressão política, que chamamos de “privatização da democracia”. Mecanismos de captura corporativa, tais como lobbies, portas giratórias, financiamento de campanhas eleitorais e outros privilégios legais e ilegais – tais como a corrupção -, que operam no nível do poder Executivo, Legislativo e Judiciário das nossas democracias, acabam transformando o bem mais comum da sociedade em um mecanismo para beneficiar alguns. A privatização da democracia faz com que as suas instituições criadas para o interesse comum se transformem em dispositivos que garantem - e aumentam - os interesses particulares daqueles que se apoderam delas. Uma plutocracia direta ou indireta, a cada dia mais escandalosa, que exclui as maiorias e produz nelas a crescente apatia eleitoral ou decepção com a democracia que estamos vendo no mundo de hoje, onde, incrivelmente, começaram a surgir vozes fascistas e autoritárias que encontram eco no debate público e já têm representação em vários órgãos parlamentares. Cortar esse vínculo entre poder econômico e instituições democráticas é um dos objetivos que, como movimentos populares, temos de ter em vista, se realmente desejarmos recuperar a soberania dos povos, ou como diz W. Robinson, avançar na direção da redistribuição do poder.

 

Esta captura ocorre internacionalmente em instituições da chamada “governança global” - um eufemismo que oculta a natureza antidemocrática do sistema internacional - totalmente capturadas pelos interesses econômicos que atualmente comandam agendas inteiras de instituições internacionais por meio do financiamento de programas, sendo talvez o caso mais relevante o da Organização Mundial da Saúde. Ao mesmo tempo, a Classe de Davos, via o Fórum Econômico Mundial, leva adiante uma iniciativa chamada Iniciativa de Redesenho Global (Global Re-design Initiative), que consagra o governo “multistakeholder”, o governo em que participam todas as partes, particularmente os setores empresariais. Essa captura das principais instituições democráticas tanto no nível nacional quanto no internacional não é ad hoc, mas se articula como uma das principais estratégias das elites econômicas globais, a chamada Classe de Davos empresarial[4].

 

 

3- Acabar com a festa financeira

Um dos motores atuais do capitalismo são as finanças, que, por sua vez, são a dimensão mais globalizada da economia internacional. Todos nós já sabemos que são elas que dominam o capital produtivo e que há bancos e fundos de investimento muito mais poderosos do que muitos dos Estados membros da ONU. As finanças impõem uma lógica de lucro imediato, que “seleciona naturalmente” os negócios mais rentáveis, gerando padronizações de todos os tipos e a anulação da diversidade - cultural, gastronômica. Além disso, a despersonalização das suas decisões impede o vínculo com aqueles que são impactados por suas decisões. Os elementos que sustentam esse poder não são muitos: a desregulação extrema que lhes permitiu inventar infinitos “produtos” financeiros que multiplicaram as suas possibilidades de lucro ao mesmo tempo em que aumentaram o risco global para o sistema - como vimos no crack de 2008 -; e sua capacidade de não pagar impostos ou de facilitar o não pagamento de impostos pelos terceiros a quem servem (por meio de até mesmo práticas criminosas, tais como lavagem de dinheiro ou evasão de divisas). Em muitos países, não se cobram impostos de operações financeiras ou relativas ao mercado de ações, ou se aplicam alíquotas mínimas aos ganhos mínimos gerados pela especulação. Os paraísos ficais e os acordos para “evitar” a dupla tributação têm servido como mecanismo central, juntamente com soluções tecnológicas, para facilitar a mobilidade de capital pelo planeta, de um lugar a outro com quase plena liberdade para não pagar impostos, para ocultar riquezas, para evitar o pagamento de salários justos[5] aos seus trabalhadores ou para especular com oportunidades de negócios  oferecidas pelos países vulneráveis ao financiamento internacional (por meio do pagamento de juros exorbitantes e dívidas exorbitantes). Promover a regulação financeira estrita, o fim dos paraísos fiscais e acordos de dupla tributação e limitar o tamanho dos bancos e fundos, entre outras soluções que podem ser construídas pela sociedade para que as instituições financeiras trabalhem em benefício de toda a população, são as medidas mais urgentes para reduzir o poder inusitado que ostentam as finanças na trama do poder corporativo global.

 

4- Interromper o processo de mercantilização do saber

As patentes industriais - e farmacêuticas especialmente - são uma das formas favoritas do capitalismo global de exercer a apropriação selvagem de grandes porções das riquezas produzidas pela humanidade. As empresas têm se encarregado, especialmente ao longo dos últimos 40 anos, de montar uma rede de leis nacionais e internacionais que garantem patentes sobre grande parte das descobertas científicas e tecnológicas. Aqueles que detêm esses direitos em geral têm muitos anos para utilizá-los de forma exclusiva, ou seja, para produzi-las e vendê-las de forma exclusiva, pelo preço que considerarem justo, isto é, aquele que lhes permitirá ganhar a maior quantidade de dinheiro possível. Isso independentemente de os preços dos medicamentos, por exemplo, fazerem com que pacientes de baixa renda não possam ter acesso a tratamentos contra a hepatite C que lhes permitiriam sobreviver; ou que pequenos agricultores não possam reproduzir suas próprias sementes; ou que tecnologias que poderiam ajudar a resolver problemas como a mudança climática e a fome não possam estar nas mãos daqueles que mais necessitam delas. As patentes, ou seja, a mercantilização do saber, do conhecimento, são a base da acumulação de capital em grande parte da atividade econômica atual: comunicações, energia, saúde e medicina, alimentação, transportes e outros. Interromper essa mercantilização do saber, do conhecimento como atividade humana comum, não só seria uma forma de contribuir para o desmantelamento do poder corporativo em muitos setores, mas também de contribuir de várias maneiras para aumentar o bem-estar humano. Está provado que, se, em algum momento da história, as patentes contribuíram para aumentar a velocidade e a importância do conhecimento e das invenções tecnológicas, hoje, essa não é mais a regra; a regra é que o Estado, ou seja, as instituições públicas, de todos, é quem mais investe e gera as condições que possibilitam o progresso científico e tecnológico no mundo. Não há razões fortes para que o esforço público se transforme de forma tão absurda em lucro privado.

 

5- Cortar de uma vez o acesso corporativo aos bens comuns da natureza

Consagrar o caráter público da natureza e administrar sua utilização para o benefício comum, interrompendo o acesso e a exploração irrestritos por parte das grandes corporações nos setores de mineração, energia e agricultura é uma tarefa que parece óbvia, mas que, na prática, os artifícios da propaganda e um senso comum cooptado pelos interesses econômicos transformam em algo não evidente, algo pelo que temos de lutar. Um mundo em risco iminente de crise climática e ambiental exige decisões urgentes para interromper o extrativismo selvagem por trás de muitos dos problemas ambientais de hoje (mares e rios, florestas, solos, biodiversidade etc.), enquanto que a solução dos mesmos não pode estar nas mãos daqueles que, em lugar da lógica do bem comum, agem pela lógica do lucro. Soluções ambientais não são soluções de mercado. Apenas uma gestão inteiramente pública e participativa da natureza poderá reverter o caminho do colapso pelo qual a humanidade transita, e só isso vai colocar um limite a, por exemplo, as petroleiras, tradings de alimentos e mineradoras internacionais que acumulam poder suficiente para bloquear avanços civilizatórios indispensáveis para a sobrevivência de nossa espécie. Esse é o quinto golpe fatal para contra o poder corporativo.

 

Pelo menos cinco golpes: tática e estratégia para uma segunda onda anti-globalização.

 

Há sinais que indicam um crescente descontentamento da população em relação aos abusos do poder corporativo, sua impunidade e a desfaçatez com que se apropriaram de governos nacionais e da governança global. O desafio desta segunda onda de altermundismo está em organizar-se para desferir pelo menos esses cinco golpes mortais contra o poder das corporações e converter nossas resistências em uma prática de alternativas. O interessante é que o caminho para a primeira tarefa já está aberto e é a melhor oportunidade que teremos para dar um passo em direção à utopia de um mundo justo e sustentável.

 

- Brid Brennan e Gonzalo Berrón são membros do Projeto Poder Corporativo do Transnational Institute.

 

[1] Berrón, Gonzalo y González, Luz (orgs.) “A Privatização da Democracia: Um catálogo da captura corporativa no Brasil”, Vigência!, São Paulo, 2016, p. 10. http://www.vigencia.org/catalogo/vigencia-2016/

[4] Ver a análise de Harris Gleckman “La gobernanza de las múltiples partes interesadas: la ofensiva corporativa hacia una nueva forma de gobierno global” 2016 https://www.tni.org/en/node/22930

[5] O relatório “The Bermuda Connection: profit shifting, inequality, unaffordability at Lonmin 1999-2012” (Forslund, Dick AIDC, 2015) expõe o papel da mineradora Lonmin na evasão salarial (wage evasion), ou seja, como a empresa deixou de responder às demandas salariais dos mineiros alegando problemas econômicos que, na verdade, ocultavam transferências irregulares de ganhos no exterior. http://aidc.org.za/download/Illicit-capital-flows/BermudaLonmin04low.pdf

https://www.alainet.org/pt/articulo/182822
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